segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Depurando o sujeito

Depurar o sujeito... Para que depurar o sujeito? Para encontrar seus segredos e suas verdades? Mas, haveria esse tipo de coisa “dentro” do sujeito? É muito difícil haver uma verdade em alguém porque, expressamente, uma verdade é algo imutável. O que seria esse imutável da verdade de cada um? Onde ele se localizaria? No coração, no cérebro, na mente, na alma, em cada célula, espalhado? Ou a verdade seria o todo do todo de cada um e, aí, o todo seria imutável, o que não se verifica na prática. Mais do que isso, uma verdade de um sujeito seria algo líquido e certo e, nesse sentido, não fica claro porque revelar tal verdade. Cada verdade revelada e manifestada por um sujeito se chocaria com a verdade de outro sujeito e nada resultaria desse choque, a não ser um dispêndio de energia inútil e inaproveitável.
Depurar o sujeito... Por que depurar o sujeito? Para retirar algo dele? Depurando-o não aniquilaríamos suas vontades? A vontade de um sujeito deve ser conservada porque um sujeito com vontade faz. Um sujeito sem vontade é um sujeito depurado. O que fazer com um sujeito depurado? O que fazer com o que foi depurado de um sujeito?
Em algum momento, porém, sujeitos precisam ser depurados. E só o são por outros sujeitos. Sãos. Sujeitos são depurados por sujeitos sãos. Sujeitos sãos depuram, mas também podem ser depurados. Acaba havendo, assim, uma cadeia de depuração dos mais sãos aos menos sãos e procurando um sentido...
Não é fácil achar o ponto onde começa a depuração de um e termina a do outro e também não é fácil chegar ao sentido. Tudo isso não passa de pura ficção, fantasia. O sentido não é achar um sentido, o sentido é procurar um sentido. Depurar não é achar um sentido, é procurar um sentido. Ser depurado é um talvez, sem verdade, com vontade, procurando.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Hume e a teoria das probabilidades

Seria possível que a teoria do conhecimento e a teoria da moral humana em Hume se orientassem somente por uma teoria das probabilidades? De fato, para que fosse possível fundamentar assim seu pensamento, seria necessário implodir a distinção necessidade / contingência* do determinismo causal. A necessidade não seria uma série causal distinta das séries contingentes porque ela estaria debaixo da probabilística. Pensar na necessidade como categoria separada significa pensar no dever ser, significa acreditar que há um modus operandi ideal da sequência de acontecimentos, sejam eles naturais ou humanos, físicos ou mentais. Não existe, então, a necessidade como certeza e o resto; existe, sempre, possibilidades.
Isso, por um lado, dá um caráter provisório e suspenso a toda e qualquer existência, ao mundo e a toda e qualquer verdade. Mas, de maneira alguma, isso nos limita; há sempre um algo a se buscar dentro da esfera do possível. O possível é o conjunto do que vai acontecer e, para que algo aconteça, diversos fatores se sobrepõem e diversas condições a serem satisfeitas resultam em determinados eventos que a experiência mostra. Seja o sol nascer amanhã: um movimento de um corpo celeste, seja eu conseguir urinar: um movimento biológico meu. Há variáveis para que ambos os movimentos ocorram. Conhecemos todas? Hoje não. Conhecê-lo-emas? Não acreditamos. Porque nossa natureza somente permite determinados conhecimentos e o levantamento de algumas variáveis para que façamos com elas um diagnóstico presente e uma teoria das probabilidades do que poderá ocorrer e, assim, possamos nos mover no mundo.
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* A boutade de Charing-Cross, Gérard Lebrun 

