segunda-feira, 24 de julho de 2023

Teorias semânticas da entidade

Mostra as abordagens das teorias tradicionais do significado e de como elas reportam a um "algo"[i]

Partindo-se da premissa de que uma teoria referencial do significado não é satisfatória[ii], Lycan traz pontos que devem ser respondidos por uma teoria do significado, como explicar por que alguns objetos físicos têm significado, por que expressões distintas podem ter o mesmo significado, por que uma única expressão pode ter mais de um significado e o por que significado de uma expressão pode estar contido em outra.

Tende-se, então, a se tratar o significado como coisa individual, seja como ideias particulares em uma mente[iii] ou como proposições. Nesse segundo aspecto, a frase “a neve é branca” significa uqe (ou expressa a proposição de que) a neve é branca. Um sinónimo dela, por exemplo, “la neige est blanche”, também expressa a mesma proposição, mas seria possível explicar o significado como sendo uma proposição?

Bem, uma teoria do significado, que visa esclarecer por que uma sequência de ruídos pode ser considerada uma frase com significado, tem que elucidar os sinônimos, a ambiguidade, um significado contido em outro e a consequência lógica. No rol das teorias tradicionais do significado, Lycan enumera as teorias de entidade que tomam os significados por coisas individuais, entre elas, a que trata significados como entidades mentais, e a que os trata como entidades abstratas, mas não mentais, que seriam as proposições, postuladas por Bertrand Russell.

Teoria ideacional: a mais intuitiva

Remete a John Locke (1690) e define que os significados das expressões linguísticas são ideias na mente. Daí que uma sequência que significa algo exprime semanticamente um estado mental particular que é portador de conteúdo, como podendo ser uma ideia, uma imagem, um pensamento ou uma crença.

Dessa definição pode se objetar que tipo de coisa é essa ideia. Se é uma imagem, há o problema de ela ser mais pormenorizada que o significado, isto é, imagens são muito particulares para serem tomadas como significados de frases, por exemplo. Já se pensarmos em um conceito mental, cairíamos em circularidade pois seria difícil definir um conceito sem referir ao significado. Sendo um pensamento completo, tem-se que nem toda a frase exprime o pensado.

Uma segunda objeção diz que há palavras que não tem imagem, conceito associado (por exemplo, “é”, “de”). Outra objeção enfatiza o caráter do significado de ser público e intersubjetivo, ao passo que imagens, ideias e sentimentos são subjetivos, quer dizer, estão em uma mente e diferem de pessoa para pessoa. Por fim, objeta-se que há frases que terão significado, mas que nunca foram pensadas por alguém, daí que não têm entidade mental.

Teoria proposicional: a principal

Proposições são itens abstratos independentes da linguagem e das pessoas, são gerais e eternas. Elas vêm na esteira das ideias, em outras palavras, se pensarmos em uma ideia não como atual, mas possível, então ela acaba sendo uma proposição... A definição de Russell e Moore, conforme apresentada por Lycan, é mais ou menos assim: seja F uma sequencia de palavras com significado, P uma proposição (um conteúdo abstrato) e g uma sequencia sem significado, F tem relação com P e g não tem relação com P, sendo essa relação uma expressão.

Resumindo, F tem significado em virtude de exprimir a proposição particular P. Essa teoria resolve os fatos do significado, como o sinônimo, quando F1 e F2 exprimem a mesma proposição e a ambiguidade, se F exprime P1 e P2. Caracterizando um pouco mais, as proposições são expressas por frases e identificáveis por meio de uma oração - “que”, uma oração subordinada substantiva objetiva direta. Essa função, que é usada no discurso indireto, liberta a proposição de ser uma expressão particular. E, também, proposições são estados mentais pois podemos pensar que P[iv].

 Lycan ressalta que as proposições podem ser verdadeiras ou falsas, já que o seu valor de verdade muda no tempo ou em determinados contextos, conforme a frase que a expressa seja V ou F. Então, a elocução de uma frase pode expressar um P pode ser V ou F, a depender de quem a diga e quando a diga. Desse tratamento, conclui-se que as frases derivam seus valores de verdade das proposições.

