terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Terra Brasilis - a vida como ela é

Vamos a alguns dos fatos recentes em terras tupiniquins: a ex-futura ministra do trabalho e seu vídeo-selfie se perpetuando pelo noticiário e mídias sociais mostram que há uma confusão entre o público e o privado, a ponto de seu pai repreendê-la em público, nobre político de estirpe duvidosa. O jogo profano entre SS (sim aquele do baú da felicidade que quer encobrir o teatro-resistência da Bela Vista) e o nosso querido presidente-usurpador revela que tipo de moral já pode ser apresentado na TV, sem cortes. Um juiz que quer o auxílio-moradia-palaciana dobrado não deixa dúvidas de que a luta de classes é para valer e acentua o quão as atribuições do poder jurídico-justiceiro estão deliberadas e descaradas (sim, bem-vindo ao lawfare-state). Por fim, Lula, símbolo de uma geração pura e sonhadora, mas que acordou maniqueísta e agora se digladia, condenado por uma elite que condena um projeto de ascensão social. O gigante não acordou, ele tem pesadelos.
Tristes fatos: haja psicologia e Rivotril para dormir. Mas há motivo para espanto? Desde os primórdios, o homem social inventa valores e os distorce ao seu bel prazer e fortuna. Muito embora tendamos a nos assombrar com essas artimanhas despudoradas que nos bombardeia incansavelmente esse ano de 2018, tão novo e já tão tinhoso, isso só apresenta a nossa verdadeira face (ou seria cara de pau?). E é bom que seja assim, nada de maquiagens e retoques, que venha a realidade nua e crua. Tristes fatos? Muito mais do que isso, fatos irritantes que nos fazem perder a calma e de antemão nos alertam para o que nos espera. E que ano, hein? Precoce, mas que promete: copa do mundo, eleições... Verdade seja dita: se sobrevivermos, teremos uma longa história para contar. E não sobreviveremos a estes tristes fatos para dizer lá na frente: “estamos livres!”. Aqui, em terra brasilis, nunca estaremos livres.
A vida como ela é, em terra brasilis, manda recado: não veio para brincadeira. Essa miscigenação, essa diversidade esconde muita ruindade por trás desse povo alegre. Se já é chegada a hora de pular e cantar, nas vésperas do carnaval, de onde vamos puxar energia e alegria para o embalo? Tudo bem, retiremos temporariamente a poeira desses tristes fatos para que o último suspiro seja dado. Depois disso, não haverá arrego. A imprevisibilidade do que virá traz uma sombria sobriedade previsível. Tudo muito meticuloso, as víboras estão rastejando e se refestelando soberbas. O riso amarelo fabricado mostra a vida como ela é em terra brasilis. Indica que rir é para os bons, os que foram selecionados. Mas se eles riem, nós, o resto, gentalha, não fazemos muito. Vivemos na base do “tapinha nas costas”, a marca falsa de uma irresistível vontade de se resguardar, e que anuncia que eu estou aqui e você aí e que você fique aí que eu fico aqui.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Uma história de exclusão na filosofia*


