sábado, 27 de março de 2021

Em busca das práticas focais

Uma introdução ao pensamento de Albert Borgmann[i]

Heidegger. De acordo com Borges, a terminologia de Borgmann de paradigma do dispositivo é oriunda de sua filiação a Heidegger, que traz a Gestell (enquadramento) como essência do tecnológico, em um ponto de vista transcendentalista e metafísico. Heidegger busca, segundo Borges, pela causa última do fenômeno: meta como além do fenômeno, que é o natural, físico[ii]. Em The question concerning technology ele estuda a essência da tecnologia e como se relacionar com ela a partir de um relacionamento livre. Heidegger também recupera o conceito de aletheia para dizer que o artefato desvela uma intenção oculta, ou seja, ele não é somente meio, mas escolha. E, enquadramento na perspectiva tecnológica, isto é, a visão que se faz da técnica.

Borgmann. Para Borgmann, a tecnologia nos traz uma relação menos intensa com a realidade, de desengajamento. De acordo com seus estudos em tecnologia, há 3 visões: 1.) substantiva, segundo a qual a tecnologia molda a sociedade; 2.) instrumentalista, com o homem fazedor de artefatos e a tecnologia com objetos neutros; 3.) pluralista, abordando tendências e complexidades. E Borgmann tenta incorporar as virtudes de cada uma delas.

A noção de paradigma do dispositivo cumpre seu propósito ao fornecer commodities e nos afasta de questões essenciais que, para Borgmann, são as práticas focais. Por essa perspectiva, compramos produtos prontos e não entendemos seu processo de feitura, por isso devemos por a tecnologia e focar[iii]. Ao restaurar as práticas excluídas pelo paradigma da tecnologia usamos a tecnologia como um meio para chegarmos às práticas focais objetivadas como fim e, com isso, um relacionamento mais profundo com a realidade[iv].

Os problemas da hipermodernidade, a informação na virada do milênio e a cultura da tecnologia

Borges ressalta a abordagem do pós-modernismo tecnológico pelas influências de Baudrillard, Derrida e Lyotard e o conceito de hiper-realidade, também em sincronia com Arthur Kroker. Conforme Borgmann, sobre a hipermodernidade: “design de um universo tecnologicamente sofisticado e glamourosamente irreal, distinguindo por sua hiper-realidade, hiperatividade e hiper inteligência”, o que traz desesperança e melancolia, além de problemas relacionados a segurança, liberdade e desconexão com a realidade.

A solução, Borgmann aponta, seria um realismo pós-moderno associando realismo focal, vigor paciente e celebração comunitária. Como o universo cibernético tira o foco, ele não deve substituir as relações incorporadas. Nesse sentido, é preciso refutar o imediatismo, buscar valores comuns[v] e não tomar realidade, natureza e relacionamentos como commodities. Se a internet e a quantidade de informação que consumimos acentua o distanciamento com a realidade tentando usurpá-la, se torna necessária uma teoria e uma ética sobre ela. Todos esses dados e informações não constituem conhecimento. As coisas se transformam em commodities sem significado e o ciberespaço desfoca nossos sentidos.

Embora ressaltando esses pontos, Borgmann tem uma visão otimista em relação à tecnologia da informação, desde que equilibrada e sempre se engajando com a realidade, ao modo das considerações de Byung-Chul Han[vi].

Por fim, Borgmann traz comparações da tecnologia com o cristianismo, em termos de promessas. Reforçando, a tecnologia não substitui a presença incorporada que ocorre pelo engajamento comunitário, convívio social, festas e solidariedade. Na visão cristã, a natureza é uma graça recebida, por isso temos que cuidar dela e buscar o equilíbrio na Bioengenharia. Ele usa o cristianismo para pensar natureza humana na cultura tecnológica e indica que uso da cultura da palavra (conversar) e da mesa (cozinhar) pode ajudar a superar os mal-estares.



[i] Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020. Conforme capítulo 3, Hipermodernidade, informações e cultura da tecnologia – Albert Borgmann, por Luiz Adriano Gonçalves Borges.

[ii] Não nos parece interessar esse tipo de metafísica no estudo da tecnologia, mas temos de verificar as consequências dessas visões.

[iii] A noção de foco já foi tratada aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/02/filosofia-da-tecnologia-tres-enfoques.html. Além do dito lá, aqui é acrescentado que a noção de foco se transforma no Iluminismo, a partir de noções técnicas na geometria e ótica, como algo central, claro, articulado.

[iv] Borges ressalta a influência de Borgmann na relação ética e virtuosa com a tecnologia, como em Higgs, Light e Strong (2000) e Shannon Vallor (2016).

[v] As referências aqui são Alister MacIntyre, Charles Taylor, Michael Sandel e Michael Walzer.

quarta-feira, 17 de março de 2021

As circunstâncias da vida

Uma introdução ao pensamento de Ortega y Gasset a partir do convite de Cupani[i]

Cupani traz inicialmente o conceito de raciovitalismo de Ortega y Gasset, segundo o qual a razão, sem prejuízo de sua objetividade, responde às necessidades vitais. O homem tem necessidades biológicas, como viver, mas vive porque quer, isto é, pela sua subjetividade, por um ato de liberdade. E suas atividades são para satisfazer necessidades.

Na natureza, circunstâncias podem levar a que o reportório primitivo de satisfação seja suspenso por um segundo reportório de produção. Para obter o que não há, o homem projeta. Então, seus atos técnicos são reações contra as imposições da natureza, que ele visa reformar gerando uma sobre natureza.

