quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A imanência: uma vida...*

De acordo com Agamben, tanto Deleuze quanto Foucault deixaram um testamento para a Filosofia, já que ambos discorreram sobre a vida em seus textos antes de morrer.**
Sobre o texto de Deleuze, Agamben destaca inicialmente os usos da pontuação que se seguem aos conceitos do título. Os dois-pontos, por um lado, relacionam os conceitos imanência e vida não como uma identidade "é", nem como um agenciamento "e", mas como agenciamento absoluto que significa uma abertura para um outro que permanece. Os dois-pontos é o deslocamento da imanência em relação a si mesma. A pontuação, que liberta as palavras das amarras da sintaxe, por outro lado, reforça através das reticências a indefinição do artigo "uma", não como indeterminação empírica, mas como determinação de imanência. Essa indeterminação não é falta, mas remete à virtualidade, a singularidades que não transcendem o ser.
A imanência, em Deleuze, escapa a qualquer transcendência do sujeito ou do objeto, ela só é imanente a si mesma, mas em movimento. Extrapolando o conceito de campo transcendental, em Sartre, que ainda remetia a uma consciência [irrefletida], Deleuze situa a consciência em uma zona pré individual e impessoal, livre do cogito e sem sujeito. Seria um empirismo transcendental que se liberta da consciência, enfim, superando o transcendental tratado como decalque do empírico.***
Agamben nos mostra uma genealogia da imanência em Deleuze, tendo Espinosa como grande precursor. A imanência brota da univocidade do ser, já que o ser é único em si mesmo (com a não transcendência na substância, sua causa é imanente) e nos modos (que são outra coisa). O ser produz permanecendo. O efeito é "imanado" na causa ao invés de "emanar" dela, ou seja, a imanência é só em relação a si e não a algo. É a absolutização da imanência que toma tudo. Não se pensa a imanência em relação a um transcendente (como fez Husserl), mas a transcendência é pensada no interior do imanente, sem ponto fixo, horizonte ou orientação.
Mas e a vida? Deleuze vai buscar o conceito "uma vida" na literatura de Dickens. Uma vida é um suspiro, um sinal de vida de um moribundo que não está nem lá nem cá, em um intermundo entre dois mundos. Assim como na criança uma vida é pura potência, a criança não é um indivíduo, mas apresenta singularidades. A vida, então, é impessoal, não é exterior e nem interior, está além do bem e do mal, está liberta seja da objetividade ou da subjetividade, a vida é separada da pessoa, não tem personalidade.
Em Aristóteles, a vida foi definida com vida nutritiva a partir de sua busca pelo fundamento. Se viver se diz de muitas maneiras, basta que uma delas subsista para que algo viva. A vida nutritiva é o princípio último do viver que suporta o ser (assim como a vida vegetativa, no caso das plantas).**** Haveria, então, uma convergência entre a vida da criança ou do moribundo e esta proposta por Aristóteles? A vida em Aristóteles é um princípio que se atribui ao sujeito; a vida em Deleuze é a imanência que não se atribui a um sujeito, é indeterminação virtual. A vida é indefinida e sem momentos, é uma imensidão de tempo vazio. A vida, para Deleuze, é contemplação sem conhecimento, além de todo o sujeito e objeto do conhecimento, é uma vida contemplativa.
Retornemos à imanência em Espinosa, para seguirmos com a conceituação de vida. A partir de um esforço gramatical, ele definiu a causa imanente por um verbo reflexivo ativo numa ação que agente e paciente são uma pessoa só. É o verbo passear-se, onde o passeio é um passear-se, nem ativo e nem passivo, onde potência e ato entram em uma absoluta zona de indeterminação. 
Mas a vida é também o campo de imanência variável do desejo, não como falta ou alteridade, mas como causa imanente que não sai fora de si; a vida é a imanência do desejo em relação a si mesmo. Viria do conatus de Espinosa, todo ser não só persevera em seu ser como deseja perseverar nele. Se Deleuze abandonou a vida nutritiva como atribuição de subjetividade, pelo conatus ele não quer abandonar essa noção quando ela significa mais do que crescimento, a autoconservação. A vida nutritiva da autoconservação é o nutrir-se que favorece o crescimento natural, que faz atingir o estado para o qual tende. Essa potência de conservação coincide com o desejo de conservar seu ser que é a potência da vida como imanência absoluta. E isso é beato, essa fruição de si: o nutrir-se, deixar-se ser, o movimento da causa imanente.
Enfim, tanto Foucault quanto Deleuze realizaram uma reconstrução genealógica do conceito de vida, não médico-científico, mas filosófico-político-teológico. Agamben acredita nesse recado para a Filosofia que vem, já que abre-se uma plano de imanência para a vida como contemplação sem conhecimento, afastada de qualquer cognitividade e intencionalidade.
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* Resenha dos pontos destacados por Agamben sobre o texto homônimo de Deleuze.
** Foucault propôs uma inversão de perspectiva da relação entre sujeito e verdade, a partir de outra noção de epistemologia próxima da errância e onde o vivente não encontra o seu lugar.
*** Interessante notar esse contraponto entre abertura e permanência que vai desembocar na vida beata a seguir. Aqui ainda estamos no campo da imanência, logo a imanência da imanência apresentará a vida, a imanência absoluta.
**** O conceito chega a Foucault que associaria a vida nutritiva àquela vida que fica sob os cuidados do Estado a partir do século XVIII, e a política se transforma em biopolítica.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Estruturas inconscientes transcendentes que determinam o homem*

