domingo, 23 de junho de 2019

A mente que liga o mundo*

Ao tratar do conhecimento a priori, Russell remete a Kant definindo-o como um conhecimento não puramente analítico e do qual extraiu resultados metafísicos. Um conhecimento analítico é aquele no qual predicados são extraídos do sujeito, p.ex.: “Um homem careca é um homem.”. Tal tipo de conhecimento perdurava entre os racionalistas e não podia ser negado já que contrariaria a lei da contradição[i]. Partindo dessa visão anterior a Kant, Hume mostrou que alguns conhecimentos considerados analíticos eram de fato sintéticos, como a conexão entre causa e efeito sobre a qual nada era conhecido a priori, em oposição ao assumido pelos racionalistas de que o efeito poderia ser deduzido da causa.
Da tradição racionalista, Kant ficou balançado com essa visão cética e percebeu que todas as proposições aritméticas e geométricas eram sintéticas a priori, p.ex., “5+7=12”, 12 sendo uma ideia nova não extraída de 5+7, mas como? Segundo Russell, essa era uma questão que deveria ser investigada por filósofos não céticos e retoma o já dito de que não há conhecimento matemático por indução a partir do particular porque a validade do princípio [de indução] não se prova por si mesma e que basta uma instância para certa garantia, novas nada acrescentam.[ii] Mais do que isso, há uma incompatibilidade: o conhecimento é geral experiência é particular.
A solução kantiana define dois elementos em nossa experiência, um devido ao objeto e outro devido à nossa natureza. Russell concorda: dados-dos-sentidos e matéria. Para Kant, conhecemos a priori espaço, tempo, causalidade, etc., porém o material da sensação vem do objeto que é dividido entre a coisa-em-si incognoscível e o fenômeno, conhecido na experiência e que concorda com o a priori já que contem elementos de nossa natureza.
Tentando harmonizar empiristas e racionalistas, Kant diz que independentemente do conhecimento a priori (racionalista!), não podemos conhecer nada da coisa-em-si mesma que não seja um objeto atual ou possível de nossa experiência (empirista!). Segundo Russell, se para Kant é certo que os fatos devem sempre concordar com a lógica e a aritmética (conhecimento a priori), pois é de nossa natureza, ela mesma poderia um dia mudar, como qualquer coisa no mundo, e poderia acontecer de amanhã 2+2 ser igual a cinco, o que destruiria a certeza e universalidade das proposições aritméticas. Além do mais, Russell argumenta que o a priori de Kant fica limitado dessa forma, pois “2+2=4” deveria valer também para coisas-em-si e não só para fenômenos.
Segundo Russell alguns filósofos viram o a priori como uma forma de pensar, algo mental. Porém, ele diz que, apesar de natural, o a priori se refere também às coisas: a lei de contradição significa não somente que não podemos pensar “ao mesmo tempo” que uma árvore é uma faia e não é uma faia como a árvore em si (a coisa-em-si real árvore) não é uma faia. Se a lei de contradição é uma lei do pensamento porque não precisamos olhar duas vezes para árvore para ver que não é faia, isso se da não porque a mente é feita dessa forma, mas pelo resultado de nossa reflexão. Entretanto, não é a lei de contradição que garante isso, mas o fato dela aplicada na natureza, nas coisas[iii].
Assim o conhecimento a priori não é, para Russell, sobre a constituição da mente, mas sobre o que o mundo contém, seja mental ou não. Ocorre que essa teoria kantiana trata de relações que não são mentais nem físicas, pois considera coisas-em-si incognoscíveis, mas em uma relação entre elas produzida pela mente. Assim, o fato de haver um pernilongo em meu quarto, a relação "em" é criada por nós, segundo Kant e algo que Russell se debruçará a seguir, pois, independente de nós, parece certo que o pernilongo está no quarto.



Bertrand Russell, Problems of Philosophy. HOW A PRIORI KNOWLEDGE IS POSSIBLE. Acessado em 6/6/2019: http://www.ditext.com/russell/rus8.html. Ver o seguinte fichamento e os anteriores: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2019/06/principios-logicos.html.
[i] Analítico pois basta analisar o enunciado para se extrair propriedades que não poderiam ser negadas.
[ii] Conforme Russell: “Thus our knowledge of the general propositions of mathematics (and the same applies to logic) must be accounted for otherwise than our (merely probable) knowledge of empirical generalizations such as 'all men are mortal'.”
[iii] Nas palavras do filósofo: “Thus the law of contradiction is about things, and not merely about thoughts; and although belief in the law of contradiction is a thought, the law of contradiction itself is not a thought, but a fact concerning the things in the world.”

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