Cupani segue acrescentando que, para Ortega y Gasset, satisfazer-se faz parte do reportório biológico dos atos dos animais, mas é pela técnica que se anulam as necessidades e quando elas deixam de ser um problema. Ao suprimir a necessidade, o homem reduz seu esforço e acaso adaptando o meio a si próprio.

Entretanto, ele produz o supérfluo, pois não quer somente viver, mas viver bem. Buscando um viver bem ilimitado, o bem estar se torna a necessidade das necessidades e não um suposto progresso que logo, é abandonado por circunstâncias, sejam elas possibilidades ou dificuldades.

Para Gasset, o homem busca uma pretensão de ser, um programa de vida que se molda nas circunstâncias da natureza e do mundo. Pois bem, como a vida não é dada, ela é um constante problema na qual o homem está na situação de técnico. Viver não é contemplação, mas produção [que pode exigir uma teoria].

E daí as várias técnicas usadas em cada época ou cultura, guiadas pelo nosso desejo de sermos algo. Conforme Cupani, um dos aspectos mais conhecidos da Meditação, de Ortega y Gasset, é a mudança da técnica que passa da 1.) técnica do acaso, para a 2.) técnica do artesão chegando até a 3.) técnica do técnico.

1.) Primórdios e povos primitivos: baseada em técnicas escassas. O ser humano não sabe que pode inventar e produz coisas por acaso, diversão, etc. Ele não se sente como homo faber.

2.) Grécia, Roma e Idade Média: aumenta repertório técnico, mas sua perda não é perda de sobrevivência, ou seja, não há crises técnicas. A técnica não é vista como pertencente ao animal, mas não passa de um dote. É a atividade dos artesãos, a techne grega que não visa uma invenção pois se volta para a tradição e apresenta lentas melhorias. Ressalta-se que o homem produz instrumentos, não máquinas

 3.) Século XX: técnica já se apresenta como algo não natural, mas uma peculiaridade do homem que vai além do animal. De ilimitada, chega a ser antitética pois para lá do que imagina nossa consciência. Chega-se ao império das máquinas, da manipulação passa-se à fabricação e o homem relegado a um papel secundário.

Se, antes, o técnico estava preso a uma finalidade proposta, aqui o engenheiro já tem consciência que pode inventar. Na ciência moderna a ciência física nasce da técnica, da análise racional que propicia uma nova experiência das coisas. Mas, em caso de perda, é mais difícil recuperar. E, por todo poder que pode alcançar, ela ameaça.

Contudo, se é o tempo da fé na técnica, também é o tempo que vida se torna vazia pois, de tão formal, perde o conteúdo. E, assim, a plenitude tecnológica pode levar ao vazio existencial.



[i] Conforme Cupani, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. 3. ed. - Florianópolis: Editora da UFSC, 2016. Capítulo 2: Estudos Clássicos: Ortega y Gasset. Baseado na curta obra Meditação, segundo Cupani.

terça-feira, 16 de março de 2021

O homem maravilhado

Do maravilhar-se antigo ao contemporâneo[i]

Álvaro Vieira Pinto traz a concepção grega do pensar racional associado ao estado de espanto. É o maravilhar-se, seja no Teeteto, de Platão, com a Íris (filosofia) filha de Taumante (maravilha) ou na Metafísica, de Aristóteles, trazendo o filósofo como amante de mitos, o mito composto de maravilhas.

Entretanto, para Vieira, ao falar dos gregos não faz sentido falar em “origem da filosofia” pois, para ele, ela surge com a capacidade de pensar. O homem antigo, segundo ele, se definia pelo maravilhar-se pelos céus, ordem perfeita, imutável e inexplicável e que, portanto, procurava descobrir suas causas.

Sobre o maravilhar-se, Vieira faz uma digressão, trazendo uma série de traduções deturpadas da Antígona, de Sófocles, que mostram o homem como uma das maravilhas da natureza, corrompendo o sentido original. Segundo Vieira, Sófocles não faz menção à noção de maravilha e a tradução da passagem é: “há muitas coisas terríveis, mas nenhuma é mais terrível que o homem”. A má-fé teria se originado da tradução errada do termo “deinós” como maravilha, ao invés de terrível, no contexto correto da peça .

Porém, a atitude do homem antigo se contrapõe à do homem atual pois, se esse reedita o velho espanto, ele se maravilha diante de suas próprias obras. E Vieira Pinto caracteriza justamente esse novo estado de maravilha como sendo a concepção filosófica ingênua. A chamada “era tecnológica” não passa de um embasbacamento com a ciência moderna e há, segundo Vieira, um exercício de futurologia que não deixa acabar o encanto atual pois, se por um lado, há intenção justa, por outro, há a ideologia da propaganda das grandes nações metropolitanas.

Vieira Pinto analisa o espanto em seu fundamento histórico e social. No início, havia debilidade das forças produtivas e então o homem se impressiona com a natureza material. Acontece que o ambiente rústico se transforma em urbano alterando a função cosmogônica da natureza para o homem. Ao criar uma natureza artificial e ideológica, quem não tem acesso a tal conforto está na pobreza ou atraso. Os objetos de conforto, por exemplo, os meios de transporte, passam a serem vistos como naturais e uma situação como a falta luz já significa anormalidade.