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Dri

Gostaria de definir Dri, mas isso é tarefa inviável e inexequível. Sei algo de Dri, mas não sei se o que sei de Dri é de fato Dri, se é o que Dri diz de si mesmo ou o que dizem de Dri. Porque Dri é um e é muitos. Dri é o que vejo agora, Dri é o que me afeta nesse momento. Mas crio esse Dri da maneira que mais me apetece. Cada um cria "o" Dri da melhor maneira que lhe apetece.
Eu podia pedir que Dri se definisse, mas de nada adiantaria porque a definição de Dri de agora não seria a definição de Dri de daqui a pouco. Porque eu mudo, Dri muda e todos nós mudamos, continuamente. Porém, Dri mudar, não significa que não haja um caráter nele, de fato Dri é muito ético e corajoso. Dri mudar significa que ele não é idêntico. É como o rio de Heráclito: no mesmo rio nos banhamos e não nos banhamos. O rio que vejo aqui e agora não é o mesmo rio que verei em breve, a água que me molha agora será outra água depois, embora o rio, em seu todo, seja um só. Assim como Dri, cada gesto, cada palavra, cada música e cada expressão de Dri são diferentes e se espalham no ar, mas cada manifestação de Dri compõe um Dri-total.
Então, desisto de definir Dri... Simplesmente drilipeio Dri. Drilipar é, ao mesmo tempo, um ato de Dri e uma remissão a Dri. Sempre que houver um Dri, quer passivamente em meu pensamento, quer em uma frase ou em algum canto no mundo, aí estará constituída uma drilipação. Mas também, sempre que Dri fizer algo, seja dormir, comer ou defecar, aí também haverá um drilipamento, mas em sentido ativo. Dri se une em cada drilipação de qualquer tipo. Cada suspiro do Dri compõe a Dri-vida total. E muitas coisas emanam de Dri. Seja Dri-mãe, Dri-vó, Dri-tia, até Dri-etc. Seja o tempo decorrido antes e depois de Dri. Sei que qualquer fala de Dri fica no mundo e falarão de Dri para sempre. O mundo era um com Dri, mas é outro agora. É um mundo drilipado, drilipento. E Dri está aí para drilipar o quanto for possível e nós, drilipados e drilipando com ele, também estaremos aqui, enquanto possível.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

AIE Escola*

Sobre a reprodução das condições de produção. Ensinamento básico sobre o capitalismo: ao mesmo tempo em que produz tem que reproduzir as condições de produção (renovar). Para o capitalista, não basta somente produzir hoje, as mesmas condições devem ser reproduzidas amanhã, para que seja possível produzir novamente. É difícil pensar sobre isso, abstrair que seja, porque as evidências da produção estão embutidas em nossa consciência. Mas é certo que a formação social deve reproduzir as forças produtivas e as relações de produção existentes.

Reprodução dos meios de produção. Não há produção possível sem que haja a reprodução das condições materiais de produção. Todo ano cada empresa deve prever o que é usado ou o que se gasta em sua produção. A reprodução ocorre não somente dentro da empresa, mas mesmo em nível nacional ou mundial, para que a procura possa ser satisfeita pela oferta.

Reprodução da força de trabalho. A reprodução das forças produtivas acontece essencialmente fora das empresas. O salário que figura na empresa só como capital “mão de obra” é a condição na qual o proletário se reproduz. Esse valor vem de um mínimo historicamente consolidado a partir da luta de classes. Mas a força de trabalho deve ser qualificada e reproduzida como tal e é assegurada pelo sistema escolar capitalista que ensina saberes práticos, além das outras instituições que também reproduzem o capital. A escola também ensina regras de conduta e a preservar ordem estabelecida. Escola, igreja, exército: essas instituições ensinam saberes práticos, mas também como se submeter à ideologia dominante, seja para mandar ou obedecer. Reproduzir a força de trabalho é reproduzir qualificação e sujeição.

Infraestrutura e superestrutura (linguagem da tópica). Metáfora do edifício: na base econômica ou infraestrutura estão as forças produtivas e as relações de produção, nos andares superiores está a superestrutura com o jurídico, o político e as ideologias. A superestrutura é afetada pela base, mas há uma autonomia relativa da superestrutura sobre a base e também uma ação em retorno. É a partir do ponto de vista da reprodução que é possível e necessário pensar o que caracteriza o essencial da existência e natureza da superestrutura.

O Estado. Máquina de repressão que permite à classe dominante submeter a classe operária ao processo de extorsão da mais valia. A teoria marxista-leninista capta o aparelho de estado como aparato jurídico e político e como exército que intervém diretamente, quando necessário.

Da teoria descritiva à teoria. A metáfora do edifício e a natureza do estado são descritivas. Teoria descritiva é a primeira fase de toda teoria, mas transitória porque qualquer teoria deve ultrapassar o caráter descritivo. E a acumulação de fatos do estado não faz avançar em direção a sua definição, a uma teoria científica.

O essencial da teoria marxista do estado. O aparelho de estado só tem sentido em função do poder do estado. O objetivo da luta de classes visa o poder do estado e a utilização do aparelho de estado para seus objetivos de classe. De acordo com Marx, até a destruição do estado, um dia, pelo proletariado.

