sábado, 30 de novembro de 2019

Parasita[i]

Queria falar um pouco sobre um vazio-de-si não abstrato, mas concreto e não individual, mas coletivo. Este vazio-de-si é uma casa onde mora uma família. A casa-em-si poderia ser um vazio-em-si, assim como a família-em-si poderia ser um vazio-em-si, mas aqui falamos especificamente da família e da casa, juntas. Esse vazio-em-si existe? Existe uma casa concebida de tal modo que proporcione tal sensação? Existe, mas não é autoimune, como se propõe.
A casa que falamos é moderna, com suas formas retangulares lisas e limpas, com concreto aparente e um vazio penetrante. Casa de arquiteto, feita por arquiteto, para ele mesmo. A sala grande divide espaço com um amplo gramado separado por uma imensa porta de vidro lisa e limpa. Nada escapa a tamanha longitude e frieza... Será? A casa possui camadas, andares: abaixo a rua e a garagem, depois a sala-copa-cozinha e por fim os quartos. Espaços vazados, longilíneos e longitudinais.
A casa é grande, tão grande que é duas. Existe dentro dessa casa, no porão, uma casa desconhecida, com acesso escondido: é a casa da guerra. Ela é feita para não ser descoberta, para que se possa viver em segredo, longe da invasão inimiga. E é no vazio-de-si prometido que começam a aparecer parasitas que não são vistos ou percebidos por anos. Na casa moram pessoas que ali vivem e se alimentam sem que a família-em-si saiba, pois a família-em-si acredita no vazio-de-si prometido.
Família rica e gentil. Família bonita, limpa e cheirosa. Existe família assim, sem defeito? O homem é um defeito-em-si. Tudo o que vive tem defeito. A família rica e gentil (pai, mãe, filho e filha) tem sua contraparte no subúrbio, na sobrevida. Para cada família rica assim existem iguais famílias pobres de pais, mães, filhos e filhas na proporção de 10, 20, 100 vezes. Isso é o capitalismo, cuja base é o lucro, deveríamos saber e não nos assustar.
A “família Doriana” não sabe que alguém assalta sua geladeira toda noite, dança em sua sala quando saem para jantar e descansam sob o sol do jardim nos domingos de passeio. O vazio-de-si traz segurança tamanha que a reboque vem à ingenuidade. A família precisa de funcionários: motorista, governanta, professores particulares, tutores. São parasitas. Parasitas pobres e de cheiro azedo. Cheiro que faz ultrapassar limites imaginários e imaginados.
Quem são os parasitas mesmo? O povo pobre relegado a condições precárias que devem servir diuturnamente ou a família no seu vazio-de-si oneroso? A família “não tem culpa”, a família rica e gentil tem problemas... E não sabe o que o filho caçula sabe. A família rica não sabe até que ponto haverá famílias pobres para servi-la ou até quando famílias aceitarão ser submissas e expropriadas. E também não sabe que as famílias pobres têm que sobreviver. Até quando essa equação matemática será igual a zero?