quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Sentido de uma vida incrédula

Não é necessário que uma vida tenha sentido, porém, para uma vida criada nos desígnios religiosos, tal esclarecimento é suscitado. A teleologia de uma vida semeada no seio cristão traz a proeminência de uma justificativa que possibilite argumentação externa e convencimento próprio.

Pois bem, o etos da religião cristã dá sentido à vida terrena, visto que há uma vida além desta cujo direito de ser vivida deve ser conquistado. O rumo que essa vida deve tomar vem da bíblia, seja diretamente pelo crente ou via um sacerdote ou instituição que a traduz.

O cristão é formado em tais preceitos e não existe brecha para contestação. A religião é artigo de fé. Em um estado laico, como o Brasil, há poucas opções e as instituições salvaguardam a supremacia religiosa. Tentativas de escape não são bem vindas.

Porém, casos de emancipação podem ocorrer, muito embora não haja garantia de certeza. Mas, se temos que procurar algo em que nos guiarmos em uma vida agnóstica, talvez a melhor saída seja a orientação ética. A incredulidade, quando acomete, seja religiosa ou um ceticismo filosófico, não pode nos relegar a uma falta de norte.

A saída ética que pode nos guiar é individual e coletiva. É a ética do que defendemos para nós e através da qual engajamos os demais, nossos coirmãos. Pode ser uma ética ecológica, inclusiva, pansexual, socialista, pluralista ou emancipatória. Contudo, não importa, não há valores predefinidos, a construção se da sobre o que nos afeta, o que nos oprime ou liberta.

Mais do que se definir, precisamos delimitar o que deve ser evitado: a aposta na superstição e o compromisso com a evangelização, males maiores da religião. Se não temos que negar a finalidade da vida, muito menos temos que nos preocupar com a finalidade que cada um toma para sua vida, por mais que o diálogo seja sempre recomendado, senão estimulado.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Sobre a plasticidade cerebral e outros princípios de seu funcionamento interno

Trataremos de alguns princípios mais relevantes em um primeiro contato com a dinâmica do cérebro, porém sem rigor técnico[i]. Importa o entendimento geral e algumas reflexões a partir desse exame do órgão composto por em torno de 86 bilhões de neurônios e 1 quatrilhão de sinapses[ii] (1.000.000.000.000.000).

Duas considerações iniciais: 1.) Nicolelis chama de solenoide a forma como os neurônios se organizam em laços para se relacionarem e transmitir informações e 2.) importa ressaltar que, como estamos verificando a parte interna do cérebro, temos receptores sensoriais, que se encontram no tálamo, para comparar as informações do mundo com a do nosso cérebro. E o primeiro e mais importante princípio: a plasticidade neural, ou seja, a capacidade do cérebro de se modificar tanto anato como funcionalmente, seja pelo aprendizado, mudanças no corpo, engajamento social etc. E a variação do número e distribuição das sinapses que ocorrem nos solenoides.

A fé move montanhas? Nicolelis relata experimentos realizados em seu laboratório em Duke como, por exemplo, o implante de neuro próteses em ratos que permitiram aos animais identificarem a luz infravermelha. Tais experimentos vão no sentido das pesquisas de interface cérebro-máquina e o famoso Projeto Andar de Novo, através dos quais o neurocientista e sua equipe puderam conhecer melhor o funcionamento do cérebro.[iii]

O implante de multieletrodos em ratos interferindo em seu sistema motor e os demais experimentos demonstram como as populações de neurônios trabalham de maneira interconectada e distribuída. Nicolelis traz o esquema do braço robótico que é movimentado através de comandos via chips conectados a um cérebro e transmissores sem fio, de onde constatamos que talvez não seja exatamente a fé que move montanhas... Mas, seria o pensamento capaz de mover uma pedra que estivesse sobre uma superfície móvel controlada por ele?

Outros princípios:

· Massa neural: mais neurônios em uma população, maior a contribuição em um determinado padrão comportamental;

· Multitarefa: mesmo neurônio pode contribuir com mais de um comportamento/parâmetro motor;

· Redundância: não há um padrão fixo e o recrutamento de neurônios para tarefas é ad hoc, ou seja, não ocorre ao mesmo tempo e varia expressamente, oferecendo proteção contra falhas;

· Contextualização: para responder aos estímulos sensoriais exteriores;

· Conservação de energia: se há um trabalho excessivo por determinadas populações de neurônios, outras trabalharão menos.

Atividade antecipatória. Um princípio que Nicolelis também identifica em ratos é a atividade antecipatória, nos roedores associada ao uso das vibrissas que funcionam como dedos, localizando-os. Essa atividade antecipatória está ligada ao ponto de vista do cérebro, ponto de vista interno proveniente da história perceptual do indivíduo, do estado dinâmico do cérebro, das expectativas de cada situação e dos valores que experimentamos.

Experimentos feitos pela equipe do catedrático em macacos mostra que há uma reconfiguração dos parâmetros quando há mudança na recompensa que era esperada ser recebida em determinada tarefa. Isso reforça a plasticidade: o cérebro continuamente se reformata e se antecipa. De novo, perguntamos: onde está localizada, em nosso processo decisório, essa predição?  Faz parte do inconsciente? Em nosso dia-a-dia, ficaria essa atividade preditiva facilitada pelos ciclos (dia-noite-semana-etc.)? Seria trabalho do cérebro conservar energia até atingir uma zona de conforto ou é exatamente essa zona de conforto que traz uma não evolução neuronal?

Enfim e por fim, há uma capacidade central do cérebro de aprender e se auto adaptar, característica não encontrada nos computadores. Nicolelis também cita o caso de cegos que redirecionam seus neurônios para tratar os novos impulsos sensoriais. Todos esses princípios compõem a Teoria Relativística do Cérebro proposta por Nicolelis e a conceituação do córtex como entidade contínua.