Se o mundo dos objetos é fonte de reprodução indefinida, o espanto pelos objetos artificiais vira ideologia. Eles devem ser substituídos constantemente para não se banalizarem e o próprio maravilhar-se se naturaliza[ii]. Outrora[iii], o assombro era a regularidade da realidade e havia a tentativa de explicar essa ordem, mas a multiplicação de artefatos reduz nossa capacidade de maravilhamento. O espanto já não é mais com o Universo, mas com o próprio “fazer” humano que ocasiona que percamos de vista nossa noção biológica e nos tornemos os criadores do mundo.

Pois que há o pensamento ingênuo que se agarra ao absolutismo de uma época e o crítico como fenômeno histórico e social, mediante o qual se pode ver que sempre os possuidores de bem ideologizam o presente e, no nosso caso, os trabalhadores esperam pelo barateamento dos bens. O pensamento ingênuo faz com que, em seu maravilhamento, os grupos sociais dominantes vejam sua época como privilegiada, como término de um processo de conquistas. Assim, eles sacralizam o presente para evitar a mudança e domesticar o futuro. Evitando falar em transformações políticas e sociais, para eles importa as realizações técnicas sempre progredindo.



[i] VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. O homem maravilhado - p 29 e seguintes.

[ii] Vieira Pinto cita que apenas quatro meses após a ida a Lua as pessoas já estavam cansadas de reverem a cena.

[iii] Reforçando, quando do fraco desenvolvimento das forcas sociais produtivas.

domingo, 14 de março de 2021

Girando em torno da metafísica

Milton Vargas mostra uma relação histórica imanente entre metafisica, como raiz da realidade, e técnica[i]

Metafísica. Se a metafísica, hoje, tem uma conotação pejorativa tratando de falsos problemas ou um jogo mental sem sentido diferente da ciência, no início do século XX ela pode ressurgir como base da realidade concreta. Isso indica que há uma conexão entre metafísica e vida humana, sobre a edificação do homem no mundo[ii] e ela traria a raiz da realidade, ou seja, a maneira de pensar e agir de uma época.

Nesse sentido, a metafisica é uma teoria da realidade radical e busca a certeza radical em que as demais se baseiam. A raiz aqui abordada é “mi-vida”, isto é, a realidade. Não a vida humana, mas minha vida que é céu, terra, os homens, as ciências e a metafisica. Eu e as coisas.

Para cada ciência há uma metafisica, em cada época. Milton Vargas identifica cinco momentos históricos: 1.) Grécia clássica; 2.) antiguidade medieval; 3.) renascimento; 4.) Europa barroca; 5.) mundo ocidental hoje e a metafisica responsável pelos prolegômenos científicos. Nesse histórico, 3 perguntas a norteiam: “o que é?”, “o que existe?” e “o que há?”.

O que é? A pergunta grega clássica “o que é?” revela a physis como substrato por detrás da aparência e que é uma crença básica, anterior ao discurso. Para os gregos, há uma crença na certeza do mundo de onde vem o espanto e a pergunta pelo ser. É a metafisica de Aristóteles, a teoria grega da realidade radical, teoria ontológica que mostra a substância por detrás da aparência.

 Então, aqui não cabem as perguntas “o que existe?” e “o que há?” pois há certeza da substância. Relacionando metafísica e ciências, a matemática grega (de Tales a Euclides) é o prolegômeno. São três etapas: parte-se da sensação, que é individual, seguindo-se ao raciocínio, que é universal, aportando-se na inteligência, quer dizer, no inteligível. A ciência leva à postulação de uma metafisica percorrendo o caminho que vai do sensível para a geometria e aritmética dos objetos matemáticos até a metafisica que é livre de mutabilidades: são as ideias platônicas e as substâncias aristotélicas.

Entretanto, na Idade Média, a certeza grega se desfaz e a crença passa da physis para Deus, como sustentáculo do mundo exterior. São Tomas invoca a mesma metafísica, mas com outra verdade: o ser que era sustância passa a ser Deus como realidade primeira e colocando a teologia no centro do pensamento.

O que existe? Porém, no renascimento, Deus perde força no conjunto das ultimidades e a metafísica moderna, ao duvidar da realidade do mundo, traz uma nova questão: “o que existe?”.  Aqui, a fonte da realidade radical é o pensamento, seja dos racionalistas, com o cogito e razão, seja dos empiristas, com a tábula rasa, na qual percepções e ideias ali são inscritas.

Milton Vargas mostra o paralelismo do desenvolvimento entre metafisica e ciência, tendo como prolegômeno a mecânica de Galileu que “primeiro concebe com a mente”. Essa realidade mental enxerga a natureza como máquina, em oposição aos gregos, para os quais a physis era um organismo animado.

E a metafísica atingirá o clímax com a Dinâmica de Leibniz que tem a força como elemento constitutivo da realidade. Daí surge o conceito das mônadas, que não têm extensão nem matéria e, também, a teologia racionalista [do melhor dos mundos possíveis].

Mas, depois disso, há uma ocultação do ser do pensamento que já não é mais realidade radical, pois o que tem a ver com a coisa tapa a coisa. O ser do pensamento cobre o ser psicológico subordinando a metafisica à psique humana, assim como a verdade formal oriunda da revolução logico-linguística traz uma aversão à metafisica a partir do positivismo e filosofias analíticas.

