quarta-feira, 26 de junho de 2019

Russell platônico[i]

Russell inicia esse capítulo retomando as relações e as trata como entidades com um tipo de ser diferente dos objetos físicos, das mentes e dos dados-dos-sentidos, remetendo o seu tratamento à bem sucedida teoria das ideias de Platão. Ao questionar a noção de justiça, a teoria das ideias (ou formas) começa por verificar atos justos particulares mostrando que todos eles participam de uma natureza comum (ou essência), “a justiça”. De posse dessa essência que não está presente no mundo, pois não é particular e nem se degrada, ele a caracteriza como eterna, assim como a brancura, etc.
Para Platão, o mundo suprassensível das ideias é o real ao passo que nosso mundo dos sentidos é uma cópia, o que nos levaria a buscar por esse conhecimento beirando um misticismo. Porém, Russell enfatiza que na verdade sua base é lógica e entende as ideias de Platão como universais, em oposição ao particular dado pelos sentidos, e compartilhado por eles.
Então Russell define a maioria das palavras como universais: substantivos, adjetivos, preposições e verbos, deixando como particulares os nomes próprios e pronomes. Com base nisso, ele argumenta que nenhuma sentença pode ser feita sem universais e que todo conhecimento de verdades então está ligado a eles, reforçando essa abordagem ao dizer que todas as palavras do dicionário são universais e que muitas vezes tentamos transformar universais em particular como no caso da sentença: “Charles I's head was cut off”. Pensamos em Carlos I, na sua cabeça e no ato de cortá-la como particulares quando na verdade cabeça e cortar são universais.[ii]
Ele acusa o negligenciamento no uso de preposições e verbos como universais em detrimento dos adjetivos e substantivos, já que os últimos expressariam propriedades das coisas e os primeiros tratariam de relações entre elas, supostamente não existentes, como, por exemplo, o monismo de Espinosa e Bradley e o monadismo de Leibniz. Russell considera verbos e preposições mais universais, de fato. Ao tratar da brancura, ele relembra que sua existência foi negada por Berkeley e Hume, pois eram ideias abstratas inexistentes, porém não usar ideias abstratas significa comparar coisas particulares por semelhança, mas ela mesma seria um universal.
Admitindo, então, as relações como universais, Russell mostrará que não são meramente mentais. Ao tratar da proposição "Edimburgo está ao norte de Londres" Russell diz que apesar da discordância de Berkeley e Kant, essa é uma relação que já está no mundo antes de nossa apreensão e pertence somente a Edimburgo e Londres. Assim, sendo um fato independente do pensamento, a relação “norte de” presente na proposição é um universal independente da mente humana. Porém, diferentemente de Edimburgo e Londres, a relação “norte de” parece não existir em nenhum tempo e lugar.[iii]
Relembrando a ambiguidade no conceito da ideia de Berkeley, Russell diz que podemos pensar em um universal, cada homem pode ter um pensamento da brancura, mas a brancura é o objeto desses pensamentos e diferente deles. Para finalizar, Russell caracteriza o mundo dos universais, em oposição ao mundo da existência onde pensamentos, mentes e objetos existem no tempo, como o mundo dos seres "sem tempo", imutável e rígido. Se, ao contrário, o mundo da existência é vago e fugaz, ele é o mundo da vida, porém, acrescenta ele, ambos os mundos são reais e importantes para os estudos metafísicos e serão explorados adiante.



[i] Bertrand Russell, Problems of Philosophy. THE WORLD OF UNIVERSALS. Acessado em 24/6/2019: http://www.ditext.com/russell/rus9.html. Ver o seguinte fichamento e os anteriores: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2019/06/a-mente-que-liga-o-mundo.html.
[ii] Conforme suas palavras: “Hence we succeed in avoiding all notice of universals as such, until the study of philosophy forces them upon our attention”.
[iii] Ele diz disso: “It is neither in space nor in time, neither material nor mental; yet it is something.”