Os aparelhos ideológicos de estado - AIE. A teoria do estado deve distinguir poder de estado e aparelho de estado, mas também, os aparelhos ideológicos de estado. O que, na teoria de Marx, significa aparelho de estado, aqui será chamado aparelho repressivo de estado que usa violência, mesmo que não física. AIE são as instituições: AIE religioso, AIE escolar, AIE familiar, AIE jurídico, político, sindical, da informação e cultural. Enquanto o aparelho (repressivo) de estado pertence inteiramente ao domínio público, o AIE pertence aos domínios privados (e o domínio do estado escapa ao público e ao privado). Diferença fundamental: o AE funciona por violência e o AIE por ideologia, embora às vezes eles se combinem. Os AIE, apesar de diversos, o que os une é funcionar pela ideologia, a ideologia da classe dominante. Entretanto, os AIE são não somente os alvos, mas o local das lutas de classes, dada a dificuldade de acesso ao aparelho repressivo.

Sobre a reprodução das relações de produção. A reprodução das relações de produção é assegurada pela superestrutura jurídico-política e ideológica. É assegurada pelo exercício de poder de Estado nos aparelhos de Estado.
Então:
1. Aparelhos de estado funcionam pela repressão e ideologia - AE massivamente pela repressão e AIE pela ideologia.
2. Aparelho (repressivo) de Estado funciona como um todo organizado sob um comando único na mão da classe que detém o poder; os AIE são múltiplos, distintos e sujeitos a contradição.
3. Unidade dos AE assegurada por organização central, dos AIE assegurada em formas contraditórias pela ideologia dominante que é a da classe dominante.

A representação da reprodução das relações de produção se dá pelo papel do aparelho repressivo de estado que assegura pela força as condições políticas da reprodução das relações de produção e assegura pela repressão as condições políticas do exercício dos aparelhos ideológicos de estado. Se, na formação social capitalista, há um elevado número de AIE, no feudalismo, embora a unidade do aparelho repressivo fosse semelhante, o número de AIE era menos elevado. Na verdade, o AIE religioso, a Igreja, consolidava muitos AIE: escola, cultura, etc., e atuava em conjunto com a família. Tanto o AIE dominante era a igreja, que se seguiram a reforma e uma luta ideológica de séculos, e mesmo a revolução francesa. A burguesia visava suprimir o poder ideológico dominante da igreja e, ao lutar pela ideologia política, a burguesia também visou a luta da reprodução das relações de produção capitalista pela hegemonia ideológica, que, já nessa fase, era o AIE escolar (embora parecesse ser o AIE do estado político). Isso porque com a burguesia no poder variou o AIE político: seja de democracia, da monarquia, etc. Então o duo escola-família substitui o duo igreja-família. 
Portanto:
1. Todos os AIE concorrem para a reprodução das relações de produção, ou seja, de exploração.
2. Cada um com a parcela que lhe cabe, imprensa, política, cultura, religião, etc.
3. O concerto é dominado por uma partitura única (moralismo, nacionalismo e economismo) que de vez em quando é perturbado pelas contradições.
4. Nesse concerto, o AIE dominante é a escola.

A escola toma a cargo todas as crianças de todas as classes sociais, entre o AIE familiar e o AIE escolar, inculca a ideologia dominante, e forma operários, funcionários médios, agentes de mando, agentes de exploração e agentes de repressão. Cada um sabe seu papel de acordo com a ideologia que lhe foi inculcada, já que a escola dispõe de muito tempo no dia e muitos anos na vida. É na aprendizagem que são reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista pela ideologia da classe dominante, dissimulada na neutralidade da escola, como se fosse desprovida de ideologia.
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* Louis Althusser, Os Aparelhos Ideológicos de Estado.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Limpeza de terreno