O que há? Por detrás desse ocultamento há um todo abrangente e um saber único. Perante as certezas particulares, urge uma nova metafisica que vem da pergunta “o que há?”. Se na Idade Moderna o pensamento estava associado à consciência que, através de sua clareza e distinção, consciencializava tudo em busca da verdade lógica depois, pela lógica e pela linguagem, formalizou a matemática até chegar ao computador eletrônico. Mas, Jung traz uma nova concepção do pensar inconsciente procedente de experiências ancestrais e cósmicas.

O pensamento aparece subordinado e vai do individual e transcendental para a totalidade abrangente. Tem algo na mente que não é, mas há e se estabelece um processo imanente na batalha entre o consciente e o inconsciente. Jung, em seu inconsciente, conceitualiza uma matriz dos fenômenos psíquicos mãe de tudo, uma Pan Mater. E é essa psicologia profunda que pode gerar uma nova metafisica.

A nova manifestação do ser aparece em Kierkegaard pela subjetividade que não reconcilia fé e conhecimento, em Nietzsche com o fim da transcendência e a ontologia do ser do Dasein, ser imanente de Heidegger.

Voltando ao início, a pergunta moderna “o que há?” vem respondida pelo mi-vida. A realidade radical vem do profundíssimo de nós e de uma tensão dialética que se da no plano de imanência, por um lado por uma tendência anti-noética e, por outro, por um voltar-se racional ao mundo. Tal nova formulação da teoria da realidade radical é imanente e vem das profundidades de uma alma ancestral e essa nova metafisica pode ser o modelo de ciência, da psicologia profunda para as realidades últimas.



[i] Conforme Crenças, ciências e metafísica, Capítulo 2 de Vargas, M. (1994). Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega.

[ii] Milton Vargas traz nesse artigo concepções de Julián Marías e Ortega y Gasset que trataremos indiscriminadamente, pois o que nos importa é a conceituação.

sábado, 13 de março de 2021

Elogio da Técnica

Panorama do pensamento de Bacca, filósofo da tecnologia do ponto de vista da visão técnica [i]

Contexto. Bacca tem uma obra extensa, complexa e engenhosa, portanto, Vasconcelos traz algumas ideias e anotações. Se, para Bacca, a técnica tem função humanizadora, ele viu os problemas no tempo da Guerra Fria. De formação neotomista, entendia a realidade de modo tecnocêntrico e passou de uma visão escolástica até marxista.

Vasconcelos traz a tipologia da técnica de Luis Carlos Martín Jiménez baseada em critérios epistemológicos, ontológicos e axiológicos:

1.) Ideia grega de técnica como mímese da natureza.

2.) Ideia cristão de técnica como arte servil.

3.) Ideia prometeica de técnica gestada na Revolução Científica.

4.) Técnica como projeção orgânica (Kapp).

5.) Automatismo.

6.) Evento determinante de uma época.

7.) Ortopedia Humana (Ortega y Gasset).

8.) Ideia dialética atenta às morfologias técnicas concretas: aqui Bacca é predecessor.

Tecnologia. Bacca classifica ciência e técnica como fazendo parte de nossa atmosfera cultural, em oposição aos tempos medievais onde prevalecia a teologia. Ele traz a superação do natural pelo artificial, capaz de sugar o homem e atrofiar nosso cérebro, transubstanciando tudo em artefatos.

Segundo Bacca, o homem causa o artificial e pode humanizar o Universo, que é regido pelo acaso e entropia[ii], colocando ordem na desordem[iii] e potencializando a vida: “O homem, através da técnica, através do trabalho, será o único que poderá impor ao mundo o caráter triplo do seu efeito: a ser reformado por ele, a ser feito à imagem das ideias do homem, a ser feito para os propósitos do homem.” (p. 42).

Telos. Bacca enfatiza o papel da criatividade, associada ao caos e ao novo, estado de máxima potência e algo metafísico com poder criador pela técnica, que é nossa força energética capaz de estabelecer ordem. Nesse sentido, a técnica é usada para manter ou repor a perfeição na Natureza, com fim supremo.

Bacca traz a fenomenologia do ato criador, puro e infinito, chegando a colocar o Universo como sendo composto pelo um, pelo muitos e pela criatividade. Criatividade essa que, correlacionada com a técnica contemporânea, poderia nos levar ao infinito e a pensar acerca da imortalidade[iv].



[i] Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020. Conforme capítulo 2, Entre técnica, artificialidade e criatividade – Juan David García Bacca, por Bruno Vasconcelos de Almeida.

[ii] A entropia é uma grandeza termodinâmica associada à irreversibilidade dos estados de um sistema físico. É comumente associada ao grau de “desordem” ou “aleatoriedade” de um sistema. Conforme HELERBROCK, Rafael. "O que é entropia?"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/fisica/o-que-e-entropia.htm. Acesso em 13 de março de 2021.

[iii] De certa forma contrasta com uma ideia da natureza ordenada.

[iv] Criatividade tem sido tema transversal nas abordagens técnico-científicas. Seu uso pode ser no sentido racional de “descoberta” (ex. Feyerabend), mas também reflexivo em um sentido ético de conscientização (Han, Anders).

domingo, 7 de março de 2021

O despertar de um sono profundamente dogmático

Há uma passagem famosa em filosofia que é a referência de Kant a seu sono dogmático, que teria sido desperto por Hume. O sono dogmático de Kant era sua filiação natural ao racionalismo e, daí, racionalismo dogmático. A crença fiel em uma faculdade racional que poderia ascender a todas as causas e chegar ao incondicionado, ou seja, uma realidade em si. Essa crença se abala ao entrar em contato com a crença cética humeana, que se dá na experiência. Essa descoberta acordou Kant. Então, todos nós temos nossos sonos dogmáticos. O meu? Basicamente acreditar que trabalho com tecnologia e isso é tudo. Mas será? Vejamos...

