Começando um novo passeio pela filosofia da linguagem[i]
Bem, nesse blog já há algumas introduções
à filosofia da linguagem que pretendemos continuá-las, mas nunca é tarde parece
recomeçar. E é partir das aulas de Sagid que pretendemos fazer um panorama,
começando por uma limpeza de terreno e pela conceituação de referência. De
acordo com ele, os dois conceitos fundamentais da filosofia da linguagem são:
referência e significado – sobre os quais temos falado ultimamente nesse
espaço.
Isso posto, Sagid distingue a filosofia da
linguagem da filosofia linguística, esta última pretendendo resolver problemas filosóficos pela
linguagem, seja na busca por uma linguagem ideal, logicamente perfeita e
sem defeitos, seja pela linguagem comum e, nesse caso, pelos seus usos e
contextos.
Já a filosofia da linguagem visa resolver problemas de linguagem e ela procede
por teses, apontando argumentos, soluções favoráveis e contrárias. E, como
temos visto, três são seus principais problemas[ii]: qual o mecanismo que faz
com que o mero proferimento de um som, por exemplo, “Belo Horizonte”, nos
permita selecionar um lugar no universo (referência)? Por que determinadas
frases têm significado e outras não? Como alguém consegue compreender o que dizemos?
Essas questões de largada, salienta Sagid, mostram que é fácil usar a
linguagem, mas difícil explica-la.
Problema da
Referência
Começando pela referência, podemos
perceber que algumas expressões linguísticas pretensamente[iii]
se conectam a realidade. Um nome seleciona um indivíduo, a expressão “isto”
seleciona um objeto, quando falamos “cavalo” podemos nos referir ao grupo dos cavalos
e “todavia” não seleciona nada[iv]. Daí que o problema da
referência pode ser analisado de duas formas diferentes, o primeiro verifica
qual item da realidade uma expressão pretensamente seleciona; o segundo como
uma expressão pretensamente seleciona aquele item.
Sagid denomina o primeiro o problema descritivo da referência,
tipicamente metafísico, que investiga do que a realidade é composta. Por
exemplo, a expressão “O Saci Pererê é arteiro” seleciona um item da realidade
ou um item ficcional? Expressões linguísticas que selecionam referentes que são
personagens da ficção são tratadas pelo paradoxo das existenciais negativas
singulares e sobre elas não há consenso. O problema descritivo é caracterizado
por Sagid como de fronteira, isto é, não é propriamente linguístico e sobre
eles há desacordo metafísico. Mesmo os termos gerais, que veremos a seguir,
corresponderiam exatamente a quê? Ao pensarmos em “cavalo”, nos vemos as voltas
com um determinado tipo de cavalo, com o conjunto de todos os cavalos possíveis
ou apenas com a propriedade de um animal ser um cavalo?
O segundo é o problema fundacional da referência, isto é, aquele que trata do
mecanismo que garante a seleção dos itens, mais especificamente, consoante
Sagid: “em virtude de quais fatos há correspondência entre sons, tinta no papel
e um indivíduo do mundo?”. Desse problema surgem as teorias da referência que
trazem cada qual um mecanismo que pode bem funcionar ou não e que o escrutínio
informará.
Termos singulares
e termos gerais
Sagid argumenta que o método de proceder
da filosofia da linguagem é o de quebrar o problema em partes, no que podemos caracterizar
como um método analítico. Então, o problema fundacional da referência pode ser
dividido em um problema da referência singular, que verifica o que faz
com que um termo singular se refira ao objeto ao qual se refere e um problema
da referência dos termos gerais, que verifica o que faz com que um termo
geral se refira aos objetos aos quais se refere. Isso porque, aparentemente, há
diferença entre o mecanismo referencial para termos gerais e termos singulares.
Tomemos os exemplos de Sagid de expressões
linguísticas que pretensamente se referem a itens da realidade:
1. Aristóteles
é sábio.
2. Isto
é uma cadeira.
3. Aqui
é Ouro Preto.
Podemos dividi-las em expressões
subfrásicas: “Aristóteles”, “isto”, “aqui” e “Ouro Preto” como sendo termos
singulares; “sábio” e “cadeira” como sendo termos gerais[v]. Ora, os termos singulares
seguem a condição de no máximo um
que, embora não sendo uma definição exata de termo singular, já que pode
eventualmente acontecer a um termo geral, ainda assim nos permite certa
caracterização. A condição de no máximo um permite caracterizar que uma
expressão se refere a algo e que se refere a no máximo uma coisa. Ela trabalha
com condições de verdade, quais sejam, condições que devem ser satisfeitas para
uma afirmação ser verdadeira[vi]. Por exemplo,
“Aristóteles” costumeiramente é tido como termo singular, mas pode vir a ser
usado como termo geral em “Há mais de um Aristóteles na sala”.
Uma forma de tratar o problema, proposta
por Strawson, é não fazer a distinção entre tipos de termos, mas entre tipos de
uso dos termos, isto é, quando determinada expressão é usada como um termo
singular, etc., entretanto haveríamos que sempre qualificar sua utilização.
De todo modo, Sagid de claro que
procedemos à imagem de um funil, que ele exemplifica trazendo classes de termos
singulares como os indexicais, que mudam em cada contexto. Dentre eles, há os
indexicais puros, nos quais há um referente para cada contexto como em “eu” (o
referente é a pessoa que usou a palavra) ou “aqui” (o referente é o lugar que a
pessoa está) e há os verdadeiros demonstrativos que, diferentemente dos indexicais
puros que estão associados a um significado linguístico, dependem de outros
fatores, como uma intenção direcionadora. O significado de “Isto é uma caneta”
depende de que se aponte ou direcione para algo. Tal qual “ele”, “aquele”: não
se atém somente a uma regra de uso. Ou seja, o funil divide as classes em
diferentes mecanismos referenciais cada qual com uma explicação. No caso dos
termos singulares podemos ter indexicais puros, verdadeiros demonstrativos ou
nomes próprios, que Sagid terá como foco para estudar as diversas teorias da
referência, já que é tema dominante no debate.
Cabe ressaltar, por fim, que esse é o método
da ciência, isto é, embora queiramos compreender o todo, a ciência parte do particular
ao geral, assim como para entender a linguagem geral temos que entender os
diversos mecanismos subjacentes.
[i] Recortes feitos das aulas 01, 02 e
03 do professor Sagid Salles disponíveis no Youtube. Curso IF - Filosofia da
Linguagem: https://www.youtube.com/playlist?list=PLb6DzdXIOv4EtJpTp1G9kThcOi_DATFyS.
[ii] Nota-se clara alusão a Lycan: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/09/significado-e-referencia.html.
[iii] Pode haver determinado grau de
ceticismo que torne a referência impossível e, no limite, até a nossa própria
existência e, aí, Sagid menciona Peter Unger para investigação
posterior. Quine também aborda o tema de fronteira com a epistemologia (por
exemplo, tradução radical).
[iv] Aqui vale a distinção de uso e
menção das expressões linguísticas que Sagid ressalta. Podemos usar um nome para falar de uma pessoa,
por exemplo, “O Aristóteles é filósofo” ou podemos pela expressão mencionar como em “Aristóteles” tem 11
letras.
[v] Poderíamos também incluir nos
termos que se referem à realidade expressões como “Alguém foi reprovado” ou “Todos
foram reprovados”, mas se tratam de quantificadores, termos que contam a
frequência de ocorrência de termos gerais ou singulares.
[vi] Parece-nos uma abordagem bastante
lógica.