sábado, 24 de janeiro de 2015

O sistema e eu

Vivemos em um sistema ocidental capitalista normativo. É sistema porque é abrangente, complexo e abstrato. É ocidental porque revela uma característica cultural, religiosa e comportamental arrogante, prepotente e intolerante. É capitalista porque baseado no capital que pode ser mais popularmente associado ao dinheiro. É normativo porque mostra certos valores que devem ser seguidos e, fora dos quais, desvio-se da conduta estabelecida.

Nascemos, vivemos e nos relacionamos de acordo com esse pressuposto imperativo. Às vezes, percebe-se um fechamento total no sentido de possibilidade de mundo, seja no que tange a diversidade e diferença. Outras vezes, abre-se e bem se vive mas, guiando-se por ele. Mais vezes ou menos vezes, também é possível perceber que esse sistema é dado e é artificial, muito embora seja tomado como segunda natureza. Independente desses comportamentos, precisamos achar uma saída.

A saída mais correta e que promete melhores resultados é a ruptura. Mas somos resultado do sistema, fazemos parte dele; e é muito difícil amputar um órgão voluntariamente, mesmo que cancerígeno. Já que falta essa coragem e discernimento, resta-nos criticar positivamente quais possíveis soluções para que se caminhe no sentido de uma reforma. É triste, mas é uma constatação do que talvez seja possível no momento.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Je suis Charlie?

O assassinato dos jornalistas franceses toma conta da mídia e do debate, tamanho foi o impacto causado (conforme Leonardo Boff, a estratégia do terrorismo é essa de dominar mentes). O êxito dos matadores pode ser visto em vídeos e fotos: sinal de um tempo em que o filme é ao vivo, mas quem morre não é o personagem. Ou é? Teriam os humoristas se tornado reféns do seu trabalho? De fato, as revistas ficaram sujas de sangue...

Muitas das análises que circulam pela mídia não dão conta de uma tomada de posição: prega-se a liberdade de expressão, mas com cautela. Contudo, para os cartunistas, esse paradoxo não existia: era liberdade radical. Era guerra. E o inimigo a ser morto é um morto muito vivo: o profeta Maomé (nesse caso, pois nada se poupava no humor praticado por eles). Se as imagens e os símbolos são poderosos na religião, não menos eram os desenhos destemidos que visavam desconstruir aquele imaginário.

Lá, na França, Sartre formulou uma liberdade responsável que termina quando começa a do outro. Mas Charlie prefere a liberdade extrema que foi abalada por extremistas. Nem muito ao céu, nem muito à terra, para nós, simples mortais. Para Charlie, sua luta não foi em vão: descobre o véu de uma falsa globalização, de um ocidente que não reina e teme.

De nossa parte, entendemos que a liberdade de informação é fundamental. Informação para escolher, decidir de que lado estamos. Sem informação ficamos a mercê de meias coisas, meias verdades. A liberdade de opinião é primordial para que cada um coloque suas ideias e fale abertamente sobre o que bem entender. Mas a contradição do humor incomoda... É para rir ou para chorar? Até que ponto deve chegar um tipo de humor que agride e desafia crenças e verdades individuais?

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Colocando água no capital cultural*

  A água tem três estados: líquido, gasoso e sólido, assim como o capital cultural também tem três estados: incorporado, objetivado e institucionalizado.

  A água é perene em seu estado líquido, porque está dentro das condições de temperatura presentes em grande parte (e tempo) do mundo humanamente habitável. O capital cultural perene é o incorporado porque está na pessoa, desde seu nascimento, no ar que ela respira, em tudo que ela vê, toca, sente e se relaciona - é o habitus. É não perceptível, sua transmissão acontece dissimulada e sorrateiramente. Vem de berço e se perpetua no convívio social. Faz parte de cada um: "é um ter que virou ser".

  Mas, se aquecida, a água evapora. Não se perdeu, está por aí, mas somente conseguimos pensar na água "evaporada" se nos referenciarmos à água líquida. Da mesma forma é o capital cultural objetivado: são os bens culturais. Bens culturais somente fazem sentido se alguém os entende, ou seja, se este capital cultural objetivado está incorporado em alguém. Ele objetivado tem valor econômico, mas tem valor simbólico quando incorporado.

  Por outro lado, em que momento conseguimos "agarrar" a água, senti-la integralmente? De fato, é quando vira gelo. Assim como o capital cultural que se institucionaliza sob a forma dos certificados escolares, dos diplomas. É aí que o capital cultural é, é quando tem valor e está garantido, não há necessidade de se demonstrar que se tem o capital cultural incorporado porque ele está objetivado institucionalmente naquele objeto que já responde por si só, autonomamente.

Capital cultural: semente da desigualdade de desempenho escolar entre crianças de diferentes classes sociais.

  Não podemos pensar que o desempenho escolar depende estritamente de aptidões ou dons naturais. Nem das teorias de capital humano que exploram o viés econômico sem observarem o capital cultural prévio, difícil de ser medido em termos quantitativos. O capital cultural é a linguagem de cada família, quanto mais capital cultural, mais cultura, mais contato com as classes cultas, mais usufruto. É o capital cultural que precisa ser investigado ao se tratar dos investimentos em educação, porque a as classes dominantes já o herdam e nele seus filhos investem, buscando o resultado financeiro que é o diploma que vale os melhores empregos. Perpetua-se o capital cultural, perpetua-se a ideologia de dominação, assim como a escola chancela o capital cultural e reproduz as estruturas da sociedade. 

  Do que mesmo depende o sucesso escolar? (...)
_______
* Os três estados do capital cultural - Pierre Bourdieu