De minha parte, como profissional de tecnologia da informação eu deveria me enquadrar no campo dos engenheiros, na classificação de Mitcham e do enfoque analítico, pela divisão de Cupani, ou seja, uma postura de dentro do processo (essas tipologias estão na postagem anterior). E isso de fato sempre ocorreu, pois desde adolescente eu já fiz um colégio técnico em informática (1991), trabalhei como programador (1994) e depois me graduei em Ciências da Computação em 2002, quando comecei no mercado corporativo de TI, além de concluir um MBA em Arquitetura de Soluções em 2012.

Porém, um lado meu sempre esteve descontente com esse papel somente utilitário e vinculante de minha vida com um trabalho por vezes alienante. Tal questão existencial me levou ao ingresso e conclusão de uma graduação em Filosofia em 2016, que definitivamente mudou meu olhar em relação ao mundo, abrindo um campo infinito de conhecimento e reflexão.

Não obstante, essa formação não foi suficiente para que eu acordasse de meu sono dogmático. Findada a graduação, a vida continuou. Aqui e ali e, principalmente nesse blog, sempre tentei manter um contato com a reflexão filosófica, mas aleatoriamente (e ocasionalmente). Nesse sentido, eu também sempre tentei me aproximar de temas que de certa forma se relacionasse com a TI. Se a filosofia é um estudo sem fim, conforme dissemos, ela o é também, muitas vezes, sem fins. Mas somos práticos, por isso essa tentativa de aproximação que passou por um estudo mais de perto da filosofia da mente, depois filosofia analítica e correlatos. Talvez tentando fugir de uma metafísica que, posto que ainda presente nesses campos, é terreno de vastas dúvidas.

Nessas áreas, o que me interessou foi, na filosofia da mente a busca por uma teoria epifenomenalista (metafísica!!) e depois na analítica a conceituação lógica e a abordagem linguística (científica). Porém, esses estudos não foram profícuos a ponto de me trazerem algum “resultado”, muito embora tenham sido enriquecedores em muitos aspectos.

Tudo continuava como dantes no quartel de Abrantes, até que um fato profissional me intrigou. Uma dúvida ética no uso da tecnologia, uma instrumentalização de uma política social com impactos econômicos e políticos. Eu sempre vi a tecnologia como meio para a emancipação, embora obviamente sabendo das distorções no uso e acesso. Porém, em um país como o nosso, não pode deixar de ser questão essencial ver a tecnologia sem uma associação direta com nossa desigual distribuição social e de renda, com as formas de acesso e mesmo com a nossa responsabilização profissional, que seja uma tomada de consciência.

Em meio a essa polêmica, eu precisava refletir sobre o assunto e me posicionar (mesmo que para mim mesmo). Todavia, eu não tinha e não tenho base para tal, mesmo com a bagagem da filosofia eu me ancoraria em um opinionismo vulgar. Isso me angustiou e levou a uma busca que me direcionou para a Filosofia da Tecnologia. De novo, um espectro amplo, mas concreto. O que tenho visto, até agora, é que a técnica é o substrato da vida humana e tomar essa visão histórica é crucial para que eu possa ter elementos para uma opinião ou conceituação mais embasada e sem relegar o esforço histórico. Será que conseguirei? Não sei, no momento ainda estou desembaçando a vista...

sábado, 6 de março de 2021

Catálogo tecnológico

Abordagem dos variados aspectos da Filosofia da Tecnologia por Alberto Cupani – guia introdutório, catálogo de conceitos e aspectos[i]

Atentando na tecnologia. Cupani nos mostra que, ao refletirmos sobre a tecnologia, não encontramos um objeto determinado, visto que ela nos rodeia podendo chegar até à atitude ou mentalidade tecnológica. Trata-se de uma realidade polifacetada: há valores envolvidos, controle sobre nossa vida que podem ser bons ou ruins, dependendo do uso e caso.

A sua origem está na técnica, que é nossa capacidade de fazer coisas, em oposição ao agir que é um fim em si mesmo. Então, é a manifestação de um saber que cria artefatos mediante o uso de regras e por uma techne, uma habilidade. Isso faz do homo sapiens um homo faber. Porém, a tecnologia moderna muda em relação à tradicional principalmente pelo auxílio da ciência, isto é, uma racionalidade científica aplicada e pela produção em escala.[ii]

Dimensões da tecnologia. Mitcham divide em 4 dimensões.

Objetos: roupas, utensílios, ferramentas, máquinas, letras, números, obras de arte, brinquedos, processos objetivados, até o planeta como um todo, na medida que é modificado pelo homem, pode ser visto como um grande objeto.

Conhecimento: conhecer o mundo, saber científico. 1.) habilidades sensório-motoras: aprendizado intuitivo pela tentativa e erro; 2.) máximas técnicas: articular um fazer bem-sucedido; 3.) regras tecnológicas: transposição prática de leis científicas; 4.) teorias tecnológicas: vinculadas ao fazer e usar.

