terça-feira, 19 de dezembro de 2023

“Eu vi uma árvore” e o princípio de uma metafísica esquálida[i]

Tenta argumentar que muitas árvores existentes não existem[ii]

Árvores para elas mesmas. Há uma distância limítrofe a partir da qual deixamos de ver uma árvore que porventura estamos vendo agora. Quando nossa visão não a capta mais, ela deixa de existir para nós, embora possa haver outros campos de visão para os quais a árvore se apresenta (ou existe). Agora imaginemos uma árvore que nunca foi vista por ninguém. Podemos dizer que esta árvore nunca existiu para ninguém, mas poderíamos dizer que essa árvore nunca existiu? Ou que ela não existe? E uma árvore jamais vista e que já morreu, ela existiu? De ambas não temos notícias, elas nunca foram referidas por ninguém. Então, elas somente existem ou existiram para elas mesmas.

Árvores para nós. Ocorre que elas-existirem-para-elas-mesmas somente é possível se algum de nós está aqui. Isso porque “ver”, embora de muito seres, é humano. Ter olhos, embora de muito seres, também é humano. Isto é, os nomes, os conceitos e essa linguagem que usamos para descrever o mundo e as coisas são humanos, já que outros animais veem, mas não sabem que veem ou não sabem o que é ver. Mas, se supusermos o mundo sem a espécie humana ou algum outro tipo de espécie capaz de conceituar o mundo e as coisas seja lá de que forma, não poderíamos dizer que o mundo existiria, e suas árvores, já que “existir” e “mundo” são expressões humanas.

Falsos problemas. Isso posto há dois problemas que são falsos problemas: uma árvore que, jamais vista, morre e uma árvore que vive sem a existência da espécie humana. No primeiro caso, não podemos dizer que ela morreu porque jamais foi vista, não se sabe de sua existência. Não poderíamos falar dela. Já no segundo caso, poderia até haver uma árvore nesse mundo, mas não sabemos se haveria coisas como “árvore”, “mundo” e “existir”. Não haveria alguém para falar dela.

Árvores existentes. Por outro lado, quando vemos uma árvore, podemos notar claramente que ela tem uma consistência, ela é material. Isso quer dizer que não duvidamos que haja mundo, mas há um mundo que categorizamos no limite de nosso entendimento e linguagem. Inclusive, se fosse possível catalogar as moléculas de oxigênio por sua origem, poderíamos saber da existência de determinada árvore, que expeliu aquele gás oxigênio por seu processo fotossintético, sem nunca a ter visto, embora a partir de uma evidência passível de ser checada por nós e, sendo assim, ainda seria uma árvore para um humano. Ou mesmo pelo mapeamento dos resíduos de sua decomposição.

Conclusão. Do que foi dito, concluímos por uma simbiose temporal, isto é, enquanto houver uma árvore que é vista por alguém, se pode falar. A partir do momento em que, ou não haja alguém ou nenhuma árvore, nada poderá ser dito. Qualquer conceituação que escape a essa temporalidade é quimérica. Essa simbiose é tão forte que necessariamente só se fala do concreto e enquanto ele durar e por meio de conceitos que não passem disso, sejam eles abstratos, porque vazios de conteúdo, transcendentes, isto é, que se permitam ir além da simbiose ou imanentes, possivelmente propalando um tempo eterno.



[i] O uso das aspas indica que não estamos falando do fato em si, mas da expressão linguística. Ver “Conceitos” em https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/11/introducao-ao-significado.html.

[ii] Eu já tentei fazer filosofia por minhas próprias mãos, filosofia raiz, de boteco, aqui e eventualmente em alguma avaliação escolar, mas sempre fui malsucedido. 

Putnam e a objetividade do conhecimento

Passa pelas fases realistas de Putnam[i]

Putnam se filia ao realismo que ganha força na década de 70 impulsionado por Kripke e a teoria causal da referência, cuja proposta é estabelecer uma relação direta entre o referido e o termo, perpassando o significado. Se Kripke trata dos nomes próprios, Putnam aborda as espécies naturais (água, ouro, tigre...) que compõem o mundo. Em sua primeira fase, que poderia ser chamada de realismo metafísico, subentende-se que há no mundo uma totalidade fixa de objetos que são independentes da mente, mundo exterior existente e livre de nossas teorias. Além disso, é possível supor uma descrição completa e perfeita de como o mundo é, trazendo uma noção de verdade como correspondência entre as palavras e coisas externas. Essa é a perspectiva externalista, o chamado ponto de vista do olho divino.

Há uma ontologia externalista que prevê o mundo externo e a semântica da verdade com referência externalista baseada no realismo científico que nos dá acesso epistêmico ao mundo, evitando o ceticismo, mesmo que falível e aproximado (i.e., realismo convergente).  A ciência segue o ideal de busca da verdade, de um conhecimento verdadeiro do mundo, mas postula entidades inobserváveis em suas previsões e, assim, deixa questões problemáticas para os realistas, como uso de genes, átomos e outros. Ora, se não existem essas entidades, como seria possível explicar o êxito da ciência? É o argumento do milagre: sem essas explicações, como mostrar que tudo funciona adequadamente? Nesse caso, a melhor concepção é o realismo científico.

Plastino destaca que, por mais que haja teorias a respeito do átomo, a referência a ele permanece e busca-se por explicações a seu respeito, trazendo uma estabilidade referencial. As crenças mudam, o objeto não, o conhecimento avança cumulativamente incorporando teorias anteriores. Pode haver mudanças semânticas, de sentido, mas a referência continua, assim como na Terra Gêmea há uma substância chamada água que tem outra composição química: XYZ. Ou seja, o sentido de água não está em nossa cabeça, dado que XYZ não é água, pois a referência faz parte do significado, mesmo que semelhante em aparência. É a extensão do termo que determina o significado.

