domingo, 31 de janeiro de 2021

A solução da terceira antinomia na Crítica da razão pura[i]

Tese: A causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenômenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é necessário admitir para os explicar (B472).

Antítese: Não há liberdade, mas tudo no mundo ocorre unicamente em virtude das leis da natureza (B474).

A antinomia é cosmológica, isto é, se refere ao mundo enquanto fazendo parte do sensível, algo imanente. Não há problema com uma ideia psicológica (alma) ou teológica (Deus) visto que já são essas ideias próprias transcendentes e não se referem a um dado da natureza sensível. O problema da ideia de mundo é que ela envolve uma totalidade que, quando investigada, não se da na experiência[ii]. Como podemos pensar na totalidade de um mundo em sua séria infinita (ou indefinida) de eventos?[iii]

Segundo Kant, nem tese e nem antítese, já que o problema da antinomia é o realismo transcendental que acredita que as coisas são subsistentes por si mesmas. A solução crítica se da pelo idealismo transcendental que trata de fenômenos que são representações sem existência fundamentada em si. Ou seja, o erro é considerar fenômenos como coisas em si e a liberdade transcendental[iv] é resultado dessa falácia.

Então, a antinomia ocorre por essa busca da razão por condições incondicionadas dos fenômenos da experiência, quando ela vai além cria ideias transcendentais. Sobre as antinomias cosmológicas:

· As teses são dogmáticas, com elas podemos nos pensar livres e ela pressupõem um ser originário, postulado também pelo entendimento comum.

· As antíteses são empiristas, eliminam a força da moral e da religião e pautam o regresso infinito, se limitando à experiência, pois é uma posição dogmática com relação às ideias.

O idealismo transcendental tenta resolver a antinomia tratando o sensível pela sua causalidade natural e o inteligível pela causalidade por liberdade. No erro da antinomia que, fora da crítica, supõe apenas um âmbito (fenômeno é coisa em si) há uma tendência para a antítese. Porém, para o idealismo transcendental, o fenômeno não existe fora do pensamento. Como a liberdade é uma ideia transcendental pura não extraída da experiência, não conseguimos efetivá-la, ela não acontece porque tudo na experiência tem causa.

O idealismo transcendental põe um sujeito do mundo dos sentidos com caráter sensível (fenômeno) e caráter inteligível (não sujeito ao fenômeno). Esse sujeito pertence a dois mundos: determinado e livre, esse último saindo do campo especulativo, onde não há conhecimento. Há o sentido “ter que” da natureza e o “dever” que traz a liberdade (ação possível), possibilidade de não seguir imperativos da razão (não de estímulos naturais como em Hobbes ou Spinoza)[v].

A solução crítica compatibiliza "a possibilidade" da liberdade e causalidade por natureza (tese e antítese) e abre caminho para a filosofia prática (e ir além do empirismo[vi]) pois só existirá liberdade prática se existir liberdade transcendental. Pinzani ainda traz na argumentação que essa noção é o cerne do pensamento kantiano, pois ele vinculara toda a sua filosofia ao interesse da razão pela liberdade. Mas que o próprio Kant adverte na CRP:

“Além disso, nem sequer pretendemos demonstrar a possibilidade da liberdade; nem tal se conseguiria, porquanto não se pode conhecer em geral nem a possibilidade de qualquer princípio real, nem de qualquer causalidade, mediante simples conceitos a priori: a liberdade é aqui tratada apenas como ideia transcendental mercê da qual a razão pensa iniciar absolutamente, pelo incondicionado do ponto de vista sensível, a série das condições no fenômeno.”

Então, não há como provar positivamente a liberdade transcendental, porém sem uma ideia ao menos teórica dela, o homem não pode se responsabilizar por suas ações. Mas Kant consegue criar uma ponte entre os usos da razão, vista como um sistema único.



[i] Conforme 3 em https://www.academia.edu/8116094/SOBRE_A_TERCEIRA_ANTINOMIA, Alessandro Pinzani, acessado em 28/01/2021. Já falamos disso em Um caminho para a liberdade em Kant (https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/06/um-caminho-para-liberdade-em-kant.html).

[ii] Marquemos o ponto que na antinomia não aparecem nem fenômeno e nem coisa em si.

[iii] Ajuda a esclarecer os termos: http://www.periodicos.ufc.br/argumentos/article/download/39788/95769/, em 31/01/2021.

[iv] Transcendental 1: análise da razão a priori, sem objeto. Transcendental 2: distinção crítica que separa o que conhecemos como fenômeno e o que pensamos como coisas em si.