Atividade humana, seja uma habilidade, inventar, projetar, trabalhar, produzir, usar, construir, cultivar. A engenharia é um esforço sistemático para economizar esforço e se norteia pela eficiência. O uso pode variar em termos da função técnica (revólver dispara um projétil assim, assado), propósito (usou revolver para matar um boi) e a sua utilização efetiva em determinada circunstância (no dia e local X, Z).

Volição: atitude ou manifestação do homem com relação à sociedade. Proteiforme[iii]: sobreviver, controlar ou poder, liberdade, eficiência, realizar ideal humano. Expressa tendências humanas, intenções em si ou transcendentes. Requer análise ética.

Filosofar sobre a tecnologia.

Problemas ontológicos: ser / essência da tecnologia. Expoente é Bunge: mundo composto de objetos materiais; homem altera processos naturais; qual o ser dos artefatos (realidade, naturalidade, bem/mal); autonomia.

Epistemologia (saber): resolução de problemas; ciência versus tecnologia; saber vulgar; regras; leis; teorias; prognósticos; verdade; explicações; paradigmas; tecnociência: o conhecimento científico é artefato tecnológico?

Axiologia (teoria dos valores): valor em si; político; econômico; ético; positivo/negativo/neutro; instrumental; prejudicial; conotação axiológica; sexista; beleza; prazer estético.

Suposições éticas da tecnologia: 1.) o homem é separado da natureza e mais valioso; 2.) o homem deve subjugar a natureza em beneficio próprio; 3.) o homem não é responsável pela natureza; 4.) o homem deve explorar recursos naturais e humanos; 5.) tecnólogos e técnicos não são moralmente responsáveis, não têm escrúpulos éticos ou estéticos já que são de responsabilidade de uma política tecnológica. Essa ética tecnológica gera reações ambientais e protestos sociais.

Hoje há novas éticas: nuclear, ambiental, biomédica, profissional dos engenheiros, computação. As políticas armamentistas e a responsabilidade moral dos profissionais também são pontos críticos, além dos benefícios, custos, riscos e a liberdade.

Cupani traz a divisão de Mitcham da filosofia da tecnologia em duas tradições, por um lado os engenheiros que têm otimismo quanto ao papel da tecnologia, trazendo uma consciência tecnológica, como Kapp, Simondon, Bunge e Bacca. Por outro lado, os humanistas fazem um estudo hermenêutico da tecnologia, seu significado e tradição crítica. Nela estão Rousseau, Jaspers, Heidegger, Ortega y Gasset e Ellul. Já para o autor, haveria um enfoque analítico conceitual, como o de Bunge, uma perspectiva fenomenológica e existencialista baseada na experiência humana e cultura e uma ótica da condição política e sua relação com o poder principalmente com Foucault, Ellul e Feenberg.

Por fim, Cupani remonta ao início da filosofia da tecnologia na academia os anos 50, tendo seu primeiro simpósio em 1965. Paul Durbin teve papel importante na fundação da Society for Philosophy and Technology na década de 70 e Rapp nos congressos internacionais.



[i] Conforme Cupani, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. 3. ed. - Florianópolis: Editora da UFSC, 2016. Capítulo 1: Tecnologia: uma realidade complexa.

[ii] Cupani traz uma série de definições de Carl Mitcham que não vem o caso reproduzir, pois serão objeto de estudo posterior.

[iii] Conforme Wikipedia, Proteu tem o dom da premonição, mas ele se metamorfoseia para não contar aos homens. Há estratégias para achar Proteu, que são reveladas pelas ninfas.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Uma introdução ao pensamento de Álvaro Vieira Pinto

Visão geral e alguns conceitos de Álvaro Vieira Pinto[i]

Freitas ressalta que o que permeia os escritos de Vieira Pinto é a enunciação do conceito de trabalho no Brasil. Visto como ideólogo do desenvolvimento e trazendo o léxico cepalino, Vieira se pergunta sobre o que é trabalhar na periferia sob a dominação econômica e cultural do centro.

Nesse sentido, ele valoriza o uso da técnica e tecnologia para substituir o trabalho manual, porém mostra a situação assimétrica na divisão internacional do trabalho que teria deteriorado os termos da troca propostos por David Ricardo. A qualidade de vida está no centro, na periferia estão os exportadores que, donos de uma consciência ingênua, exportam o ser e importam o não ser.

A valorização da técnica aparece no trabalho de Vieira, como bem nos mostra Freitas, no conceito de amanualidade, isto é, quanto mais elaborada a capacidade de trabalhar, mais humanizado o trabalhador. Em Vieira, há uma antropologia que se desloca para a antropomorfia aproximando a forma-homem da forma-trabalho.

Na medida que aumenta a técnica, o trabalhador toma sua consciência e percebe que pode mudar a realidade que tende à imutabilidade nas mãos da consciência ingênua. Quanto mais elaborada a técnica, mais claramente a consciência se expressa. Para Vieira, não há incultura, mas graus de cultura[ii]. Então, se a ferramenta é precária, há o subdesenvolvimento intelectual. A visão de mundo nos é dada pelo trabalho e suas ferramentas.

Vieira Pinto tematizou o trabalho do ponto de vista de quem trabalha, mas para ele a luta de classes era uma contradição secundária. Pela sua ótica internacionalista, a relação entre desenvolvimento e subdesenvolvimento era aviltante e constituía a contradição primária. Vieira via a fase histórica no Brasil como simultânea e não coetânea, sob uma ótica da antropologia existencial do terceiro mundo: nela há vários estamentos sociais históricos coexistindo.