Por fim, as proposições tem uma estrutura interna que é composta por parte conceituais abstratas. Digamos, “neve” tem significado, mas não é uma proposição, somente a frase é. Então “neve” é um constituinte da proposição, um conceito. Mas, outro fato do significado é a questão de como um ser humano compreende uma frase. Para Moore, uma pessoa tem uma relação com P e sabe que F exprime P, sendo que essa relação é a de captar, apreender a proposição.

Objeções

Contudo, se a teoria proposicional se harmoniza com o senso comum, ela também levanta objeções que serão tratadas por Lycan. As proposições são itens abstratos esquisitos que existem apesar dos humanos e com eles se relacionam, mas não estão no espaço-tempo. Aqui podemos lembram de Occam e sua máxima de não postular entidades além da necessidade, portanto, seriam as proposições desnecessárias? Por outro lado, surge a dificuldade de como nos relacionamos com elas, apesar da proposta de Moore de que podemos captá-las, isso porquê parece haver um significado para “além das palavras”, que são as tais proposições e mesmo frases diferentes tem significados diferentes. Além do mais, sabe-se que elas são comuns na ciência e na filosofia, para explicar os fenômenos. Já para Gilbert Harman a teoria proposicional nada explica de fato pois a proposição se confunde com o significado, parecendo a mesma coisa.

Por fim, Lycan evidencia que o significado tem um papel social dinâmico, mas, se é assim, a proposição deveria ter um papel causal na explicação, mas não o tem, o que abre espaço para as teorias dos filósofos da linguagem dos anos 50 que explicam o significado em conexão com o comportamento humano. São as teorias do uso que Lycan (e nós) abordará no próximo capítulo, teorias semânticas do uso que explicam o significado em função do uso na da linguagem. 



[i] Fichamento de Filosofia da linguagem: uma introdução contemporânea. LYCAN, William. Tradução Desiderio Murcho. Portugal: Edições 70, 2022. Capítulo 5: teorias tradicionais do significado.

[iii] Em um sentido mais abstrato, não seria uma ideia individual, mas um tipo de ideia. Por exemplo, ao invés da ideia de um cão específico, seria uma ideia de cão.

[iv] Sobre proposições e a função - que, Ruffino e Costa terão mais a dizer, esperamos que em breve.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Significado relativo

Sobre a relatividade do significado nas propostas de Frege e do segundo Wittgenstein*

Nos parece que tanto Frege quanto o segundo Wittgenstein relativizam o significado em suas propostas de filosofia da linguagem. Quando Frege conceitua o significado como sendo o sentido de uma frase, chegando até a cortar o seu vínculo com a referência, ficamos no campo da subjetividade, isto é, o sentido é algo que nós atribuímos a um objeto. Ocorre que diferentes pessoas podem atribuir diferentes sentidos a um objeto e não partilharem esses sentidos de maneira que, na presença do objeto, eles podem não ser identificados daquelas diversas maneiras.

Nesse sentido fregeano, a forma como falamos do objeto é mais importante que o próprio, o sentido que damos é aquele sobre o qual o objeto é apresentado no discurso. A apresentação do objeto está intimamente ligada ao nosso processo cognitivo, pois quando um objeto tem um modo de apresentação diferente daquele que conhecíamos, tem-se um novo valor cognitivo. Assim, muitas formas de apresentação podem ser feitas a respeito de um mesmo objeto e esses são muitos sentidos e trazem diferentes significados que se tornam relativos, por mais que eles devam buscar a referência.

Já para o segundo Wittgenstein, o significado de uma frase é dado pelo seu uso em um contexto e uma mesma palavra ou frase pode ter um uso diferente em determinados contextos ou por grupos de pessoas diferentes, o que também acarreta diferentes significados. A proposta de Wittgenstein parece ser mais intersubjetiva, pois parece implicar um acordo entre os grupos de falantes sobre os significados que eles darão para as frases em seus usos, gestos, tons de voz. A linguagem passa a ser mais um meio, um aparato para a comunicação que precisa ser eficiente para se alcançar um fim.