domingo, 23 de junho de 2019

A mente que liga o mundo*

Ao tratar do conhecimento a priori, Russell remete a Kant definindo-o como um conhecimento não puramente analítico e do qual extraiu resultados metafísicos. Um conhecimento analítico é aquele no qual predicados são extraídos do sujeito, p.ex.: “Um homem careca é um homem.”. Tal tipo de conhecimento perdurava entre os racionalistas e não podia ser negado já que contrariaria a lei da contradição[i]. Partindo dessa visão anterior a Kant, Hume mostrou que alguns conhecimentos considerados analíticos eram de fato sintéticos, como a conexão entre causa e efeito sobre a qual nada era conhecido a priori, em oposição ao assumido pelos racionalistas de que o efeito poderia ser deduzido da causa.
Da tradição racionalista, Kant ficou balançado com essa visão cética e percebeu que todas as proposições aritméticas e geométricas eram sintéticas a priori, p.ex., “5+7=12”, 12 sendo uma ideia nova não extraída de 5+7, mas como? Segundo Russell, essa era uma questão que deveria ser investigada por filósofos não céticos e retoma o já dito de que não há conhecimento matemático por indução a partir do particular porque a validade do princípio [de indução] não se prova por si mesma e que basta uma instância para certa garantia, novas nada acrescentam.[ii] Mais do que isso, há uma incompatibilidade: o conhecimento é geral experiência é particular.
A solução kantiana define dois elementos em nossa experiência, um devido ao objeto e outro devido à nossa natureza. Russell concorda: dados-dos-sentidos e matéria. Para Kant, conhecemos a priori espaço, tempo, causalidade, etc., porém o material da sensação vem do objeto que é dividido entre a coisa-em-si incognoscível e o fenômeno, conhecido na experiência e que concorda com o a priori já que contem elementos de nossa natureza.
Tentando harmonizar empiristas e racionalistas, Kant diz que independentemente do conhecimento a priori (racionalista!), não podemos conhecer nada da coisa-em-si mesma que não seja um objeto atual ou possível de nossa experiência (empirista!). Segundo Russell, se para Kant é certo que os fatos devem sempre concordar com a lógica e a aritmética (conhecimento a priori), pois é de nossa natureza, ela mesma poderia um dia mudar, como qualquer coisa no mundo, e poderia acontecer de amanhã 2+2 ser igual a cinco, o que destruiria a certeza e universalidade das proposições aritméticas. Além do mais, Russell argumenta que o a priori de Kant fica limitado dessa forma, pois “2+2=4” deveria valer também para coisas-em-si e não só para fenômenos.
Segundo Russell alguns filósofos viram o a priori como uma forma de pensar, algo mental. Porém, ele diz que, apesar de natural, o a priori se refere também às coisas: a lei de contradição significa não somente que não podemos pensar “ao mesmo tempo” que uma árvore é uma faia e não é uma faia como a árvore em si (a coisa-em-si real árvore) não é uma faia. Se a lei de contradição é uma lei do pensamento porque não precisamos olhar duas vezes para árvore para ver que não é faia, isso se da não porque a mente é feita dessa forma, mas pelo resultado de nossa reflexão. Entretanto, não é a lei de contradição que garante isso, mas o fato dela aplicada na natureza, nas coisas[iii].
Assim o conhecimento a priori não é, para Russell, sobre a constituição da mente, mas sobre o que o mundo contém, seja mental ou não. Ocorre que essa teoria kantiana trata de relações que não são mentais nem físicas, pois considera coisas-em-si incognoscíveis, mas em uma relação entre elas produzida pela mente. Assim, o fato de haver um pernilongo em meu quarto, a relação "em" é criada por nós, segundo Kant e algo que Russell se debruçará a seguir, pois, independente de nós, parece certo que o pernilongo está no quarto.



Bertrand Russell, Problems of Philosophy. HOW A PRIORI KNOWLEDGE IS POSSIBLE. Acessado em 6/6/2019: http://www.ditext.com/russell/rus8.html. Ver o seguinte fichamento e os anteriores: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2019/06/principios-logicos.html.
[i] Analítico pois basta analisar o enunciado para se extrair propriedades que não poderiam ser negadas.
[ii] Conforme Russell: “Thus our knowledge of the general propositions of mathematics (and the same applies to logic) must be accounted for otherwise than our (merely probable) knowledge of empirical generalizations such as 'all men are mortal'.”
[iii] Nas palavras do filósofo: “Thus the law of contradiction is about things, and not merely about thoughts; and although belief in the law of contradiction is a thought, the law of contradiction itself is not a thought, but a fact concerning the things in the world.”

