domingo, 4 de outubro de 2015

A fenomenologia e a guinada transcendental*

A fenomenologia visava investigar as condições subjetivas que tornavam possível o conhecimento e a experiência em geral. Mas se, de início, Husserl propusera a filosofia noética que partia da redução eidética, depois entraria em questão a temática transcendental que baseava sua análise na evidência intuitiva e não somente em restrições lógicas que às vezes não se compreende. Se, antes, tratava-se de passar da experiência para seus condicionantes formais, um novo método, da redução fenomenológica, modifica a experiência revelando nela a camada fenomenal constituinte e, através da epoché haveria a suspensão da validade objetiva existencial que é atribuída a toda a experiência. Assim, a experiência se daria de duas maneiras: a experiência natural, que é a habitual, estaria voltada os objetos a maior parte do tempo e a experiência transcendental que, pelo método da redução fenomenológica modificaria aquela experiência natural e buscaria o núcleo fenomenal em qualquer experiência, um núcleo de evidência absoluta.
Portanto, o transcendental não seria um domínio de formas abstratas, ao qual se chegaria ao abandonar a experiência; ele se trataria de um modo próprio da experiência, reduzindo-a ao seu núcleo fenomenal fundante. Para fazer filosofia deveria se modificar a experiência natural voltada para os objetos e suspender a validade das crenças pela redução: restaria o puro fenômeno, intuitivo. Se a experiência epistemológica já suporia o objeto, a experiência transcendental deveria modificá-la para esclarecer a condição de possibilidade epistemológica. Na filosofia transcendental de Husserl, não falamos de ser, falamos do que aparece como fenômeno: um lado do ser, a experiência transcendental é composta de faces, que são o núcleo da percepção visual. A redução fenomenológica busca o núcleo evidente de certeza dentro das camadas confusas da experiência.
Inicialmente, Husserl considerava que o eu tinha que ser objetivado em sentido mínimo, o eu tinha que ter algum tipo de conteúdo, deveria poder ser tema, senão não se poderia falar dele, referir-se a ele, constatá-lo, deveria se supor um caminho intuitivo para que se pudesse atestar o eu, não como ficção linguística. Do que se depreendia a incapacidade de intuí-lo, apreendê-lo, como centro de referência idêntico, como um eu puro, porque seria difícil encontrá-lo além das vivências particulares. Só seria possível trazer à intuição o eu empírico no fluxo de experiências, e não como polo unificador. Na reflexão apareceria o eu em relação às suas vivências e objetos; o eu se reduziria à unidade do fluxo fenomenológico.
Na vivência (irrefletida) a consciência estaria absorvida em seus polos objetivos e não apareceria um eu; esse somente surgiria pela modificação reflexiva. Na vivência irrefletida a consciência estaria absorvida em sua relação com os objetos intencionais que ela faria aparecer e não haveria algo como um eu coordenando essa experiência. Para surgir o eu, teríamos que pensar nele, voltar-se sobre aquela vivência irrefletida. Portanto haveria um eu fraco como unidade de todas as vivências, uma unidade de fluxo, esse eu estaria dissolvido na unidade das vivências entrelaçadas. Então a reflexão modificaria o irrefletido e tenderia a atribuir um eu. A reflexão também teria uma vivência com sensações e ações, mas a alteraria para fazer aparecer um eu. Mas, de acordo com Husserl (e Hume), para haver fluxo de experiência não seria preciso do eu, elas seriam por elas só. Portanto, o eu fenomenológico não seria senão a unidade contínua das vivências da consciência, o eu não seria o ponto diferente das vivências.
Mas, a partir da guinada transcendental, Husserl defenderia o oposto: haveria um eu puro. A fenomenologia transcendental defendera a tesa que a filosofia seria a passagem entre duas orientações do pensamento entre as quais a experiência é vivida: a orientação na natural (que não teria eu) e a orientação fenomenológico-transcendental, modificação da experiência natural. A orientação natural se voltaria para a experiência cotidiana, semelhante àquela das ciências e da verdade dos juízos, visando o mundo real, concreto. Seria uma interpretação ingênua e objetiva, voltada para as coisas que aparecem. Para fazer filosofia, seria necessária uma interpretação antinatural, que rompesse com o modo natural de fazer ciência. Pela epoché, suspender-se-ia o ser das coisas e situações transcendentes, reduzindo a experiência ao seu núcleo fenomenal evidente.  Seria suspendendo-se o ser que se iria para o modo do vivenciar que tornaria visível o âmbito fenomenal.
O eu puro seria tema da fenomenologia a partir da redução fenomenológica da orientação natural em três passos: ao partir de da descrição pessoal da orientação natural do pensar (de dentro), haveria uma sistematização teórica da tese de orientação natural, para a exposição da epoché. A reflexão natural (sem epoché) seria uma descrição da orientação natural por orientação simples: seria um discurso em primeira pessoa que cada um poderia fazer. Então, não haveria uma descrição do mundo, esse seria apresentado como uma narrativa do eu e não abstraída. Essa narrativa respeitava que a experiência comum seria pessoal e distinta dos eventos narrados, esse discurso remeteria a um eu. O que esse eu natural narraria? Em um discurso ingênuo, narraria que apareceria para o eu natural o mundo (material e cultural) como já dado, o eu se relacionaria e se adaptaria a ele. O que valesse para o narrador valeria para todos os outros eus-sujeitos, haveria uma validade intersubjetiva da experiência porque seria o mesmo mundo com existência pressuposto por todos. O cogito seria o conjunto de atos e estados subjetivos por meio dos quais a experiência natural seria vivida e ele poderia ser irrefletido nas vivências. O sujeito voltar-se-ia sobre si e narraria suas experiências, narraria o cogito e atos subjetivos e aí surgiria o eu: eu faria isso, eu faria aquilo... a orientação natural seria experimentada de forma egológica marcante, de forma personalizada.
A partir da orientação natural, Husserl isolaria um componente da narrativa: a tese ou posição de ser acerca dos polos objetivos que apareceriam e um dos seus componentes mais gerais: a crença na efetividade do mundo natural e de seus modos de ser (isso é, isso não é...). Então ele tiraria de ação essa tese e apresentaria a suspensão da validade da posição de ser. A epoché que suspenderia a orientação natural faria aparecer puros fenômenos sem orientação de ser e apareceria de modo absolutamente evidente na experiência reduzida um eu puro. Esse eu puro seria um polo idêntico de proveniência de atos, sem se confundir com nenhum deles poderia ser intuído, esse eu poderia ser tematizado como objeto. Portanto, o eu puro estaria ligado ao modo como Husserl apresentava a narrativa natural, mas seria um dado da experiência transcendental. A experiência reduzida seria fruto de uma modificação da experiência natural, a qual seria egológica, narrada do ponto de vista de um eu. Ou seja, na experiência natural existe um ego que pressupõe posições de ser. Pela epoché, a experiência reduzida suspende as posições de ser, mas mantém esse ego, mantém a forma narrativa egológica, que passa do natural para o transcendental. 

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* notas de aula de História da Filosofia Contemporânea, prof. Marcus Sacrini (primeiro semestre/2015).

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