Porém, Putnam começa a rever sua posição externalista ao perceber que poderia haver vários mapeamentos da linguagem com o mundo, colocando em dúvida a fixação da referência e da verdade dada a multiplicidade de correspondências[ii]. Então ele se questiona sobre nossa capacidade de chegar ao conhecimento (concepção epistêmica de verdade), já que a correspondência é não epistêmica, independente de nossa capacidade cognitiva, embora para o realista há verdades que não dependem de nós.

Para o realista metafísico, uma teoria poderia satisfazer todos os critérios epistêmicos (coerência, previsão, explicação) e ainda ser falsa, não corresponder à realidade, já que pertencendo ao ser humano e enfatizando uma dicotomia entre realidade e teoria. Então ele questionará tal divisão entre mundo e conceito propondo que o que vale é o esquema conceitual que estamos utilizando e não devemos falar da coisa em si. Putnam já está negando o realismo metafísico em prol de um realismo interno que traz a relatividade conceitual dependente de perspectivas. Como pode haver teorias verdadeiras e equivalentes do mundo, a ideia de “Mundo” em si se esvai. O acesso a ele é feito por um esquema conceitual no qual colocamos os objetos, dentro de uma certa descrição. Sobre o sol, por exemplo, podemos falar dentro de um esquema conceitual, embora o sol não dependa desse esquema.

Ocorre que, inviabilizando a noção de verdade por correspondência propalada pelo realismo metafísico, Putnam proporá uma noção epistêmica em que associa a verdade à justificação e que evita mapear o mundo pela linguagem. Por exemplo, pelo verificacionismo fundado na evidência dos enunciados, nas condições de verdade que dependem de nossa capacidade cognitiva. Mas o verificacionismo pode levar ao relativismo cognitivo, já que pode haver mudanças de justificação pelo surgimento de evidências. Ora, a verdade não deveria ter essa oscilação, então, conforme Peirce, a justificação se daria ao longo do tempo, dentro do processo científico, em seu limite. Esse realismo com face humana de Putnam, traz a verdade de um enunciado como podendo ser justificado, algo aceitável racionalmente, mas não aqui e agora, mas idealmente. A verdade é um ideal regulador, que norteia a busca das condições epistêmicas e é vista como questão objetiva em que enunciados são melhores que outros independente do contexto histórico e cultural.

Mas também haverá dificuldade nessa nova “situação ideal”, se antes era a correspondência agora é a episteme, levando-o a uma nova autocrítica. A verdade, dependente de fatores humanos, poderia se manter estável? Como usar o papel da verdade na prática? Essa ideia estaria muito próxima de uma situação ideal difícil de ser encontrada na prática, de acordo Rorty. Se humano, esse ideal é suscetível a erros e mesmo uma investigação ideal pode ter proposições com conceitos vagos ou subdeterminados. Ou como distinguir melhores situações epistêmicas? Sabe-se que as avaliações epistemológicas variam com o tempo e pressuposições.

Então surge o realismo natural (direto ou pragmático) que descarta a linguagem como espelhamento da realidade, mas propõe que nossas crenças e enunciados devam ser responsáveis pela realidade (cognitivamente dar uma resposta ao mundo e ao outro, evitando o idealismo). Ele diz que observamos as próprias coisas diretamente pela percepção e não pela intermediação dos dados sensíveis, que são imagens delas e das quais falaríamos. Ora, o mundo que conhecemos não é produto de nossa mente, ele é independente de nós e de nossos artefatos e nos restringe forçando determinada resposta a ele. Mundo objetivo que limita nossas crenças. Então, o realismo não necessita de uma teoria epistêmica da verdade, já que fala sobre o mundo.

Sobre o pragmatismo, importa a crítica à dicotomia fato valor[iii]. Há valores cognitivos epistêmicos (predição, confiabilidade) que norteiam a teoria que versa sobre o mundo, então o fato é pautado por esses valores “embutidos”, assim como no discurso cotidiano. Há valor embutido na ciência: os fatos se dissolvem em valores (objetivos). Importa a noção pragmática de objetividade que visa superar cada cultura. Mesmo dentro de um falibilismo que não cai em ceticismo. Ele ressalta também que devemos estar abertos a várias descrições acerca do mundo, não devemos bloquear a investigação e não há um “a priori” universal e independente.

Associando os valores cognitivos da ciência e os valores éticos, pode haver comunhão ou competição entre os pesquisadores, mas sempre com interação mútua que influencia o conhecimento do mundo.  O dogmático não baseia suas crenças na experiência, elas são independente do que ocorre, disse Peirce, mas o que altera suas crenças são outras pessoas com outras crenças diferentes das dele gerando uma pressão social que o faça mudá-las. O realismo permite responder ao outro e ao mundo. Porém, Putnam discorda dos pragmatistas com relação as teorias da verdade que associam justificação e verdade levando ao relativismo[iv].



[i] Fichamento UNIVESP https://www.youtube.com/playlist?list=PLxI8Can9yAHcC9hEv4oAnMT5GI1zGRW1_  Empirismo e Pragmatismo Contemporâneos - Putnam e a objetividade do conhecimento. Prof. Caetano Plastino.

[ii] De acordo com Plastino, o Teorema de Löwenheim–Skolem.

[iii] Estão intrinsicamente ligados e ambos merecem interpretação objetiva. Já falamos do tema brevemente: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2013/12/possibilidade-possibilidade-reside.html

[iv] Plastino ressalta a dificuldade com a noção de verdade que aparecerá também em Rorty.