terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Substituição de nomes: um problema para a teoria referencialista do significado

Trata de dois enigmas que a teoria referencialista do significado para nomes deve responder: o puzzle de Frege e o paradoxo da substitutividade[i]

Tomemos as frases 1.) “Héspero é Héspero” e 2.) “Héspero é Eósforo”, que tratam de Héspero, a estrela da tarde e de Eósforo a estrela da manhã. Entretanto, como já vimos algumas vezes neste espaço, as duas frases são correferenciais, isto é, se referem a Vênus. Pelo princípio da composicionalidade, também já visto, o significado de uma frase depende de sua estrutura e do significado de cada parte. Se aplicado às duas asserções iniciais, vemos que elas possuem a mesma estrutura, já que são afirmações de identidade e têm por significado de cada parte um nome, que é seu referente.

Para o referencialista, então, Héspero e Eósforo se referem a Vênus e têm o mesmo significado. Porém, notou Frege, há uma diferença entre as asserções de identidade: a primeira é trivial, mas a segunda é informacional, ou seja, a segunda informa algo novo[ii]. Mas, como o referencialista poderia explicar que as duas sentenças têm o mesmo significado, mas somente a segunda é informativa?

Tomemos outro par de afirmações de identidade proposto por Sagid: 3.) “Anitta é Anitta” e 4.) “Anitta é Larissa de Macedo Machado”. Do mesmo modo, são expressões correferenciais e, portanto, para o referencialista significam a mesma coisa, mas, como explicar a diferença de informatividade? É aí que entra a solução fregeana: a questão só pode ser explicada se o significado do nome próprio for diferente do referente do nome próprio, então, os pares 1.) - 2.) e 3.) - 4.) não significam a mesma coisa, apesar do mesmo referente.

Para Frege, o significado é o modo de apresentação do referente e cada significado apresenta o referente de um certo modo. Em 1.), por exemplo, o objeto é apresentado da mesma forma duas vezes, já em 2.), o objeto é apresentado de dois modos diferentes. O significado ou modo de apresentação do referente é o sentido e é ele que determina o referente, embora ele possa falhar, quando uma asserção tenha sentido, mas não referente, como é o caso de Papai Noel e Vulcano[iii].

A abordagem de Frege trata o sentido da expressão como algo que é compreendido. Quanto entendemos algo, entendemos o seu significado. Esse significado é objetivo e, já que compreendido por muitas pessoas, é intersubjetivo e entendido mesmo quando não há referência. Todavia, Frege não deixa clado o que é o sentido, apesar de tê-lo caracterizado como um modo de apresentação do referente, como sendo aquele que determina ou aponta o referente, e que permite haver diferentes sentidos para o mesmo referente ou apontar para nenhum referente, de ser compreendido porque entendemos e de ser compreendido por todos. Sagid cita crítica de Evans a essa falta de clareza, inclusive certa incongruência ao tratar o sentido como aquele que apresenta o referente, mas ao mesmo tempo em que possa não haver referente. Não fica claro como o sentido determina ou seleciona o referente, embora Sagid deixe indicado que a teoria descritivista irá clarificar a ideia de sentido.

Sagid também mostra que, para Frege, a distinção entre sentido e referente vale para toda expressão linguística, não somente para o caso dos nomes próprios que estamos tratando. Logo, o sentido de uma frase é o pensamento expresso por ela, algo objetivo e que é entendido por nós. Além do mais, e o que soa estranho, uma frase completa pode ter um referente, que é o seu valor de verdade, seja ele verdadeiro ou falso. Segundo Sagid, Wittgenstein, no Tractatus, teria mostrado que o referente da frase é o fato, mas esse ponto poderá ser melhor clarificado pela teoria proposicional do significado.

Conclui-se, para o puzzle de Frege, que, se asserções de identidade têm o mesmo significado para o referencialista, ele não consegue explicar porque algumas são informativas. Consequentemente, ele faz a distinção entre o sentido e a referência que elucida esse ponto e mesmo os das existenciais negativas, embora não tendo sido suficiente claro sobre qual mecanismo o sentido opera.