Foucault vai tratar de uma história de exclusão na filosofia que teria começado com Aristóteles. Antes dele, Platão discutiu com os sofistas, que seriam aqueles homens que se utilizariam da retórica e da persuasão para exercer o poder. Para Platão, que considerava que o discurso em sua essência deveria ser verdadeiro, o sofista seria um simulador e seu discurso não trataria da verdade, seria mera aparência, falsidade.  Foucault considera Aristóteles o fundador da filosofia, já que ele teria sistematizado esse tipo de conhecimento como sendo um modo de organizar o discurso. Se Platão teria discutido com os sofistas, Aristóteles teria tratado do sofisma, mostrando o que eles seriam e como se produziriam. Se, para Platão, o discurso do sofista seria um discurso falso que pareceria verdadeiro, para Aristóteles o sofisma não seria um discurso racional e seria rechaçado. Para Foucault, a filosofia aristotélica seria um discurso racional e argumentado, o discurso do Logos, ao passo que o sofisma seria, de acordo com Aristóteles, a dedução de uma conclusão de maneira incorreta. Haveria afirmações verdadeiras e falsas e os sofismas, que estariam excluídos do discurso filosófico.
Entretanto, Foucault vai se colocar do lado dos sofistas, tratando o discurso como um exercício das palavras e usado nas relações de poder. Se, em sua visão, na análise do discurso por Aristóteles ele consideraria o sofista como quem utilizaria a palavra de maneira ambígua, Foucault argumenta que o sofisma é um jogo de palavras, mas com estratégia política. De acordo com Foucault, para Aristóteles, o discurso seria da verdade e independente da política. Foucault considera que Aristóteles teria criado uma ordem de discurso excluindo outros que pudessem estabelecer um confronto. Tal ordem de discurso como conhecimento da verdade teria perdurado até Hegel e, a partir de Nietzsche, seria possível sair dessa lógica. A filosofia de Nietzsche permitiria ampliar os limites da própria filosofia.
Foucault mostra que a Metafísica começa com o seguinte enunciado: “Todos os homens desejam por natureza saber”. Enunciado universal (Todos) e restrito aos seres humanos. Enunciado que vincularia desejo e saber incitando um prazer ao se contemplar a natureza. O conhecimento da verdade passaria pelas sensações corpóreas provocando seu acúmulo na memória. Então, pela experiência, os homens usariam esse conhecimento empírico armazenado na memória para, através de um ato de razão, não repetir os mesmos erros e mudar a sua ação. O quarto e último estágio seria o conhecimento da verdade, acessível somente àqueles com mais saber. Tal conhecimento é a ciência filosófica, desejo de saber independente da utilidade. A filosofia seria uma ciência inútil, mas de máxima virtude, que nos leva do prazer corporal em direção à felicidade: a eudaimonia.
Para Foucault, esse desejo de conhecer a verdade exclui outros discursos, como o desejo de saber utilitário do sofista. Para ele, não se separa verdade e poder, e o próprio poder fabrica a verdade. Foucault se vale de Nietzsche para argumentar que não há verdades puras, as verdades são fabricadas por batalhas. De fato, a primeira batalha pelo poder teria se dado entre Platão e os sofistas e, se Aristóteles fabricou a verdade filosófica, ela se manteve ao longo de lutas através do tempo. Foucault usa o modelo nietzschiano para fazer estudos históricos, como as relações de poder se dão nas práticas sociais. Como fez Nietzsche na genealogia da moral, Foucault fará uma genealogia das relações de poder dentro de uma ordem de discurso, para verificar o que é considerado verdade, falsidade ou mesmo o que está fora dessa ordem em dada sociedade e momento histórico. A investigação sobre o discurso mostrará os modos em que os discursos se organizam e são controlados em toda a sociedade e os procedimentos para proibir ou rejeitar determinados tipos de discursos.


(*) Conforme informações fornecidas pelo Prof. Dr. Gustavo Adolfo Romero, em: “81565 - Michel Foucault, filósofo de la verdad. Un estudio de sus cursos en el Collège de France”.  1º Summer School da FFLCH: Janeiro/2018.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Que se entende por consciência*

Schopenhauer trata do conceito de consciência no âmbito das faculdades cognoscíveis, sob três aspectos.
Percepção exterior. A maior parte da nossa faculdade cognoscível é composta da percepção exterior que se volta para fora de nós em busca dos objetos do mundo e da experiência. De fato, não é parte da consciência e é responsável pelas condições de possibilidade do conhecimento dos objetos nas formas de tempo, espaço e causalidade.
Consciência psicológica. Essa é de fato a percepção imediata do eu, o pouco que sobra de nossa faculdade de conhecer e se opõe à percepção exterior.
Consciência moral. Há um conjunto de instintos morais que nos vêm, seja de forma inata ou pela experiência e reflexão, que Schopenhauer chama de razão prática (a kantiana) e que não se confunde com a consciência propriamente dita.
Dado que a consciência não é algo vultoso, é a partir dela que se demonstraria o livre-arbítrio. De pequena, seu conteúdo é a vontade pessoal. Vontade que gera atos, mas que se manifesta nas formas do desejo, amor, cólera, etc., prazer e dor e que chega até às impressões corpóreas. Ou seja, é pela vontade, seu objeto único, que uma consciência chega ao mundo exterior, via sensibilidade, conhecendo os objetos dados à percepção, domínio que já não pertence mais a ela.
Schopenhauer argumenta que não há dúvidas de que nossa vontade está voltada fora, caso contrário, “o homem não conservaria mais senão uma vontade completamente isolada do mundo exterior, ficando como que emparedado no sombrio interior da consciência individual” (p. 35). A pergunta que ele nos deixa é se essa consciência poderia encontrar em si, somente, os impulsos que permitiriam afirmar a liberdade dessa vontade, dado que os objetos determinam os atos de vontade em algum grau de necessidade? Haveria um impulso exclusivo da consciência que poria em marcha a vontade livre?