O estruturalismo parte de uma redefinição das ciências humanas colocando a linguística em seu centro: é questão de método tratar a linguagem como sistema diferencial opositivo de fonemas que se especificam reciprocamente em relações. A linguística, então, seria um modelo epistemológico em que a linguagem é condição de todo e qualquer fato social ou psíquico; os fenômenos observáveis resultariam de leis gerais, mas ocultas.

O problema do inconsciente

A estrutura, então, determinaria de maneira transcendente o campo fenomenal, onde seus atores agiriam de forma inconsciente: falar sem ter consciência da estrutura dos fonemas, casar sem se atinar para as relações de parentesco omitidas pelo matrimônio. Seriam as estruturas que dariam sentido, os homens apenas ocupariam os lugares nelas e a verdadeira relação deles seria com a estrutura, não com os outros homens (ou seja, os homens seriam determinados e mediados pelas estruturas). O sujeito seria uma construção ideológica ou ilusão metafísica e não agiria, mas seria agido pelas estruturas sociais; o que determinaria o sujeito se daria no nível do pensamento inconsciente. Mesmo se eu quisesse tomar consciência enquanto falo, ainda assim eu falaria por uma perspectiva determinada pela própria estrutura (em relação a ela e não sem ela...). O inconsciente, para Lacan, era o sistema de regras e leis anteriores à consciência, ele seria vazio e  não um que se serviria de eventos passados que seriam conteúdos mentais não acessíveis atualmente à consciência (inconsciente sem acesso aos conteúdos mentais da consciência). Por essa noção de inconsciente devemos admitir que haveriam processos não acessíveis à consciência porque ela não teria condições de os representar, do que Deleuze dirá que a estrutura é uma multiplicidade de séries nem todas representáveis.

O problema do transcendental

Em Saussure, a linguagem assume caráter transcendental como condição de existência, como lei geral de fatos linguísticos e sua essência, adquirindo caráter de objeto dotado de realidade própria independente de qualquer sujeito: o Kantismo sem sujeito transcendental. Mas como se daria a gênese desse objeto transcendental? Na verdade, ele seria constituído pela estrutura e, de qualquer modo, se valeria de uma função simbólica que estruturaria o universo dos possíveis. E, nessa origem, haveria um excesso de significantes, onde apareceria o elemento paradoxal: nossa conhecida casa vazia (ver Como reconhecer o estruturalismo?). A partir dela, Deleuze questionará o estatuto do sujeito no Anti-Édipo, que não será uma substância auto idêntica, mas causado pela circulação da casa vazia na estrutura, sujeito sem individualidade (mas com particularidades moleculares) e com o desejo marcado por esse objeto.


(*) Aula 2 de Capitalismo e Esquizofrenia, prof. Vladimir Safatle, curso de Teoria das Ciência Humanas III, alguns conceitos.