Conforme dito, então, a luta interna pelo desenvolvimento é representada por um pêndulo que oscila entre a consciência crítica [do trabalhador] que acelera e a consciência ingênua [do exportador] que atrasa. Esse ponto de vista fundado no ferramental, conforme entendemos de Freitas, tem um estatuto epistemológico na aquisição de consciência, tratando-se de um empirio-historicismo.

Freitas conceitua Vieira Pinto como um existencialista que também se utiliza de ferramentas analíticas marxianas. Ocorre que ele transforma a noção de consciência marxiana universal em uma existencialista individual[iii]. Na sua morfologia sujeito-trabalho, o homem está em situação, ou seja, ele percebe os limites do sistema social. E é o progresso nas formas de produção que eleva a consciência pelo aumento no nível de instrução e cultura, trazendo nova compreensão da realidade.

Sobre a visão tecnológica, para Vieira Pinto não há uma era tecnológica pois o homem sempre foi tecnológico. E a tecnologia deve servir ao rico e ao pobre. Entretanto, não é só o acesso, mas uma produção social que visa a amanualidade. Ela é acumulação social de conhecimento, conforme citação: “O avião não foi feito para voar, mas para o homem voar”.

Se o trabalho aliena? Segundo Vieira, não, se há apropriação de técnica elaborada pelo trabalhador. Ante o existencialismo heideggeriano, para quem a técnica é um malefício, Vieira traz a proposta do existencialismo da periferia com relação ao centro.



[i] VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. Notas sobre a introdução de Marcos Cezar de Freitas.

[ii] Assim era como Paulo Freire via o analfabetismo, ele que tinha Vieira Pinto como mestre. O método coloca a realidade no início, há um processo de absorção das imagens da realidade das pessoas, uma imagem concreta do meio.

[iii] Freitas também aborda sua oposição ao aspecto pragmatista e isso, em certo sentido, agrava meu sono dogmático visto que eu estava estudando a filosofia analítica. Trabalhar com TI e ler pragmatismo? Céus!

quarta-feira, 3 de março de 2021

Ciência, técnica e realidade

Anotações da Palestra de Abertura do “I Simpósio Internacional de História da Ciência e Epistemologia”, realizada por Milton Vargas de 9 a 11 de outubro de 1991, em Piracicaba-SP[i].

Em um primeiro momento, Milton Vargas traz uma concepção da Ciência Moderna, transformadora da realidade, como uma fusão do que seria a teoria e a techne na Grécia do século VI ac. A ciência, enquanto atividade construtiva, associa saber, teoria e atividade, ou seja, há uma via teórica associada a uma via prática.

Se a teoria grega se fazia pela abstração, a partir de dados essenciais e pela utilização da matemática e da filosofia passando de uma contemplação para a atividade, a teoria atual é um sistema lógico composto por enunciados, hipóteses e leis gerais. Há um leque de teorias sobre a realidade, sobre algo imaginado (como a geometria não-euclidiana) ou teorias capazes de mudar a realidade (como a marxista) sob os olhares da filosofia, história e ciência.

A origem da ciência se liga à filosofia, pois essa última parte do espanto das coisas à nossa volta, sobre o que é o ente, em que ele consiste. Da árvore, a filosofia visa extrair a arboridade, isto é, sua quididade. O conceito de ousia vem dos gregos significando substância, essência ou entidade e a teoria é a busca por essa ousia. Então, ciência e filosofia tem o viés da episteme, que é ver teoricamente. Desde Aristóteles, analisando os princípios e as causas até Heidegger, que diz que, embora o quid procurado possa variar em cada filósofo e tempo, sempre há um diálogo. Milton Vargas postula o saber filosófico associado à busca da verdade absoluta, mas pelo diálogo e define a Filosofia da Ciência como a busca da quididade da ciência que tem como aspecto principal o espanto.

A técnica não é a techne. A técnica é tão antiga quanto o homem, pois não há homem sem instrumento, há um saber-fazer que nasce com o homem da pedra lascada. A techne só se inicia na Grécia a partir da sistematização da técnica e depois a ars[ii] romana, ambas suportando a arquitetura, medicina, etc.

No Renascimento, a burguesia, liderada pelos príncipes, retoma os tratados antigos, mas é só em 1600 que a tecnologia une a técnica com a experimentação científica. Vargas traz uma metáfora de Spengler: enquanto o cientista é como o boi que tudo vê “desinteressadamente”, o tecnólogo é como águia que da o tiro certo. E é predador? Então, a tecnologia, com o esclarecimento da teoria e a manipulação e controle da técnica se desenvolve em um mundo aberto ao saber, progressista.

Vargas traz a conceituação de realidade de Julián Marías[iii] como sendo composta pelo eu mais o que eu encontro no mundo, encontro do subjetivo com o objetivo. O real é composto por homens e objetos formando a natureza que, se inicialmente sobrenatural, passa a ser domesticada e instrumentalizada. Também há valores como o belo e feio, útil e inútil, e pela valoração temos a cultura. Temos ideias e objetos ideais (formas, números) e Ultimidades[iv]. Tudo isso é a realidade e a ciência se ocupa do que se dá no mundo: natureza, cultura e ideias.

Por fim, Vargas traz a visão de Jaspers de ciência moderna[v], que teria como características: o método, fazer as coisas metodicamente, uma certeza irresistível (sob certas condições) e validez universal, essa última ao lembrar que a episteme grega era válida somente no mundo sublunar.