[v] Na nota 83, Pinzani aponta para problemas advindos quando se pensa em uma estrutura racional humana, problemas da filosofia da consciência. Em A queda: quando o sujeito se torna interlocutor (https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/01/a-queda-quando-o-sujeito-se-torna.html) falamos do aspecto linguístico, mas ele cita ainda questões neurológicas que podem interferir na estrutura racional de produção de moral. Conforme nota 83: “O raciocínio kantiano pelo qual “se devo praticar a ação X, então sou livre de praticá-la ou não” e pelo qual, portanto, o indivíduo é sempre plenamente responsável de suas ações, não sobrevive ao ataque conjunto das éticas intersubjetivas e das neurociências.”

[vi] Olha o dogma aí gente! O mundo é dado de maneira X (empírica) mas, para Kant, essa empiria é muita cética, acaba com o dogma. Daí criar a coisa em si para resguardar o inteligível. Mas é pelo menos louvável a atitude de esclarecer esses pontos.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Kant, Kant, Kant

Esse é um sino que volta e meia bate em minha cabeça: Kant! Kant é o ápice de uma subida que vem desde Sócrates e congêneres, jamais desmerecendo o que vem depois, isso obviamente levando em consideração o pouco que sei.

Mas essa postulação de fenômeno e coisa em si é uma coisa... É um fenômeno! E o mais interessante é que nós somos ambos. Eu sou o seu fenômeno e sua coisa em si e você é o meu fenômeno e minha coisa em si. Mas será que é só isso? Eu leio, leio, releio. Kant, Kant, Kant.

Sensibilidade, Entendimento, Razão. Sensibilidade para cá, razão para lá, entendimento no meio. Intuição [pura], conceito, ideia. Conceito pode? Lá pode. E ideia? Pode também, mas só pode, mais do que isso a ideia não pode. Blém, blém, blém. Não, esse foi o padre da igreja aqui ao lado. Kant, Kant, Kant.

Aonde começa o tempo? O tempo começa? Ou não importa? Está tudo ali, mas não entendo. Leio, leio, releio. Leio pouco e mal. Não tenho tempo e sou preguiçoso. Kant? Kant é o relógio, tic tac, todo dia, mesma hora. Kant, Kant, Kant.

Se o tempo é infinito, não entendo. Não represento. Se o tempo é finito, há vazio? O vazio não entendo, não represento. Mas, há um tempo além de mim? Realismo. Só há tempo para mim? Idealismo. Idealismo transcendental. Transcende o que? O que vejo, sinto, cheiro, toco. Kant, Kant, Kant.

Conhecer? Conheço, especulativamente. Desejar? Desejo, praticamente. Fluir? Fluo, judicamente. O que a razão não especula a razão pratica. Vontade. Mas a razão também julga. O belo. Errei? Não sei... Kant, Kant, Kant.

Um conhecimento analítico é aquele em que a conclusão é derivada das premissas, aquela coisa meia moda antiga, silogismo. Um conhecimento sintético não só analisa, vai além, experimenta. É isso? Kant, Kant, Kant.

Antinomia: se é, não deveria ser, mas se fosse pode ser que seria. Mas se não for, deixa de ser e aí não é mais. Então, sendo ou não sendo, eis a questão: contradição? Do oposto do mesmo. Mas o oposto do mesmo, é o mesmo, e o mesmo do oposto é o oposto. Porque? Kant, Kant, Kant.

Tudo isso, pra dizer que o que valia até então não vale mais. Mas pera aí, vale sim, mas de outro jeito. Que é parecido com o jeito anterior, mas harmonizado. Aglutinado. Conciliado. Kant, Kant, Kant.

Kant, o maior, me perdoe essas toscas palavras.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A queda: quando o sujeito se torna interlocutor.

Trata-se de um sobrevoo sobre os impactos da virada linguístico-pragmática no modelo de conhecimento que vinha do século XVII.

Abordaremos os aspectos iniciais do artigo de Inês[i], referente à virada linguística e pragmática do início do XIX.

Primeiro degrau: a virada linguística. A virada linguística derruba a filosofia da consciência, que começa no XVII, principalmente com Descartes e o cogito, Locke e as ideias oriundas da experiência e Kant e sua razão pura. Inês chama o período de modelo fundacionalista, em que há uma busca da verdade e certeza baseada na relação do sujeito cognoscente com o mundo dado como objeto conhecido, relação mente-mundo, no qual linguagem e comunicação tinham papel secundário.