(*) Segunda definição do capítulo primeiro. Em: Schopenhauer, Arthur. O Livre Arbítrio - Col. Saraiva de Bolso.

sábado, 6 de janeiro de 2018

Da definição de liberdade no Livre-arbítrio*

Schopenhauer trata das definições de liberdade e consciência no primeiro capítulo do pequeno Livre-arbítrio, título-problema por ele classificado como capital na filosofia moderna. Aqui verificaremos o conceito de liberdade que para ele seria negativo por se referir à ausência de obstáculo, esse sim, positivo. Sem obstáculo, se é livre.
 Viés popular. Para Schopenhauer, na visão popular, o conceito de liberdade está associado à liberdade física: sendo livre, atos de vontade comandam o movimento, porém pode haver obstáculos materiais que impeçam a vontade. Essa visão de liberdade é por ele classificada como potência de agir, quando não há obstáculos que impeçam a ação. Como alguns dos exemplos mostrados têm-se o rio que corre livre ou os animais que erram livremente na natureza. Schopenhauer ainda cita a liberdade política dentro desse viés, mencionando que um povo é livre quando governado pelas leis que ele próprio formulou.
Viés filosófico. Já na visão filosófica, o conceito de liberdade está associado à liberdade moral: a vontade ainda seria livre ou haveria "motivos fortuitos" que impediriam a ação? Essa visão de liberdade é por ele classificada como potência de querer, o livre-arbítrio. Como um exemplo é mostrado o caso do amor à vida que todos temos, mas que pode ser acometido por um motivo suicida. Embora o motivo não tenha força física e não seja um constrangimento objetivo, ele pode ter influência subjetiva, em alguns casos, suprimindo a liberdade.
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Até aqui tudo bem. Mas, seria a vontade em si mesma livre? Pela acepção popular, segundo nosso filósofo, sim, remetendo à potência de agir. E o querer, é livre? Pela acepção popular, livre é conforme a vontade. Ou seja, eu sou livre desde que eu faça o que quero. Mas o querer é moral!!! Schopenhauer desloca o tema do campo popular para o campo filosófico.
Então, quero algo. Mas podes querer o que queres?
Haveria sempre um querer anterior ao querer e assim sucessivamente... Ou então, simplesmente podes querer?
Só um querer em si, sem sucessão? No campo moral (filosófico, que não se relaciona com a liberdade física), não se sabe e a questão do livre-arbítrio fica em aberto. Não é respondendo se posso querer ou não que se resolve o problema do livre-arbítrio, mas o que se ganha é que estamos agora no campo do querer e a investigação continua.
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Então, recuperando a noção de liberdade negativa, Schopenhauer acrescenta que ela é ausência de força necessitante.
Conceito de necessidade. Para Schopenhauer, na visão vulgar, o conceito de necessidade versa que o necessário é aquilo cujo contrário é impossível ou o que não pode ser de modo diverso. Porém, para ele, o necessário resulta de dada razão suficiente[1]. E a contingência é a não necessidade, ausência de uma razão suficiente determinada.

Posto isso, liberdade é independência de causa e livre o que não é necessário. Transferindo para o humano, uma vontade individual livre é aquela que não é determinada por razões de qualquer espécie, senão atos seriam constrangidos por necessidade. Para Schopenhauer, Kant diz que liberdade é começar por si[2], ou seja, sem causa, sem necessidade. Tal liberdade ou vontade livre, não determinada por nada, põe de lado o principio de razão suficiente indicando que não há razão para a vontade e conduzindo a uma liberdade de indiferença, conduzindo ao livre-arbítrio. Nessas condições, diante da liberdade de indiferença, o homem pode agir de duas formas diametralmente opostas.


(*) Schopenhauer, Arthur. O Livre Arbítrio - Col. Saraiva de Bolso.
[1] O “princípio de razão suficiente” é uma criação de Schopenhauer e foi tratado primeiramente em sua tese de doutorado. Aqui, o “princípio de razão suficiente” ou “consequência de razão” aparece como sinônimo de necessidade. Há uma razão suficiente para uma necessidade lógica (conclusão de um silogismo, dadas as premissas), matemática (igualdade dos ângulos de um triângulo quando ângulos são idênticos) ou real (efeito resultado da causa).
[2] Ver “A terceira antinomia da razão pura estudada pela Dialética Transcendental”, em http://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/06/um-caminho-para-liberdade-em-kant.html.