sábado, 8 de junho de 2019

Princípios lógicos*

A teoria do conhecimento de Russell aborda os princípios de inferência (considerados óbvios) que são aliados do princípio de indução na tentativa de validar a experiência e que possuem graus de certeza similares aos dados-dos-sentidos. Ele nos recorda que princípios lógicos partem de casos particulares para leis gerais, assim como a aritmética (“2+2=4”, “a+b=c”, etc.) e que há um tipo de implicação geral: “whatever follows from a true proposition is true” que, se parece trivial, deve ser investigada pelo filósofo. Ele enumera exemplos de tais princípios lógicos classificados como “Leis do Pensamento”:
(1) The law of identity: 'Whatever is, is.'
(2) The law of contradiction: 'Nothing can both be and not be.'
(3) The law of excluded middle: 'Everything must either be or not be.'
Investigando a história, Russell aponta para a distinção entre empiristas (Locke, Berkeley e Hume) e racionalistas (Leibniz e Descartes) tomando partido dos segundos: para os empiristas todo conhecimento vem da experiência, já os racionalistas admitem ideias inatas (entre as quais Russell inclui os princípios lógicos), base do conhecimento. Ideias inatas são referidas por Russell pelo termo a priori: algo que não vem da experiência, mas é base para ela. Por outro lado, de acordo com Russell, os racionalistas erram ao propor conhecimentos que podem ser deduzidos independentemente da experiência. Ele enfatiza que todo conhecimento de algo existente é empírico, ou seja, provém da experiência, direta ou indiretamente. Então, conhecer o que existe envolve dados-dos-sentidos e sem eles há somente um conhecimento hipotético.[i]
Russell cita como conhecimento a priori, mas não lógico, o valor ético. São julgamentos que consideramos valorosos não por um fim útil, mas por nossa própria conta, independentemente da experiência. Tais julgamentos éticos, p.ex., felicidade ao invés de tristeza, etc., não podem ser provados pela experiência, pois é impossível deduzir o que deveria ser do que é, embora sejam aplicados na experiência. Ponto crítico, a matemática é para Russell a priori e um princípio geral que pode ser pensado abstratamente, embora os empiristas considerem um conhecimento por indução: ver muitas vezes duas coisas juntas somando quatro, etc. Assim como as propriedades do triângulo que podem ser tiradas de apenas um triângulo, do particular direto ao geral. Na aritmética, “2+2=4” tão logo se evidencie a verdade dessa proposição não precisa ser reiterado na generalização da experiência, pois já atinge grau de certeza. Russell usa o famoso exemplo dos “outros mundos possíveis”: mesmo que existam outros mundos é inconcebível que a soma “2+2” não seja sempre “4”, isto é, não é um fato que pode mudar.
Russell então compara: 1.) um conhecimento factual "Todo homem é mortal" que necessita de muitos exemplos (generalização empírica) de que todos morremos para termos certeza com 2.) o conhecimento lógico matemático do tipo “2+2=4” que requer apenas um exemplo para ser tomado como certo para reabilitar a possibilidade do conhecimento dedutivo (do geral ao particular). P.ex., Pedro e João somados a Paulo e Celso somam quatro homens embora não os conheçamos, mas ele rechaça o argumento dedutivo clássico: “Se todo homem é mortal; Sócrates é homem; Sócrates é mortal” mostrando que dependeria de um conhecimento indutivo de Sócrates para convencer de maneira mais clara.[ii] Nas palavras do filósofo:
This illustrates the difference between general propositions known a priori, such as 'two and two are four', and empirical generalizations such as 'all men are mortal'. In regard to the former, deduction is the right mode of argument, whereas in regard to the latter, induction is always theoretically preferable, and warrants a greater confidence in the truth of our conclusion, because all empirical generalizations are more uncertain than the instances of them.[iii]
Russell, então, nos avisa que investigará como é possível o conhecimento de proposições a priori (lógica, matemática pura, ética) e de proposições gerais, onde há casos infinitos de análise, recorrendo ao nobre Kant.



(*) Bertrand Russell, Problems of Philosophy. ON OUR KNOWLEDGE OF GENERAL PRINCIPLES. Acessado em 31/05/2019: http://www.ditext.com/russell/rus7.html. Ver o seguinte fichamento e os anteriores: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2019/05/sobre-inducao.html.
[i] Percebemos que ao longo da investigação Russell mantém seu compromisso com dados-dos-sentidos.
[ii] Um silogismo é um termo filosófico com o qual Aristóteles designou a conclusão deduzida de premissas, a argumentação lógica perfeita. É um argumento dedutivo constituído de três proposições declarativas (duas premissas e uma conclusão) que se conectam de tal modo que, a partir das duas primeiras (as premissas), é possível deduzir uma conclusão. https://pt.wikipedia.org/wiki/Silogismo, acessado em 8/6/2019.
[iii] Nota-se a concordância de Russell com a lógica indutiva moderna em detrimento da dedução dos gregos.