Enigma da substitutividade[iv]

Se o enigma de Frege soluciona casos da substituição de um nome próprio por outro, correferencial e que deixa o referencialista em apuros, ele permite concluir que a substituição, nesse caso, altera o significado da frase, mas não altera seu valor de verdade nas afirmações de identidade (“Anitta é Anitta” e “Anitta é Larissa...” têm o mesmo valor de verdade). Porém, em certos contextos, a substituição de um nome por outro pode alterar o seu valor de verdade, invalidando o princípio da substitutividade que deveria ser aceito pelo referencialista.

O princípio da substitutividade é citado por Sagid como: “A substituição de um nome próprio por outro nome próprio que seja correferencial não altera o valor de verdade da frase”[v]. Vejamos, as sentenças 5.) “Maria acredita que Anitta é Anitta” e 6.) “Maria acredita que Anitta é Larissa de Macedo Machado” tem o mesmo valor de verdade? Ora, em 5.) todos acreditam, mas em 6.) pode haver o caso em que muitos não saibam do fato ou mesmo o rejeitem. Por isso, 5.) seria verdadeiro e 6.) falso.

Do mesmo modo, poderíamos ter que, para o astrônomo João, lá na Grécia Antiga, 7.) “João deseja saber se Héspero é Héspero” e 8.) “João deseja saber se Héspero é Eósforo”. As duas asserções claramente violam o princípio da substitutividade já que claramente João sabe 7.), mas não sabe 8.).

Não obstante, Sagid explica que esses casos estão relacionados a certos contextos onde são usados conceitos de crença, conhecimento, desejo. São atitudes proposicionais da forma “Fulano acredita que”, “Beltrano sabe que”, etc. Uma proposição, como se sabe, é o significado de uma frase, e as atitudes proposicionais são aquelas relacionadas a uma proposição. Assim dizendo, para a proposição “A neve é branca” podemos acreditar, duvidar ou rejeitar. Segue-se que o princípio da substitutividade falha em alguns contextos ditos opacos. 

Um contexto referencialmente transparente é aquele em que a substituição de um nome próprio por outro nome próprio não altera o valor de verdade da proposição, já um contexto referencialmente opaco é aquele contexto em que a substituição correferencial muda o valor de verdade. Tem-se que o referencialista não explica porque o princípio da substitutividade falha nos contextos referencialmente opacos.

Por fim, Sagid acena para a continuidade das aulas, dizendo que a teoria descritivista explica os três enigmas, a saber, ela da conta de explicar o significado de nomes vazios (sem referente), explicar o significado de afirmações de identidade e explicar a opacidade referencial. Além do que ela tornará mais clara a ideia de sentido usada por Frege para distinguir entre o significado e o referente, mas isso são cenas dos próximos capítulos.



[i] Recortes das aulas 9 e 10, links: https://www.youtube.com/watch?v=vs6h1RPf6yQ e https://www.youtube.com/watch?v=_f_y78jeSEE CURSO IF, filosofia da linguagem do professor Sagid Salles.

[ii] Em outros termos (kantianos), a primeira é analítica e a segunda é sintética, conforme Sagid.

[iii] Ver texto: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2023/01/np-pn.html. A solução fregeana também resolve esse caso, sem a necessidade de se recorrer a Meinong ou ao faz de conta.

[iv] Aqui entra a aula 10.

[v] Citação para nomes próprios, mas valeria para termos singulares e etc. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

O discurso mental de Thomas Hobbes

Mostra que há um discurso privado, mental, anterior ao discurso público no uso da linguagem pelos modernos[i]

Hacking se refere a Mill (1844) como ponto de partida no tratamento da linguagem, porém por “razões menores”, como a prevenção de erros ou destacando a importância das proposições. É um marco, posto que antes dele havia o predomínio das ideias que não estavam diretamente ligadas ao significado, conceito associado à análise da linguagem atualmente. Então, a linguagem, na modernidade, era importante, mas em outros termos.

Para Hobbes (1651), a fala era uma transferência do discurso mental ao verbal, cada discurso seguindo um fluxo separado. Mas, o fluxo do pensamento seria pré-linguístico, isto é, depois era verbalizado para que pudesse ser comunicado. Se, para Hobbes, era tarefa da linguagem comunicar pensamentos, Berkeley também enfatizava seu papel em despertar emoções e dissuadir ações, como que para despertar nossos pensamentos nos outros.