Contudo, se a ciência buscou uma concepção geral do mundo, o conhecimento se desenvolveu e não abrangeu. De acordo com Jaspers, o mundo não é um objeto que podemos abarcar, pois só vemos fenômenos e não o fundo das coisas. Ao não atingirmos a totalidade, nos prendemos na busca por cada coisa, que é indefinida.



[i] Conforme Ciência, Técnica e Realidade, Capítulo 1 de Vargas, M. (1994). Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega.

[ii] Conforme https://www.eba.ufmg.br/graduacao/materialdidatico/apl001/aula006web.html, acesso em 02/03/2021: “Arte - do latim ars; corresponde ao termo grego techne (técnica); significa: o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana submetida a regras. Seu campo semântico se define em oposição ao acaso, ao espontâneo e ao natural. Arte é um conjunto de regras para dirigir uma atividade humana qualquer.”

[iii] Julián Marías Aguilera foi um filósofo espanhol, considerado o principal discípulo de José Ortega y Gasset, conforme Wikipedia.

[iv] Conceito de Marías abrange o reino dos mortos, fé, crenças, etc.

[v] O texto de Vargas oscila entre teoria, ciência, tecnologia, técnica, techne, etc., que muitas vezes se confundem.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Do "creatio ex nihilo" ao "reductio at nihil"

Introdução ao pensamento de Anders a partir de minha livre interpretação do texto de Agostino Cera[i]

Ser humano sem mundo. Diferentemente dos animais, que já nascem com seu espaço vital pronto, o homem nasce sem um espaço vital próprio. O homem nasce sem um lugar no mundo e tem que construir sua habitação. Então, em nossa origem está essa falta de mundo, uma “desterritorialização” que precisa ser construída, pela técnica.

Anders ancora sua análise na antropologia filosófica alemã que traz o paradigma do homem como um ser deficiente, ou seja, não terminado. Perante essa estranheza do mundo, moldar o espaço aproxima a antropogênese da tecnogênese.

Mundo sem ser humano. Com a técnica o homem moldou seu mundo. A técnica evoluiu para a tecnologia e Anders presenciou os campos de concentração alemães e a bomba atômica, o que, segundo Cera, instou sua obra original e um sentimento entre a obsessão e a culpa. Essa evolução tecnológica coloca em dúvida o futuro, já que a tecnologia deu tamanho poder ao homem que ele pode se auto destruir.

Parafraseando o mito do Prometeu de apropriação do conhecimento, o homem vai do creatio ex nihilo ao reductio at nihil. A onipotência abre caminho para o infinito. Extrapolando Nietzsche, Anders traz o conceito de aniilismo, isto é, aniquilação e niilismo, a fórmula de um apocalipse sem reino onde um mundo novo só é possível pelo auto aniquilamento.

A tecnologia e o homem. Em sua obra-prima “A obsolescência do ser humano”, defendeu que há uma relação de obsolescência, de desatualização entre a tecnologia e o homem. A tecnologia, se criatura do homem, superou o criador e se tornou mais perfeita. O ser humano, perante a tecnologia, é imperfeito e não se atualiza na criação. Então, ele tem um papel de coadjuvante na história tecnológica e se abdica.

Dessa forma, a tecnologia se naturaliza e temos em nosso horizonte, outrora povoado pela natureza, a tecnologia. É a confusão entre techne e physis: Technature, naturalização da tecnologia ou tecnologização da natureza. Nessa Technature o próprio homem, que antes era Homo Faber passa a ser Homo Matéria, pois o ser desse mundo é um ser realizável, tudo deve ser feito, tudo deve ser consumido. Assim, o homem se nega e se faz matéria aonde o ser humano é um recurso humano orientado a uma tecnodiceia[ii]. Tendendo a se libertar de ser somente homem, o homem se intersecciona entre um super homem e um homem matéria, desumanizado.

*  *  *  *  *

Cera contextualiza Anders na primeira geração dos filósofos da tecnologia, que seriam deterministas e estariam mais preocupados com a ontologia tecnológica[iii]. Segundo ele, houve uma revolução empírica na Filosofia da Tecnologia (chamo-a Fitec), por volta dos anos 80, que a teria encaminhado para uma visão ôntica (Ihde[iv]) e de resultados.

Entretanto, Cera argumenta que a destinação dessa análise de Anders se afasta do misticismo conceituado por Heidegger e permite uma análise filosófica do conceito. Além disso, Cera nos lembra que Anders traz a necessidade do uso da criatividade que teria sido superada pelo uso da produção. Se a tecnologia ficará, é nosso papel estimularmos a nossa criatividade, até para que ela sirva como uma forma de compreensão da tecnologia e possa nos trazer uma responsabilidade social[v].



[i] Conforme capítulo 1 de Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020.

[ii] Lembremos da teodiceia, aqui vista do ponto de vista da tecnologia. Conforme Cera mostra, o homem passa de uma ansiedade psicológica para uma ansiedade soteriológica em busca da salvação.

[iii] Classifica-o também como homem de esquerda, se opondo a Arnold Gehlen. Também assumiu uma posição de luta fora da academia, subvertendo o habitus filosófico. Contra o otimismo de Bloch, via a crença na esperança como covardia.

[iv] Don Ihde, chegaremos nele.

[v] E assim, pela criatividade, eu vou acordando do meu sono dogmático.