segunda-feira, 29 de junho de 2020

A crença primordial na realidade do mundo[i]

De como noções cartesianas poderiam justificar a telepresença que é refutada pela atividade incorporada proposta por Merleau-Ponty.

Dreyfus traz, inicialmente, a possibilidade de uma Máquina que nos permitisse viver envolvidos eletronicamente uns com os outros à distância[ii]. Em tal realidade, de uma vida dentro do quarto em contato com o mundo, nossos corpos pareceriam irrelevantes e nossa atividade seria guiada pela mente.

A seguir, então, Dreyfus move a questão para o nosso tempo onde a telepresença[iii] é real e se encaminha ante duas visões: por um lado, apontando para uma vivência ubíqua (e, por que não eterna, se desincorporada?) e, por outro, mostrando que a mediação pela net traz isolamento e depressão, segundo apontam pesquisas da Carnegie Mellon e Stanford. Isso leva os pesquisadores a suscitarem questões sobre o tipo de mundo que teríamos a partir dos progressos da telepresença.

Embora alguns especialistas em tecnologia e infraestrutura apontem para a rede mundial e a telepresença como propiciando uma vida melhor, para verificar essa questão Dreyfus lança algumas perguntas, das quais nos ateremos sobre a se a relação com o mundo pela tele tecnologia afeta nosso senso de realidade.

Pois bem, Dreyfus remete a Descartes o surgimento da noção de nossa experiência subjetiva e de mundo interior, separando a realidade externa dos conteúdos da mente. Ele destaca o pioneirismo de Descartes na óptica e de como faríamos um acesso indireto ao mundo pela representação no cérebro ou na mente. Mesmo relatos de membros fantasmas (p.ex., uma perna amputada) indicariam que uma dor não é proveniente do corpo.

Nesse sentido, se para Descartes o acesso ao mundo se da pela mente e é pessoal e subjetivo, para Dreyfus tal conclusão parece corroborar a telepresença. Entretanto, mesmo que via uma experiência indireta, para Dreyfus o questionamento dos pragmatistas é mais importante: se nossa relação é incorporada e ativa ou desincorporada e distanciada. Do que eles concluem com a primeira caracterizando nosso contato com o mundo através de um feedback perceptível.

Dreyfus mostra que a tecnologia pode trazer esse feedback, mesmo que remotamente, em tempo real. Mas, ainda assim, algo se perde na distância. E é exatamente o senso de prontidão, o risco de estar no mundo, e sem tal vulnerabilidade a experiência seria sentida como irreal. Ou será que a possibilidade de controle pela tecnologia nos livraria de tal senso de prontidão?

Para Merleau-Ponty, o corpo necessita de um senso de apreensão ótima do mundo e é isso que traz o sentido de presença do mundo. Nem excesso, nem deficiência, buscamos uma distância ótima dos objetos obtida quando o corpo se entrelaça com o mundo. A experiência é indeterminada e pela percepção buscamos a melhor apreensão que possa superar essa incerteza.

É essa noção de prontidão incorporada que é nossa crença primordial na realidade do mundo[iv].  Conforme Dreyfus:

“É o que nos dá o nosso sentido da presença direta das coisas. Então, para haver um sentido de presença na telepresença, alguém não apenas teria que ser capaz de ter uma apreensão das coisas à distância; alguém precisaria ter um senso do contexto ao solicitar prontidão constante para ter uma apreensão constante do que vier pela frente”.

Por fim, mesmo novas técnicas que trazem uma multicanalidade na interação visando complementar o senso de feedback, como som ambiente ou canais de toque e cheiro, não seriam capazes de prover um senso holístico da interação incorporada, crucial aos encontros humanos intercorporais.



[i] Dreyfus, Hubert L. A Internet – Uma crítica filosófica à educação à distância e ao mundo virtual. 2. Ed. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2012. Capítulo 3.

[ii] Dreyfus se refere à obra The Machine stops escrita em 1909 por Edward Morgan Forster.

[iii] Telepresença refere-se a um conjunto de tecnologias que permitem a uma pessoa sentir-se presente, dar a aparência de estar presente ou ter um efeito, via tele robótica, em um local que não seja sua verdadeira localização. Conforme Wikipédia: https://en.wikipedia.org/wiki/Telepresence, acesso em 21 de junho de 2020.

[iv] Nossa urdoxa, conforme Dreyfus. Urdoxa é a doutrina primeira, advinda da noção de doxa dos gregos, ou opinião. Depois Husserl, em seu projeto fenomenológico, trouxe a noção para a urdoxa da experiência, contexto que estamos vendo aqui e que foi minimizado pelos estruturalistas, posteriormente, por trazer conotação transcendental. Conforme Wikipédia: https://pt.qwe.wiki/wiki/Urdoxa. Acesso em 28 de junho de 2020.


