A fenomenologia visava investigar
as condições subjetivas que tornavam possível o conhecimento e a experiência em
geral. Mas se, de início, Husserl propusera a filosofia noética que partia da
redução eidética, depois entraria em questão a temática transcendental que
baseava sua análise na evidência intuitiva e não somente em restrições lógicas
que às vezes não se compreende. Se, antes, tratava-se de passar da experiência
para seus condicionantes formais, um novo método, da redução fenomenológica,
modifica a experiência revelando nela a camada fenomenal constituinte e,
através da epoché haveria a suspensão
da validade objetiva existencial que é atribuída a toda a experiência. Assim, a
experiência se daria de duas maneiras: a experiência natural, que é a habitual,
estaria voltada os objetos a maior parte do tempo e a experiência
transcendental que, pelo método da redução fenomenológica modificaria aquela
experiência natural e buscaria o núcleo fenomenal em qualquer experiência, um
núcleo de evidência absoluta.
Portanto, o transcendental não seria
um domínio de formas abstratas, ao qual se chegaria ao abandonar a experiência;
ele se trataria de um modo próprio da experiência, reduzindo-a ao seu núcleo
fenomenal fundante. Para fazer filosofia deveria se modificar a experiência
natural voltada para os objetos e suspender a validade das crenças pela
redução: restaria o puro fenômeno, intuitivo. Se a experiência epistemológica
já suporia o objeto, a experiência transcendental deveria modificá-la para
esclarecer a condição de possibilidade epistemológica. Na filosofia
transcendental de Husserl, não falamos de ser, falamos do que aparece como
fenômeno: um lado do ser, a experiência transcendental é composta de faces, que
são o núcleo da percepção visual. A redução fenomenológica busca o núcleo
evidente de certeza dentro das camadas confusas da experiência.
Inicialmente, Husserl considerava
que o eu tinha que ser objetivado em sentido mínimo, o eu tinha que ter algum
tipo de conteúdo, deveria poder ser tema, senão não se poderia falar dele,
referir-se a ele, constatá-lo, deveria se supor um caminho intuitivo para que
se pudesse atestar o eu, não como ficção linguística. Do que se depreendia a
incapacidade de intuí-lo, apreendê-lo, como centro de referência idêntico, como
um eu puro, porque seria difícil encontrá-lo além das vivências particulares.
Só seria possível trazer à intuição o eu empírico no fluxo de experiências, e não
como polo unificador. Na reflexão apareceria o eu em relação às suas vivências e
objetos; o eu se reduziria à unidade do fluxo fenomenológico.
Na vivência (irrefletida) a consciência
estaria absorvida em seus polos objetivos e não apareceria um eu; esse somente
surgiria pela modificação reflexiva. Na vivência irrefletida a consciência estaria
absorvida em sua relação com os objetos intencionais que ela faria aparecer e não
haveria algo como um eu coordenando essa experiência. Para surgir o eu, teríamos
que pensar nele, voltar-se sobre aquela vivência irrefletida. Portanto haveria
um eu fraco como unidade de todas as vivências, uma unidade de fluxo, esse eu
estaria dissolvido na unidade das vivências entrelaçadas. Então a reflexão modificaria
o irrefletido e tenderia a atribuir um eu. A reflexão também teria uma vivência
com sensações e ações, mas a alteraria para fazer aparecer um eu. Mas, de
acordo com Husserl (e Hume), para haver fluxo de experiência não seria preciso
do eu, elas seriam por elas só. Portanto, o eu fenomenológico não seria senão a
unidade contínua das vivências da consciência, o eu não seria o ponto diferente
das vivências.
Mas, a partir da guinada
transcendental, Husserl defenderia o oposto: haveria um eu puro. A fenomenologia
transcendental defendera a tesa que a filosofia seria a passagem entre duas orientações
do pensamento entre as quais a experiência é vivida: a orientação na natural (que
não teria eu) e a orientação fenomenológico-transcendental, modificação da experiência
natural. A orientação natural se voltaria para a experiência cotidiana,
semelhante àquela das ciências e da verdade dos juízos, visando o mundo real,
concreto. Seria uma interpretação ingênua e objetiva, voltada para as coisas
que aparecem. Para fazer filosofia, seria necessária uma interpretação antinatural,
que rompesse com o modo natural de fazer ciência. Pela epoché, suspender-se-ia o ser das coisas e situações transcendentes,
reduzindo a experiência ao seu núcleo fenomenal evidente. Seria suspendendo-se o ser que se iria para o
modo do vivenciar que tornaria visível o âmbito fenomenal.
O eu puro seria tema da
fenomenologia a partir da redução fenomenológica da orientação natural em três passos:
ao partir de da descrição pessoal da orientação natural do pensar (de dentro),
haveria uma sistematização teórica da tese de orientação natural, para a exposição
da epoché. A reflexão natural (sem epoché) seria uma descrição da orientação
natural por orientação simples: seria um discurso em primeira pessoa que cada
um poderia fazer. Então, não haveria uma descrição do mundo, esse seria
apresentado como uma narrativa do eu e não abstraída. Essa narrativa respeitava
que a experiência comum seria pessoal e distinta dos eventos narrados, esse
discurso remeteria a um eu. O que esse eu natural narraria? Em um discurso ingênuo,
narraria que apareceria para o eu natural o mundo (material e cultural) como já
dado, o eu se relacionaria e se adaptaria a ele. O que valesse para o narrador
valeria para todos os outros eus-sujeitos, haveria uma validade intersubjetiva
da experiência porque seria o mesmo mundo com existência pressuposto por todos.
O cogito seria o conjunto de atos e
estados subjetivos por meio dos quais a experiência natural seria vivida e ele
poderia ser irrefletido nas vivências. O sujeito voltar-se-ia sobre si e
narraria suas experiências, narraria o cogito e atos subjetivos e aí surgiria o
eu: eu faria isso, eu faria aquilo... a orientação natural seria experimentada
de forma egológica marcante, de forma personalizada.
A partir da orientação natural,
Husserl isolaria um componente da narrativa: a tese ou posição de ser acerca
dos polos objetivos que apareceriam e um dos seus componentes mais gerais: a crença
na efetividade do mundo natural e de seus modos de ser (isso é, isso não é...).
Então ele tiraria de ação essa tese e apresentaria a suspensão da validade da posição
de ser. A epoché que suspenderia a orientação natural faria aparecer puros fenômenos
sem orientação de ser e apareceria de modo absolutamente evidente na experiência
reduzida um eu puro. Esse eu puro seria um polo idêntico de proveniência de
atos, sem se confundir com nenhum deles poderia ser intuído, esse eu poderia
ser tematizado como objeto. Portanto, o eu puro estaria ligado ao modo como
Husserl apresentava a narrativa natural, mas seria um dado da experiência transcendental.
A experiência reduzida seria fruto de uma modificação da experiência natural, a
qual seria egológica, narrada do ponto de vista de um eu. Ou seja, na experiência
natural existe um ego que pressupõe posições de ser. Pela epoché, a experiência reduzida suspende as posições de ser, mas mantém
esse ego, mantém a forma narrativa egológica, que passa do natural para o
transcendental.
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* notas de aula de História da Filosofia Contemporânea, prof. Marcus Sacrini (primeiro semestre/2015).
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