Portanto, no século XVII, havia uma preocupação em livrar o pensamento da linguagem que, pública, levaria ao erro. De um lado o discurso verbal que era usado para comunicação e, de outro, o pensamento verdadeiro, haja vista a proposição de Descartes de escrutinar as ideias. Hacking acredita que não havia uma teoria do significado naquele tempo, mas uma teoria da linguagem autodidata baseada no mental[ii]. E também não acredita na divisão das teorias do significado, como a proposta por Alston, entre ideacional, referencial e comportamental.

Na teoria ideacional, o significado de uma palavra é a ideia em nossa mente que ela representa, isto é, quando proferimos uma frase nos referimos à ideia de algo, como um evento (um churrasco), etc. Na teoria referencial, o significado é o próprio evento e, no caso da comportamental, se verifica o que as pessoas fazem ao ouvir palavras. Hacking investiga com base nessas definições: Locke (40 anos depois de Hobbes), seria ideacionista? Para ele, as palavras são marcas sensíveis das ideias, são signos das ideias.

Para Hobbes, as palavras também são marcas ou signos e os nomes não são das coisas, mas há dificuldade de atribuir uma teoria do significado, pois, a definição de signo é outra. Aqui “significa” tem o sentido de “precede”, como uma nuvem carregada precede a chuva – é como que inferir o pensamento a partir do que é dito, não que ‘signifique”. Na verdade, segundo Hacking, Hobbes tanto poderia ser ideacionista como referencialista, pois uma palavra é dita depois de uma ideia e uma palavra produz (significa) no ouvinte um pensamento, mas ela realmente significa o que se refere[iii].

Hacking está enfatizando uma dificuldade de categorizar um discurso moderno sobre a linguagem, uma teoria do significado. Ele chega a aproximar Hobbes de Grice, uma teoria comportamental que seria a atual teoria intencional de Grice, quando o falante pretende que o ouvinte infira o significado do que é dito. Insere-se no campo da comunicação e intenção de comunicar. Portanto, ou Hobbes passou pelas três caracterizações em seus textos, ou ele não possuía uma teoria do significado, isto é, tinha outras preocupações, como uma teoria do pensamento.

Pensamento que é associado ao discurso mental, às ideias, ao passo que agora tratamos a linguagem de um jeito novo. E as palavras, que são signos das ideias, ideias estas que, no século XVII, queriam dizer algo que Hacking tentará explicar nos outros capítulos do livro. Por fim, ele ressalta que embora Hobbes seja reconhecido por sua teoria política, ele dá ênfase à natureza humana e à comunicação, já que o animal político é animal faltante. Analogamente, tanto indivíduos constituem um estado, quanto o discurso mental é constituído antes do discurso público.



[i] HACKING, I. Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp, 1999. 2. O discurso mental de Thomas Hobbes – p 23.

[ii] Aqui cabe relembrar que no idealismo de Berkeley não existia matéria, todos os existentes eram mentais.

[iii] Omitimos as citações a Hobbes, se é o caso referir ao original. 

sábado, 7 de janeiro de 2023

NP PN

Trata do paradoxo das existenciais negativas singulares, um problema para a teoria referencialista do significado[i]

Conforme já dito[ii], para a teoria referencialista do significado o significado é o próprio objeto e, no caso dos nomes próprios, a pessoa referida. Ademais das objeções apontadas, Sagid aponta quatro desafios que essa teoria deve superar (quatro enigmas): substitutividade, terceiro excluído, existenciais negativas e enigma de Frege. Desses, será analisado agora o das existenciais negativas, particularmente, procurar-se-á saber se a frase “Papai Noel não existe” é verdadeira.

Ora, para os casos de pessoas, por exemplo, “Messi é argentino”, temos que a frase é verdadeira se Messi tem a propriedade de ser argentino. “Messi existe” ou “Messi não existe” também são frases que podem ter seu valor de verdade pela introdução de “Messi” no discurso e da referência a ele, mas a frase “Papai Noel não existe” é verdadeira ou falsa? A princípio, pelo senso comum, ela parece ser verdadeira, porém, para ser verdadeira ela deve ser dotada de significado e, pelo princípio da composicionalidade, cada expressão dela deve ser verdadeira e dotada de significado. Então, o significado de “Papai Noel” é seu referente, mas quem é o referente de “Papai Noel”? É o próprio Papai Noel que, por consequência, existe, mas Papai Noel não existe, conforme enunciado inicial e, portanto, Papai Noel existe e não existe.