 


[i] Nicolelis, Miguel. O verdadeiro criador de tudo: Como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos. São Paulo: Planeta, 2020. Notas do capítulo IV.

[ii] Conforme Toda Matéria, link https://www.todamateria.com.br/sinapses/ acessado em 17/12/2020, sinapse é a região localizada entre neurônios onde agem os neurotransmissores (mediadores químicos), transmitindo o impulso nervoso de um neurônio a outro, ou de um neurônio para uma célula muscular ou glandular.

[iii] Nicolelis cita Young como pioneiro nesse estudo ao postular o sistema RGB, de como o cérebro trabalha com os neurônios em conjunto para trazer a experiencia da composição das cores.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Informação gödeliana anti-IA

Nicolelis já anuncia a força do conceito no capítulo 1: “introduzo uma noção fundamental para a minha tese central: uma nova definição operacional para o conceito de informação, que chamei de informação gödeliana, podendo ser manipulada por tecidos orgânicos e cérebros animais como o nosso[i]”.

Pois bem, no capítulo 3 a informação gödeliana entra em cena para interagir com o bit de Shannon. Por um lado, a informação medida em bits é a informação digital, por outro lado nosso cérebro e nosso organismo armazenam informação não quantificável (um punhado). E são justamente essas noções que me despertam velhos fantasmas[ii]:

1.      Como processamos e armazenamos as informações do mundo?

2.      Em que momento ocorre nosso processo decisório?

3.      Há decisões conscientes?

4.      Haveria espaço para o livre-arbítrio em alguma situação?

5.      Haveria espaço para um epifenomenalismo?

O grau com que venho me tornando descrente já me faz praticamente abandonar a última questão e talvez me torne um materialista radical[iii]. E, pelo que aparenta até agora, a argumentação de Nicolelis procede nesse sentido, é evidente, já que o criador de tudo é o cérebro orgânico [e suas ficções?][iv].

Se voltarmos para as questões iniciais vemos que elas dão conta de um assunto inter-relacionado e que tentei tratar en passant em um trabalho acadêmico. Convém esquematizar o raciocínio pobre.


Imaginando que a figura acima ilustra um esquema epifenomenalista, ou seja, a mente seria espirrada do cérebro como uma sobra ou uma fumaça de um processo de combustão. O organismo, por sua vez e pelos sentidos, absorve o que está por aí, seja no mundo ou nas entrelinhas, nas nuances[v]. O trabalho acadêmico era sobre educação e, qual foi o ponto: problematizar o torpedeamento informativo, a guerra de narrativas que, proveniente do mundo, influenciaria corpo, cérebro e mente (etc.). Isso seria possível em esquema onde não há uma decisão consciente, voluntária tão clara, tão óbvia. O trabalho foi um fiasco.

Entretanto, a informação gödeliana que Nicolelis conceitua, também advoga contrariamente ao nosso argumento, pois ela ainda salvaguardaria a livre decisão, inclusive recorrendo-se aos experimentos de Libet! [vi] Mas então voltemos ao terceiro capítulo e vamos fazer um recorte da argumentação do pensador catedrático.

*    *    *    *    *

De acordo com Nicolelis, viver consiste em dissipar energia para embutir informação no organismo. Ou seja, há uma base termodinâmica na argumentação que ele traz de Prigogine[vii]. Nicolelis observa que árvores estocam informação climática em seus anéis enquanto crescem. Assim como em nosso processo de aprendizado há um armazenamento de memórias no tecido nervoso – essa é a plasticidade do cérebro, sua capacidade de mudar de configuração física.

Então, a termodinâmica da vida é dissipar energia para produzir conhecimento. “O que é a vida?”, perguntaria Abu[viii]. A vida é liberar calor (respirar). Há queima de alimentos pelo oxigênio[ix]. É um processo de entropia que gera informação. E aí Nicolelis vai ao pai do bit, Shannon, bit: unidade de mensuração (S-info). E aqui o interessante é que informação é a medida incerteza, informação é surpresa. Ou seja, a mesmice não traz informação. Mas o bit é a medida é o computador digital. É Turing.

Por outro lado, Gödel conceitua a informação contínua e analógica (G-info) e que não pode ser copiada por um algoritmo. E Nicolelis mostra sua face anti-IA. A abstração mental é a conversão computador-cérebro (“S-info”-“G-info”). Entretanto, o computador não da conta do ambíguo, como o cérebro. É uma relação sintático-semântica. E ocorre que, nessa perspectiva, a possível experiência da decisão inconsciente de Libet torna-se uma decisão da G-info acumulada que é armazenada pela queima de energia que traz o acúmulo orgânico.



[i] Nicolelis, Miguel. O verdadeiro criador de tudo: Como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos. São Paulo: Planeta, 2020. Pg. 18.

[ii] Não tão velhos assim...

[iii] Será?

[iv] Segundo Nicolelis, o cosmos é uma gigantesca massa de informação esperando observação.

[v] Pensemos que mesmo a fumaça dissipada pela combustão e que “não serve para nada” vai para algum lugar.

[vi] Ver: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2018/03/nao-estamos-no-comando.html.

[vii] Nobel de química de 1977. Termodinâmica: parte da física que estuda as trocas ou transformações de energia.

[ix] Conforme http://www.usp.br/qambiental/combustao_energia.html, acesso em 3/12/2020: A respiração é um processo de combustão, de “queima de alimentos” que libera energia necessária para as atividades realizadas pelos organismos. É interessante notar que a reação inversa da respiração é a fotossíntese (...) onde são necessários gás carbônico, água e energia (vinda da luz solar) para liberar oxigênio e produzir material orgânico (celulose) utilizado no crescimento do vegetal.