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Livre direito de manifestação

Sim, temos que falar disso pois, embora pareça óbvio, não é consenso, não é garantido. Estava eu aqui a refletir sobre a epígrafe: “livre direito” ou “direito livre” e me lembrei de Sílvio de Almeida tratando de junção semelhante entre direito = justiça e filosofia = verdade. Ou seja, ele enfatizaria que justiça e verdade antagonizam, mormente quando juntas.
Pois bem, escolhemos livre antes de direito por acreditar que mais vale a liberdade do que a justiça. Isso por que a justiça sempre falhará, mesmo que de olhos vendados. Porém, liberdade não tem referencial. Essas palavras: Justiça, Verdade, Liberdade, Homem, etc., elas não existem, de fato, já diriam certos céticos ou nominalistas. Contudo, não há como evitá-las no discurso, afinal e tão somente elas têm essa função.
Então, "livre direito de manifestação", aqui e agora, não se refere à política de uma maneira mais ampla. Nem mesmo juridicamente, de fato. "Livre direito de manifestação" é tão somente podermos dizer algo. E, sim, é muito difícil dizermos algo porque há todo um aparato estabelecido para nos intimidar, seja ele claro ou latente. Além disso, há o emprego!
Sendo seres sociais, temos que trabalhar, não há outro jeito; a mãe natureza nos dá em estado bruto e temos que produzir. Nesse sentido, as forças se canalizam na função do cumprimento e caímos na heteronomia. Palavra esquisita, não é? Heteronomia não passa do oposto de autonomia e, autonomia, é o direito à livre manifestação.
Veja: autonomia é. Heteronomia, seu oposto. E sim, agora que falamos de autonomia, falamos do direito à livre manifestação e, falamos porque formalizamos. Mas, antes de formalizar, o que entristece, decepciona, é não poder livremente exercer a autonomia [plenamente] por estarmos em um estado ou ciclo evolutivo e ancestral atual de impasse.
Descumprir as regras, quebrar os grilhões, gritar! Falar, pensar, ler, ouvir, refletir, escrever, desenhar, aroeirar, etc. Tudo isso nos é roubado diariamente, seja pela fonte pagadora (porque demanda, não porque censura, voila), seja pela norma coercitiva. Precisamos passar a limpo tudo isso para nos tornarmos homens ou continuarmos rastejando.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Inteligência Artificial: o caminho da representação cognitiva ao dinamismo do Dasein[i]

Crítica de Dreyfus à abordagem representacional usada pela Inteligência Artificial em seu surgimento (década de 60). Baseia-se na filosofia heideggeriana que postula um tipo de existência não representacional do ser-no-mundo, que pode ensejar outra IA.

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Com o pano de fundo de inserir Dreyfus na tradição fenomenológica, o artigo de Gomes mostra como ele se utilizou de Heidegger para criticar a abordagem representacional dos engenheiros do MIT no desenvolvimento da IA e também uma crítica à herança cartesiana dualista, combatida por Heidegger pela noção de ser-no-mundo.

Heidegger e a negação da representação. Gomes mostra como Dreyfus foi descartado no laboratório de IA do MIT sob a direção de Marvin Minsky e depois retomado, 20 anos depois, em 1986, por Patrick Winston. No cerne do problema está a abordagem representacional dos engenheiros e um projeto de mapear todas as “características” do senso comum deixando de fora o próprio mundo. Então, um robô que se orientasse pelo mundo seria mais bem sucedido.

Conforme mostra Gomes, tendo como base a filosofia racionalista[ii], a tese norteadora da IA era aproximar a cognição (cognitivismo) da computação a partir da ideia de que a “percepção funciona como uma síntese de dados isolados com predicados previamente estabelecidos que, em princípio, podem ser transpostos para um sistema artificial como um computador” (grifo nosso). Entretanto, Dreyfus se utiliza de Heidegger para conceituar uma intencionalidade ante predicativa que entrelaça o ser com o mundo na significação e não uma consciência que se isola pela via da representação. Dreyfus percebe que “os pesquisadores estavam tendo dificuldades com o problema de representar o significado e a relevância, um problema que Heidegger viu como implícito no entendimento de Descartes do mundo como um conjunto de fatos sem sentido nos quais a mente faria a valoração posteriormente.”.

Ao tentar resolver o problema do conhecimento de senso comum [frame problem], Minsky buscou armazenar a enormidade de fatos do mundo sem se dar conta que mais valia a totalidade existencial. Ao limitar robôs a “micromundos”, de forma a reduzir as possibilidades de análise, a base empírica de explicação do Dasein ficava mais distante. Porém, duas décadas depois, Winston já se aproximava da noção existencialista e os robôs de Rodney Brooks possuíam sensores que aprendiam com o ambiente trazendo a questão corporal da cognição.