O paradoxo das existenciais negativas singulares pode ser formalizado pelas premissas que se seguem:

P1: “Papai Noel não existe” é verdadeira.

P2: Se “Papai Noel não existe” é verdadeira, então tem significado.

P3: Se “Papai Noel não existe” tem significado, então “Papai Noel” tem significado.

P4: O significado de “Papai Noel” é apenas seu referente, que é o próprio Papai Noel.

P5: Se o nome “Papai Noel” tem significado e seu significado é apenas seu referente, então Papai Noel existe.

P6: Se Papai Noel existe, então a frase “Papai Noel não existe” é falsa.

P7: A frase “Papai Noel não existe” é falsa.

Conclusão: “Papai Noel não existe” é verdadeira e falsa

 O paradoxo[iii] implica que a teoria referencialista do significado para nomes próprios não nega a existência de nada[iv]. Mas os referencialistas tentam resolver esse paradoxo de duas maneiras: rejeitando P1 ou rejeitando P5. Ao rejeitar P1, os referencialistas respondem que a frase “Papai Noel não existe” não é nem falsa e nem verdadeira, mas destituída de significado, como que se fosse um ruído. Mas isso é implausível porque a frase parece ter significado, nós a entendemos... E, por que não teria?

Uma saída, nessa argumentação, seria dizer que a frase “Papai Noel não existe” não tem significado literalmente, mas, se usarmos nossa imaginação, podemos fingir que Papai Noel existe ou não[v]. Porém, tratar as existenciais negativos em jogos de faz de conta não seria considerado um uso sério da linguagem, haja visto que até mesmo a ciência já fez uso de conjecturas, como no caso do planeta Vulcano postulado por Le Verrier[vi] e sua “não existência” foi considerada uma importante descoberta cientifica. Ora, há uma parcela do discurso que não envolve o faz de conta e cria dificuldades para essa argumentação referencialista, posto que as pessoas não estavam fazendo de conta que Vulcano existia[vii], mas o mesmo era parte do discurso científico consensuado em determinado momento histórico.

Por outro lado, ao considerarmos P5 falsa, consideramos que mesmo que Papai Noel seja verdadeiro e tenha significado, ele não existe e, ainda assim, podemos falar sobre ele. Essa é a proposta de Meinong: embora intuitivamente pensemos que a realidade inclui somente o que existe, para ele, ela também inclui o que não existe e até podemos atribuir propriedades a objetos inexistentes como é o caso do cachimbo de Sherlock Holmes ou de um enunciado que diga que a montanha de ouro é feita de ouro. Resumindo, existem objetos inexistentes, como Pégaso, que é um cavalo alado, mas não existe.

Restaria, nessa tentativa de explicação referencialista, explicar o que são objetos inexistentes: onde eles residem? Qual a sua estrutura? Isso nos levaria a uma metafísica dos inexistentes que deveria versar sobre a natureza dos inexistentes para tornar o argumento plausível, o que certamente traria enorme contenda. Conclui-se que as duas alternativas referencialistas são implausíveis, seja considerar as existenciais negativas não dotadas de significado ou aceitar os inexistentes como existentes.



[i] Recortes da Aula 08 - Paradoxo das existenciais negativas - CURSO IF, filosofia da linguagem do professor Sagid Salles: https://www.youtube.com/watch?v=_3GtmNZ-QRY&ab_channel=ThePhilosophersDAO. NP PN: Nome Próprio Papai Noel.

[iii] Sagid explica que o paradoxo tem a função de mostrar que um argumento aparentemente válido, com premissas aparentemente válidas, chega a uma conclusão falsa. Mas para um argumento ser válido, a verdade da conclusão se extrai da verdade das premissas. Então, para o paradoxo, algo é falso, ou as premissas ou a validade do argumento.

[iv] Como negar a existência de algo cujo significado é o próprio objeto, a própria pessoa?

[v] É a “teoria do faz de conta”, cuja referência é apontada por Sagid: Mimesis as Make-Believe - On the Foundations of the Representational Arts, de Kendall L. Walton. Para ver também: The Logical Status of Fictional Discourse, de John R. Searle. Uma frase pode ser verdadeira em um jogo de faz de conta, assim como Sherlock Holmes é um detetive somente no livro.

[vii] Ver: https://revistas.ufg.br/philosophos/article/view/37530, SALLES, S. Fazendo de conta que Vulcano não existe.