É importante estar consciente do que deve ser feito. Muitas vezes nos deparamos com uma trave nos olhos que nos impede de termos tranquilidade para nos debruçarmos sobre o que é relevante. Senão trave, cisco, ou ciscos. Um cisquinho que seja tira nossa atenção. Isso é tão simples e trivial que não nos preocupamos e, assim, seguimos ocupados com o que não é mais importante no momento.  E não nos damos conta de que isso acontece, seja por nossa própria desorganização, seja por imposição. E desperdiçamos energia porque sempre estamos agindo. A inação é uma ação e, por isso, tudo deve ser canalizado em prol de algo que, de certa forma, valha a pena. O valer a pena aqui não é uma essência, mas uma questão de sobrevivência; tem que valer a pena estar aqui e isso envolve muitos interesses, os nossos, principalmente e, naturalmente o dos outros. 
Às vezes, então somos levados voluntariamente ou forçosamente a desviar a atenção para assuntos indevidos. Fazemos um algo disparatado, mas fazemos. De certa forma, acaba importando gastar energia para dormir tranquilo, que seja cansado.
É um fato corriqueiro e cotidiano. Cada vez mais nos distanciamos das reais possibilidades e de nossos potenciais. Há uma força nos segurando, controlando nossos passos e ações. Há um regulamento há ser seguido, há uma preocupação com a nossa conservação. Essa manutenção de um sabe lá o que é uma covardia repugnante, às vezes escondida pelo cisco. Está atrás dele e não vemos. E, irrefletidamente, corremos, fazemos, vivemos e morremos.
Não é fácil sair desse círculo vicioso. Mas seja despertando por nós mesmos, seja como resultado de uma confluência ocasional que nos atinge, algo pode acontecer. Levantar a cabeça pode significar uma transformação interessante. Retirar a trave, sacudir a poeira, limpar o terreno. Enxergar! Fazer sem peso. Pensar sem fazer também é possível. Importa mais possibilidades do que resultados; importa mais sair da loteria inebriante. Se isso acontecer, pelo menos uma vez, terá valido a pena. Será recompensador, independente de qualquer valor. 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Política sem sujeito

    Eu queria pensar em um princípio que norteasse nossas escolhas políticas ou, pelo menos, a maneira como opinamos, senão que indicasse como formulamos pensamentos muito formais e potencialmente transformadores. Vivemos sob grande sombra do estado artificial. Mais do que nunca, somos modernos. Um dia nos agrupamos e nos associamos e não importa agora sabermos o porque. Faz tanto tempo! De fato, sempre há um poder que de algum modo se estabelece. Eu queria achar uma fórmula base para tal desenvolvimento. Marx pensou historicamente uma luta pela propriedade. Para ele há um valor. Eu queria concordar com ele e buscar um valor também. Afinal não pensamos sempre e opinamos fundamentados em um valor? 
    Mas essa minha tentativa só revela o quão dogmático eu sou por acreditar que há um alguém ou muitos por trás disso tudo. Então, me lembro de que Sartre arrochou esse eu, esse que queria isso e aquilo: lançou-o para o mundo. Não há esse eu por detrás das ações, simplesmente somos atraídos pelo mundo, o primeiro estalo é intencional e irrefletido. Não há valor aí, somos apenas reflexos quase sempre mal condicionados. O agir é estupidamente livre e essa é a nossa responsabilidade: fica difícil teorizar sobre formas de verdade e encontrar saídas. Mas tudo isso parece muito sentimental. A ação deve se estabelecer um pouco mais acima.
    Precisamos entender como funcionaria uma política sem sujeito. Faz tanto tempo que esse eu vem perdendo espaço, mas a sua síntese ainda ecoa nessas reflexões. Minha revolução copernicana é expulsar esse eu da política, dissolvê-lo para poder pensar. Soa paradoxal, mas me parece um caminho. 