Pano de fundo. Diferentemente da abordagem cognitivista de armazenamento da predicação dos objetos (função), o Dasein é significado em cada contexto (ação). O corpo funciona de forma irrefletida, não precisa representar para si, e há casos em que o conteúdo intencional da consciência está voltado a outro Dasein (andar, passar a marcha do carro, eu faço isso, mas penso naquilo, etc.). A cognição tem um aspecto não representacional que é não predicável, ou seja, citando Dreyfus, “todo modo de lidar com o mundo acontece em um pano de fundo que Heidegger chama de ser-no-mundo, o qual não envolve nenhum tipo de representação”. Antes do cogito cartesiano (da intencionalidade de ato), há o ser-no-mundo heideggeriano, não representacional e mais básico onde ainda não há valor predicativo nem estado de consciência.

O modelo neurodinâmico de Freeman[iii]. O modelo de Freeman é o contraponto encontrado por Dreyfus para se opor ao representacionismo cognitivista. Em suas pesquisas com coelhos, Freeman mostra que os estímulos do ambiente atuam sugestionando o comportamento e criando uma significação que se altera com o tempo. A soma das experiências cria reações diversas a estímulos semelhantes ressaltando o papel valorativo do organismo na apreensão do ambiente, algo que não cabe em um modelo interno representacional do ambiente. O computador tem um modelo prefixado que não aprende com novas informações, suas representações não dão conta do dinamismo e historicidade do comportamento, que sempre se reconfigura globalmente a partir de novas percepções do mundo. Programar assim a inteligência humana ainda requer um agente corporificado capaz de ser-no-mundo, de acordo com Dreyfus.

A esfera ontológica do Dasein[iv]. A ciência usa uma perspectiva ôntica, segundo Heidegger, para examinar os objetos e sua composição física deixando de fora a ontologia, uma análise fenomenológica do objeto. Mais do que um substrato material, o aspecto ontológico do ser do Dasein traz o pano de fundo não representacional, e só assim se torna inteligível para nós, mesmo antes do acesso à consciência. Para Heidegger a redução da análise à res extensa exclui a significação.

Da mesma forma, como mostra Dreyfus, o cognitivismo que armazena regras e fatos visando formalizar a representação deixa de fora a significância e não atinge o que é relevante em cada situação. Como dito sobre os micromundos, em contextos menores e dadas suas particularidades o cognitivismo funciona, como em carros auto dirigíveis. Porém, para o comportamento humano há um background não representacional de um ser-no-mundo que é inesgotável e dialético, difícil de ser artificializado. O cognitivismo, em uma visão heideggeriana atualizou a ontologia cartesiana em uma esfera ôntica que não é suficiente. Mas é a ontologia do Dasein que desvela o fenômeno e a perspectiva não representacional.

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A res extensa é um recorte material do real que não abarca o ser-no-mundo e, dessa maneira, uma representação do exterior não traz consigo o aspecto da intencionalidade ante predicativa. Assim, a ontologia do Dasein mostra que o acúmulo desenfreado de dados pode não conduzir ao comportamento inteligente, como esperado pela IA.



[i] HUBERT DREYFUS E O ANTICARTESIANISMO HEIDEGGERIANO. Rodrigo Benevides Barbosa Gomes. Disponível em: http://revistas.marilia.unesp.br/index.php/kinesis/article/view/8070. Acessado em 08 de junho de 2020. O Ser-aí ou o Ser-aí-no-mundo e Existência é a tradução portuguesa do termo alemão Dasein, muito usado no contexto filosófico como sinônimo para ser existente. Conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Ser-a%C3%AD, acessado em 11 de junho de 2020.

[ii] Segundo Dreyfus, embora os estudantes de IA dissessem resolver questões filosóficas seculares, seus sistemas simbólicos físicos se baseavam nas representações mentais de Descartes, na tese de Kant de que conceitos são regras, etc.

[iii] A abordagem neurodinâmica de Freeman assemelha-se aos princípios da Gestalttheorie que recusava a chamada hipótese de constância, na qual a resposta aos estímulos funcionava como um padrão pré-estabelecido que não muda a partir dos diferentes contextos e ações. Citando Freeman: “Não há representações fixadas, como há em computadores; há apenas significações”. Gestalt é uma doutrina que defende que, para se compreender as partes, é preciso, antes, compreender o todo. Conforme Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gestalt, acessado em 10 de junho de 2020.

[iv] Em resumo: ôntico diz respeito aos entes em sua existência própria; ontológico diz respeito aos entes tomados como objetos de conhecimento. Como existem diferentes esferas ou regiões ônticas, existirão ontologias regionais que se ocupam com cada uma delas. Em ÔNTICO E ONTOLÓGICO - Filosofia, Ética e Cidadania, https://www.passeidireto.com/arquivo/4412471/ontico-e-ontologico, acessado em 11 de junho de 2020.