Com Frege e o primeiro Wittgenstein, conforme já expusemos em “Wittgenstein e a teoria da figuração”[ii], a relação do pensamento com a proposição supera a representação do objeto que estava restrita à mente. Nesse sentido, a proposição materializa (termo meu) o pensamento e permite ser compartilhada, ultrapassando os limites da consciência individual. A estrutura simbólica do pensamento passa da consciência para a linguagem.

A virada linguística, então, conforme Inês, dá novo sentido ao problema epistemológico, no qual a razão imperial cede lugar às proposições dizendo o mundo. O velho dualismo, que opunha inteligência e sensibilidade, res cogitans e res extensa, razão pura e razão prática é superado, na virada, pelo pensamento expresso em proposições do tipo “algo é o caso”, que tem valor de verdade. O significado é a verdade.

Segundo degrau: a virada pragmática. Já a virada pragmática vem com a influência de Peirce e do segundo Wittgenstein[iii] e a revisão da semântica veritativa da virada linguística. Se o esquema fregeano é o da referência sentido-significado, Peirce traz o esquema triádico composto do signo, objeto e interpretante, onde há contexto de fala e fatores pragmáticos de comunicação. É aqui que nem mesmo a proposição tem sua garantia, mas ela precisa ser manifestada e avaliada pela comunidade. A linguagem não se constitui de proposições assertóricas, mas do “entender-se entre si sobre algo no mundo”.

Da semântica para a pragmática, desloca-se o valor de verdade do real (proposições veritativas) para a validade epistêmica. A virada linguístico-pragmática traz a justificação baseada na aceitabilidade racional, em discussões e aprendizado. A pragmática adiciona ação e a idealidade da validade do juízo deve ser avaliada, ou seja, a referência não mais detém o monopólio veritativo.

Se o primeiro Wittgenstein via a pureza da lógica da linguagem, o salto de 29/30 para o segundo Wittgenstein e os jogos de linguagem trazem a multiplicidade, a proposição lógica passa a ser só mais uma. Conforme Inês: “A proposição bipolar, que figura estados de coisa no mundo, cede lugar à multiplicidade dos usos linguísticos, com suas múltiplas gramáticas.”[iv]

Com o segundo Wittgenstein, conforme Inês, não há mais um significado que paira na cabeça dos indivíduos e nos jogos de linguagem a representação do objeto deixa de ser o centro, pois importa a apresentação das coisas. A referência, a proposição e o correlato pensamento-linguagem perdem espaço para o modo de apresentação em cada jogo e aos empregos de termos, no uso comum.

O modelo do Tractatus trazia consigo um fundamento [transcendente] que já não cabe mais na práxis do aprendizado para que seja feito um uso correto da linguagem, que permita compreensão. Então, nesse paradigma pós-metafísico, não cabe perguntar como captamos a realidade, pois a consciência passa a ser uma “disposição” (termo meu) ou comportamento compreendido em um contexto. Para o segundo Wittgenstein até mesmo a certeza é um comportamento e não um estado mental ou consciência psicológica pessoal. A certeza vem de razões fundamentadas e é de onde vem a dúvida também e ambas duelam no terreno da compreensão e da interpretação não sendo possível um único critério que teria sido vislumbrado na virada linguística.

* * * * *

Concluímos dizendo que pretendemos, nessa breve análise apoiada no artigo de Inês, situar o papel que a linguagem passa a ter na filosofia e na teoria do conhecimento no início do século XIX e de como isso significa uma tentativa de afastamento da metafísica, porém trazendo também as contradições dentro da filosofia analítica.

De todo o modo, nos parece importante ressalta que o polo do sujeito perde força, na primeira virada significando que já não é mais a consciência por si só que tem a primazia no conhecimento, mas a linguagem que mostra o mundo. No segundo momento, até mesmo as proposições ou os enunciados devem ser justificados perante uma segunda pessoa para terem validade, e aí o sujeito passa a ser um mero interlocutor que deve se esmerar na comunicação correndo o risco de simplesmente não fazer parte da conversa.



[i] Acesso no link https://periodicos.pucpr.br/index.php/aurora/article/view/1483/1414, em 14/01/2021. A NATUREZA DO CONHECIMENTO APÓS A VIRADA LINGÜÍSTICO-PRAGMÁTICA, Inês Lacerda Araújo. Não abordaremos o principal: Habermas e sua teoria de ação comunicativa e a ênfase na intersubjetividade presente nos atos de fala.

[iii] Ibidem.

[iv] Inês. Op cit., p. 111.