domingo, 4 de outubro de 2015

A fenomenologia e a guinada transcendental*

A fenomenologia visava investigar as condições subjetivas que tornavam possível o conhecimento e a experiência em geral. Mas se, de início, Husserl propusera a filosofia noética que partia da redução eidética, depois entraria em questão a temática transcendental que baseava sua análise na evidência intuitiva e não somente em restrições lógicas que às vezes não se compreende. Se, antes, tratava-se de passar da experiência para seus condicionantes formais, um novo método, da redução fenomenológica, modifica a experiência revelando nela a camada fenomenal constituinte e, através da epoché haveria a suspensão da validade objetiva existencial que é atribuída a toda a experiência. Assim, a experiência se daria de duas maneiras: a experiência natural, que é a habitual, estaria voltada os objetos a maior parte do tempo e a experiência transcendental que, pelo método da redução fenomenológica modificaria aquela experiência natural e buscaria o núcleo fenomenal em qualquer experiência, um núcleo de evidência absoluta.
Portanto, o transcendental não seria um domínio de formas abstratas, ao qual se chegaria ao abandonar a experiência; ele se trataria de um modo próprio da experiência, reduzindo-a ao seu núcleo fenomenal fundante. Para fazer filosofia deveria se modificar a experiência natural voltada para os objetos e suspender a validade das crenças pela redução: restaria o puro fenômeno, intuitivo. Se a experiência epistemológica já suporia o objeto, a experiência transcendental deveria modificá-la para esclarecer a condição de possibilidade epistemológica. Na filosofia transcendental de Husserl, não falamos de ser, falamos do que aparece como fenômeno: um lado do ser, a experiência transcendental é composta de faces, que são o núcleo da percepção visual. A redução fenomenológica busca o núcleo evidente de certeza dentro das camadas confusas da experiência.
Inicialmente, Husserl considerava que o eu tinha que ser objetivado em sentido mínimo, o eu tinha que ter algum tipo de conteúdo, deveria poder ser tema, senão não se poderia falar dele, referir-se a ele, constatá-lo, deveria se supor um caminho intuitivo para que se pudesse atestar o eu, não como ficção linguística. Do que se depreendia a incapacidade de intuí-lo, apreendê-lo, como centro de referência idêntico, como um eu puro, porque seria difícil encontrá-lo além das vivências particulares. Só seria possível trazer à intuição o eu empírico no fluxo de experiências, e não como polo unificador. Na reflexão apareceria o eu em relação às suas vivências e objetos; o eu se reduziria à unidade do fluxo fenomenológico.
Na vivência (irrefletida) a consciência estaria absorvida em seus polos objetivos e não apareceria um eu; esse somente surgiria pela modificação reflexiva. Na vivência irrefletida a consciência estaria absorvida em sua relação com os objetos intencionais que ela faria aparecer e não haveria algo como um eu coordenando essa experiência. Para surgir o eu, teríamos que pensar nele, voltar-se sobre aquela vivência irrefletida. Portanto haveria um eu fraco como unidade de todas as vivências, uma unidade de fluxo, esse eu estaria dissolvido na unidade das vivências entrelaçadas. Então a reflexão modificaria o irrefletido e tenderia a atribuir um eu. A reflexão também teria uma vivência com sensações e ações, mas a alteraria para fazer aparecer um eu. Mas, de acordo com Husserl (e Hume), para haver fluxo de experiência não seria preciso do eu, elas seriam por elas só. Portanto, o eu fenomenológico não seria senão a unidade contínua das vivências da consciência, o eu não seria o ponto diferente das vivências.
Mas, a partir da guinada transcendental, Husserl defenderia o oposto: haveria um eu puro. A fenomenologia transcendental defendera a tesa que a filosofia seria a passagem entre duas orientações do pensamento entre as quais a experiência é vivida: a orientação na natural (que não teria eu) e a orientação fenomenológico-transcendental, modificação da experiência natural. A orientação natural se voltaria para a experiência cotidiana, semelhante àquela das ciências e da verdade dos juízos, visando o mundo real, concreto. Seria uma interpretação ingênua e objetiva, voltada para as coisas que aparecem. Para fazer filosofia, seria necessária uma interpretação antinatural, que rompesse com o modo natural de fazer ciência. Pela epoché, suspender-se-ia o ser das coisas e situações transcendentes, reduzindo a experiência ao seu núcleo fenomenal evidente.  Seria suspendendo-se o ser que se iria para o modo do vivenciar que tornaria visível o âmbito fenomenal.
O eu puro seria tema da fenomenologia a partir da redução fenomenológica da orientação natural em três passos: ao partir de da descrição pessoal da orientação natural do pensar (de dentro), haveria uma sistematização teórica da tese de orientação natural, para a exposição da epoché. A reflexão natural (sem epoché) seria uma descrição da orientação natural por orientação simples: seria um discurso em primeira pessoa que cada um poderia fazer. Então, não haveria uma descrição do mundo, esse seria apresentado como uma narrativa do eu e não abstraída. Essa narrativa respeitava que a experiência comum seria pessoal e distinta dos eventos narrados, esse discurso remeteria a um eu. O que esse eu natural narraria? Em um discurso ingênuo, narraria que apareceria para o eu natural o mundo (material e cultural) como já dado, o eu se relacionaria e se adaptaria a ele. O que valesse para o narrador valeria para todos os outros eus-sujeitos, haveria uma validade intersubjetiva da experiência porque seria o mesmo mundo com existência pressuposto por todos. O cogito seria o conjunto de atos e estados subjetivos por meio dos quais a experiência natural seria vivida e ele poderia ser irrefletido nas vivências. O sujeito voltar-se-ia sobre si e narraria suas experiências, narraria o cogito e atos subjetivos e aí surgiria o eu: eu faria isso, eu faria aquilo... a orientação natural seria experimentada de forma egológica marcante, de forma personalizada.
A partir da orientação natural, Husserl isolaria um componente da narrativa: a tese ou posição de ser acerca dos polos objetivos que apareceriam e um dos seus componentes mais gerais: a crença na efetividade do mundo natural e de seus modos de ser (isso é, isso não é...). Então ele tiraria de ação essa tese e apresentaria a suspensão da validade da posição de ser. A epoché que suspenderia a orientação natural faria aparecer puros fenômenos sem orientação de ser e apareceria de modo absolutamente evidente na experiência reduzida um eu puro. Esse eu puro seria um polo idêntico de proveniência de atos, sem se confundir com nenhum deles poderia ser intuído, esse eu poderia ser tematizado como objeto. Portanto, o eu puro estaria ligado ao modo como Husserl apresentava a narrativa natural, mas seria um dado da experiência transcendental. A experiência reduzida seria fruto de uma modificação da experiência natural, a qual seria egológica, narrada do ponto de vista de um eu. Ou seja, na experiência natural existe um ego que pressupõe posições de ser. Pela epoché, a experiência reduzida suspende as posições de ser, mas mantém esse ego, mantém a forma narrativa egológica, que passa do natural para o transcendental. 

