segunda-feira, 1 de março de 2021

Do "creatio ex nihilo" ao "reductio at nihil"

Introdução ao pensamento de Anders a partir de minha livre interpretação do texto de Agostino Cera[i]

Ser humano sem mundo. Diferentemente dos animais, que já nascem com seu espaço vital pronto, o homem nasce sem um espaço vital próprio. O homem nasce sem um lugar no mundo e tem que construir sua habitação. Então, em nossa origem está essa falta de mundo, uma “desterritorialização” que precisa ser construída, pela técnica.

Anders ancora sua análise na antropologia filosófica alemã que traz o paradigma do homem como um ser deficiente, ou seja, não terminado. Perante essa estranheza do mundo, moldar o espaço aproxima a antropogênese da tecnogênese.

Mundo sem ser humano. Com a técnica o homem moldou seu mundo. A técnica evoluiu para a tecnologia e Anders presenciou os campos de concentração alemães e a bomba atômica, o que, segundo Cera, instou sua obra original e um sentimento entre a obsessão e a culpa. Essa evolução tecnológica coloca em dúvida o futuro, já que a tecnologia deu tamanho poder ao homem que ele pode se auto destruir.

Parafraseando o mito do Prometeu de apropriação do conhecimento, o homem vai do creatio ex nihilo ao reductio at nihil. A onipotência abre caminho para o infinito. Extrapolando Nietzsche, Anders traz o conceito de aniilismo, isto é, aniquilação e niilismo, a fórmula de um apocalipse sem reino onde um mundo novo só é possível pelo auto aniquilamento.

A tecnologia e o homem. Em sua obra-prima “A obsolescência do ser humano”, defendeu que há uma relação de obsolescência, de desatualização entre a tecnologia e o homem. A tecnologia, se criatura do homem, superou o criador e se tornou mais perfeita. O ser humano, perante a tecnologia, é imperfeito e não se atualiza na criação. Então, ele tem um papel de coadjuvante na história tecnológica e se abdica.

Dessa forma, a tecnologia se naturaliza e temos em nosso horizonte, outrora povoado pela natureza, a tecnologia. É a confusão entre techne e physis: Technature, naturalização da tecnologia ou tecnologização da natureza. Nessa Technature o próprio homem, que antes era Homo Faber passa a ser Homo Matéria, pois o ser desse mundo é um ser realizável, tudo deve ser feito, tudo deve ser consumido. Assim, o homem se nega e se faz matéria aonde o ser humano é um recurso humano orientado a uma tecnodiceia[ii]. Tendendo a se libertar de ser somente homem, o homem se intersecciona entre um super homem e um homem matéria, desumanizado.

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Cera contextualiza Anders na primeira geração dos filósofos da tecnologia, que seriam deterministas e estariam mais preocupados com a ontologia tecnológica[iii]. Segundo ele, houve uma revolução empírica na Filosofia da Tecnologia (chamo-a Fitec), por volta dos anos 80, que a teria encaminhado para uma visão ôntica (Ihde[iv]) e de resultados.

Entretanto, Cera argumenta que a destinação dessa análise de Anders se afasta do misticismo conceituado por Heidegger e permite uma análise filosófica do conceito. Além disso, Cera nos lembra que Anders traz a necessidade do uso da criatividade que teria sido superada pelo uso da produção. Se a tecnologia ficará, é nosso papel estimularmos a nossa criatividade, até para que ela sirva como uma forma de compreensão da tecnologia e possa nos trazer uma responsabilidade social[v].



[i] Conforme capítulo 1 de Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020.

[ii] Lembremos da teodiceia, aqui vista do ponto de vista da tecnologia. Conforme Cera mostra, o homem passa de uma ansiedade psicológica para uma ansiedade soteriológica em busca da salvação.

[iii] Classifica-o também como homem de esquerda, se opondo a Arnold Gehlen. Também assumiu uma posição de luta fora da academia, subvertendo o habitus filosófico. Contra o otimismo de Bloch, via a crença na esperança como covardia.

[iv] Don Ihde, chegaremos nele.

[v] E assim, pela criatividade, eu vou acordando do meu sono dogmático.

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