terça-feira, 9 de maio de 2017

Dialética sobredeterminada*

Trata-se de mostrar pontos da dialética marxista a partir da contribuição de Althusser, conceituação que diverge da interpretação do marxismo vulgar.
O marxismo vulgar aplica a dialética hegeliana ao materialismo dialético, porém inversamente. Em linhas gerais, a dialética hegeliana é o desenvolvimento histórico do espírito absoluto que se manifesta no real através dos fenômenos materiais. O espírito absoluto é a essência que produz efeitos no mundo real tal qual nós o conhecemos: mundo aparente. O material é um efeito do espírito que é a essência. O desenvolvimento do espírito absoluto tem uma finalidade racional e, na sua teleologia, não se dispersa, não há momentos de indeterminação. Conforme Homero bem lembra, Fukuyama já tratara do fim da história, com Hegel o fim racional teria sido dado com a revolução francesa e sua concepção de Estado criado por uma astúcia da razão.
Para o marxismo vulgar, o desenvolvimento dialético se dá essencialmente pela economia. Aparentemente somos racionais, porém a essência é o economicismo. A finalidade do materialismo histórico dialético seria mostrada pela contradição geral que se dá entre capital e trabalho, ou seja, burguesia e proletariado. Tudo convergiria para essa contradição que levaria ao fim do capitalismo. Porém, o exemplo de revolução oriunda da cartilha marxista, a revolução russa, não foi capaz de abalar todas as estruturas e, mesmo que tenha havido uma transição para a economia socialista, as demais estruturas não se transformaram. A contradição geral é uma possibilidade que requer condições objetivas para se realizar.
A partir da revolução russa, Althusser constata que a dialética pregada na cartilha marxista versa sobre a contradição hegeliana simples, quando na verdade a dialética marxista é sobre determinada. Tal concepção é oriunda do conceito psicanalítico do sonho onde há diversas sobre determinações sobre um efeito que se dá de maneira diversa[1]. O mesmo, então, se passa com as contradições do capital: não haveria uma contradição geral (econômica: capital-trabalho) que reduziria as demais contradições (cultural, religiosa, educacional, etc.)[2].Há sempre uma determinação dominante em última instância, que, no capital, é a econômica, mas que se relaciona com as demais instâncias e não as reduz. Sabemos da influência estruturalista sobre Althusser: não devemos buscar essa última instância econômica em sua origem, mas como ela se apresenta em um determinado tempo, por exemplo, na sociedade russa da revolução[3].
De posse disso, Althusser pode redefinir uma nova ciência da história que não é a ciência da historia do marxismo vulgar que se funda unicamente na contradição geral, mas uma ciência da história que se aplica a distintos modelos de sociedade, tomando a sua última instância de determinação em cada momento. Essa nova ciência da história seria, então, a base para uma nova filosofia marxista (apesar de críticas que possam haver a essa navalha da ciência).



* Anotações de aula de Moderna IV, professor Homero Santiago, tomadas em 04 de maio de 2017.
[1] Uma palinha do inconsciente sobre determinado pode ser encontrada aqui: http://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/09/cinco-licoes-de-psicanalise.html

domingo, 7 de maio de 2017

A lei sobre o furto de madeira e o direito dos pobres*

Bensaïd discute a evolução do direito e da propriedade privada na modernidade e de como o primeiro legitima a segunda. Porém, antes da instituição da propriedade privada, houve uma “propriedade de natureza” que foi por ela tomada e há um direito de existência relegado.
O problema, que ocorre na Alemanha de Marx (1842), refere-se a um direito consuetudinário dos pobres sob a coleta de madeira e que, então, passa a ser considerado crime por uma lei florestal. Marx questiona a deliberação principalmente a partir de dois pontos: que se a árvore faz parte da propriedade privada, os galhos verdes fazem parte da árvore e da propriedade privada, porém os galhos secos caídos não fazem mais parte da árvore e, portanto, também não fazem mais parte da propriedade privada e poderiam ser coletados sem dolo porque “juntar madeira seca do chão e roubar madeira são coisas essencialmente diferentes”[1].
Mais que isso, o segundo ponto levantado por Marx é que o que pune, o guarda florestal está a mando do proprietário florestal, o que causa uma confusão do público com o privado e “o direito torna-se um instrumento privilegiado para impor novas definições de propriedade em benefício dos proprietários”[2].
Há, além do direito consuetudinário, um direito natural que a natureza oferece às classes sem propriedade e que elas dele se utilizam para sobreviver. O ponto que a lei coloca é entre o direito dos possuídos e o direito de propriedade, já que os pobres passam a vender essa madeira, seja confeccionando objetos ou na forma natural. Haveria o direito de propriedade do possuidor sobre esse elemento natural? Parece falacioso, já que “o novo direito pretende abolir o direito imprescritível dos pobres ao bem comum oferecido pela natureza”[3]. Bensaïd lança mão de um conceito de propriedade híbrida ou incerta, usado por Marx, que se refere a um tipo de propriedade nem privada nem comum e que, do ponto de vista privado, haveria um direito dos possuídos, mas também dos não possuídos, ignorado pelo entendimento racional moderno. E um Estado que, devendo zelar pela racionalidade do direito coletivo, se perde na imposição do direito privado. Em um momento de transição e fortalecimento da propriedade privada, a lei é usada como instrumento de espoliação sobre os mais pobres ainda mais abandonados com a eliminação de instituições de auxílio.
Bensaïd, porém, argumenta que não é o direito consuetudinário que está na fundamentação de Marx, mas haveria um direito natural elementar. Sob a revolução francesa a Província do Reno tenta incutir o direito do homem sobre as tradições feudais, mas Berlim restabelece o direito prussiano colocando em dúvida a igualdade civil. Se a escola alemã de Hugo é contra o monopólio da produção estatal do direito, defende o direito consuetudinário histórico, porém o direito consuetudinário do privilégio e não o da parte desfavorecida. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, Marat já pregava um direito de existência: “Para conservar a vida, o homem tem o direito de atentar contra a propriedade, a liberdade e a vida de seus semelhantes”[4] e Robespierre a liberdade como direito elementar do homem. Sob tal influência, Marx vai argumentar no sentido de que, na correlação de forças do direito consuetudinário, é o direito da massa pobre que deve ser defendido e prevalecer, já que as legislações esclarecidas os atacam com parcialidade.


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* Em: Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Karl Marx e Daniel Bensaïd. São Paulo: Boitempo, 2017.
[1] P. 18.
[2] P. 20.
[3] P 21.
[4] P 26.