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* notas de aula de História da Filosofia Contemporânea, prof. Marcus Sacrini (primeiro semestre/2015).

Hume anti cartesiano*

Descartes enfatizou o problema do conhecimento que vem dos sentidos que nos enganam, quer uma vez ou sempre. Ele suspendeu o mundo e se fechou no penso. Remetendo à Platão e seu mundo das ideias mais reais que o mundo real, ideias antes do mundo, ideias antes da existência. Platão buscava um ideal de conhecimento verdadeiro que vinha da ideia universal, do imutável que é em si e está nas coisas. Descartes flertava com o conhecimento certo e seguro que é estabelecido a partir de regras racionais de dedução, conhecimento demonstrativo e operado pelo juízo. Conhecimento de objetos matemáticos ideais descolados porque, para ele, se a causa do erro era o sentido, ainda assim precisaríamos fazer ciência.
Grandes impropérios para Hume que apostou que toda ideia vinha da experiência, do sensível. Assim, o conhecimento possível é o da impressão que é mais viva e dela viria a ideia. Se não referenciasse o dado não haveria garantias. Descartes: cético dos sentidos, Hume: cético da racionalidade, a segurança cartesiana se despedaça na nossa imperfeição, na nossa limitação natural. Mover-se no mundo é guiar se por crenças que se comprovam na experiência, é se valer de hábitos adquiridos, comprovados, ousados, abusados e relacionados pela imaginação. A nossa natureza age assim relacionando e conhecendo o que há. Limitada e imperfeita, é a imperfeição que abre espaços para as conexões, o certo e seguro cartesiano, que é abstrato, não tem lugar aqui. 
Isso posto à guisa de introdução, fica a questão de saber qual telos se esconde por trás de tais filosofias. Descartes queria um  conhecimento científico e inabalável em um momento de autoridade da igreja e fez malabarismos. Não é tarefa fácil rasgar a tradição vigiado pela tradição. E achou um ponto arquimediano, enfim. Hume repousou em berço esplêndido de nova, mas consistente tradição racionalista, mas inovou. Ante a prova cartesiana, a possibilidade humiana. Hume verificou uma característica da nossa natureza que não acessa os segredos e causas primeiras e propôs uma filosofia experimental que lhe fosse adequada, a superação de uma metafísica de ciência dogmática em prol do possível. É porque Descartes fica no dentro, na escrivaninha, que ele consome e produz ideias. Hume vai para fora, para um fora de impressões e descobertas.
De nossa parte, em meu tempo, junto os dois, mas separando-os, Descartes de dia e Hume de noite. Se Descartes foi ciência aqui é trabalho. Divido os dois não pela episteme, mas pela linguagem que hoje me intriga. Assim penso em usar duas linguagens, uma certa e segura e outra imperfeita. Uma pensada, útil, necessária, vital. Vital porque o sistema nos onera e exige essa linguagem. Não há espaço para divagações e ruído. O público hoje virou trabalho, o público não é participação política, o público é obrigação, compromisso, quase escravidão. De noite, fora do local de trabalho, na rua, em casa, a linguagem é outra, é a que viaja, relaciona. Isso talvez pareça Habermas e sua razão comunicativa. Mas também parece conciliação e já é um progresso do pensamento sair da racionalidade em algum momento.

(*) esboço a ser aprofundado.