Bensaïd discute a evolução do direito e da propriedade privada na modernidade e de como
o primeiro legitima a segunda. Porém, antes da instituição da propriedade
privada, houve uma “propriedade de natureza” que foi por ela tomada e há um
direito de existência relegado.
O
problema, que ocorre na Alemanha de Marx (1842), refere-se a um direito
consuetudinário dos pobres sob a coleta de madeira e que,
então, passa a ser considerado crime por uma lei florestal. Marx questiona a
deliberação principalmente a partir de dois pontos: que se a árvore faz parte
da propriedade privada, os galhos verdes fazem parte da árvore e da propriedade
privada, porém os galhos secos caídos não fazem mais parte da árvore e,
portanto, também não fazem mais parte da propriedade privada e poderiam ser
coletados sem dolo porque “juntar madeira seca do chão e roubar madeira são
coisas essencialmente diferentes”[1].
Mais
que isso, o segundo ponto levantado por Marx é que o que pune, o guarda
florestal está a mando do proprietário florestal, o que causa uma confusão do
público com o privado e “o direito torna-se um instrumento privilegiado para
impor novas definições de propriedade
em benefício dos proprietários”[2].
Há,
além do direito consuetudinário, um direito natural que a natureza
oferece às classes sem propriedade e que elas dele se utilizam para sobreviver.
O ponto que a lei coloca é entre o direito dos possuídos e o direito de
propriedade, já que os pobres passam a vender essa madeira, seja confeccionando
objetos ou na forma natural. Haveria o direito de propriedade do possuidor
sobre esse elemento natural? Parece falacioso, já que “o novo direito pretende
abolir o direito imprescritível dos pobres ao bem comum oferecido pela
natureza”[3]. Bensaïd
lança mão de um conceito de propriedade híbrida ou incerta, usado por Marx, que se refere a um
tipo de propriedade nem privada nem comum e que, do ponto de vista privado,
haveria um direito dos possuídos, mas também dos não possuídos, ignorado pelo
entendimento racional moderno. E um Estado que, devendo zelar pela
racionalidade do direito coletivo, se perde na imposição do direito privado. Em
um momento de transição e fortalecimento da propriedade privada, a lei é
usada como instrumento de espoliação sobre os mais pobres ainda mais abandonados com a eliminação
de instituições de auxílio.
Bensaïd,
porém, argumenta que não é o direito consuetudinário que está na fundamentação
de Marx, mas haveria um direito natural elementar. Sob a revolução francesa a
Província do Reno tenta incutir o direito do homem sobre as tradições feudais,
mas Berlim restabelece o direito prussiano colocando em dúvida a igualdade
civil. Se a escola alemã de Hugo é contra o monopólio da produção estatal do
direito, defende o direito consuetudinário histórico, porém o direito
consuetudinário do privilégio e não o da parte desfavorecida. Na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, Marat já pregava um direito de existência:
“Para conservar a vida, o homem tem o direito de atentar contra a propriedade,
a liberdade e a vida de seus semelhantes”[4] e
Robespierre a liberdade como direito elementar do homem. Sob tal influência, Marx
vai argumentar no sentido de que, na correlação de forças do direito
consuetudinário, é o direito da massa pobre que deve ser defendido e prevalecer,
já que as legislações esclarecidas os atacam com parcialidade.
__________________
* Em: Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Karl Marx e Daniel Bensaïd. São Paulo: Boitempo, 2017.
[1] P. 18.
[2] P. 20.
[3] P 21.
[4] P 26.
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