Mas essa caracterização pode ser ineficiente para um terceiro que desconhece as regras que foram se impondo para que aquele modelo de comunicação fosse criado e se efetivasse. O terceiro pouco entenderia do que ocorre em contextos particulares, de domínios específicos e com regras frouxas. Assim, muitos jogos de linguagem poderiam eventualmente utilizar as mesmas palavras ou frases, mas em usos distintos e trazendo significados diferentes, que também se relativizariam.

Se estamos certos no que foi dito até agora, ficamos a mercê da relatividade do significado. Mas, isso é um problema? Pode não ser em muitos casos e até, nesses casos, trazerem vantagens competitivas e de adaptação, mas de Frege** se poderia ter como consequência que dois interlocutores concordam sobre o sentido de determinada expressão ou objeto que não é um sentido convencional e que pode deturpar o seu significado, podendo levar ao terraplanismo. A respeito de Wittgenstein, certas expressões tiradas de seu contexto poderiam ser catastróficas.

De todo modo, ambas as teorias podem ser aceitas se devidamente introduzidas e respeitadas dentro de suas próprias condições, mas elas não garantem que a linguagem pode ser utilizada de maneira objetiva e universal. Essa maleabilidade da linguagem aporta um dinamismo que é perspícuo, mas que gera dificuldades em domínios como o científico, medicinal ou jurídico. Sempre pode e deve haver um espaço de manobra, mas a busca de um significado mais rigoroso pode se fazer necessário quando até as máquinas já começam a difundi-lo.

_____________

* Filosofias referencialistas e / ou externalistas como as de Kripke, Putnam, etc. abordam o significado de maneira diversa, mas nem por isso podemos dizer que não sejam relativistas.

** Não nos esquecemos que o valor de verdade, para Frege, depende da referência.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Representação e Correspondência

Aborda a superfície de dois temas controversos: a representação mental da realidade e a sua correspondência com o mundo[i]

O primeiro ponto que gostaríamos de tocar é o da representação, quando tida como esboço mental da realidade. É mais ou menos como se fosse uma mente vazia que aponta para fora (Sartre) ou uma mente que espelha o mundo (Descartes, Kant), com os segundos valorizando uma concepção egóica. Ao tratar do conteúdo semântico das proposições, Costa defende o espelhamento dos dados do mundo com a consciência pensando, por meio dos dados-dos-sentidos.[ii] O mais interessante é que ele o faz trazendo evidências científicas de exames de imagem do cérebro (BOLD fMRI)[iii]. Ora, seria possível mapear os “sense-data” em nosso cérebro e são os seus conteúdos semânticos que são por nós partilhados com os demais por analogia, evitando-se também, assim, o solipsismo.

A correspondência, algo também deveras controverso, marca muito essa relação linguagem-mundo, mente-linguagem-mundo e, nesse contexto, Costa defende os fatos como “os fazedores-de-verdade universais”. Em linha com Frege-Strawson e em oposição a Austin, Costa concorda com a correlação entre um pensamento e um fato e, nesse sentido, enfatiza o status ontológico do fato, pois é ele que é a referência do conteúdo empírico. Aqui dizemos: por mais que haja um sentido que é comunicado e entendido na teoria de Frege, o seu conteúdo só tem valor de verdade se corresponde a algo no mundo.

É a alusão que Costa faz a uma teoria correspondencial da verdade, ou seja, um conteúdo cognitivo, um pensamento verdadeiro se ancora em um fato empírico, que é uma situação ou estado de coisa cuja descrição começa com uma cláusula-que, conforme definição de Strawson. Por exemplo, o fato de que “o seu estado de saúde é bom” é algo que não muda enquanto dura e pode fazer o papel de fazedor-de-verdade do conteúdo cognitivo do enunciado.



[i] São temas que Costa trata lateralmente nos trechos que até então tivermos oportunidade de ler em sua obra Cognitivismo Semântico, mas que servem para deixarmos esses assuntos em pauta.

[ii] Lembremos que Costa é um neo-cognitivista.