domingo, 7 de maio de 2017

A lei sobre o furto de madeira e o direito dos pobres*

Bensaïd discute a evolução do direito e da propriedade privada na modernidade e de como o primeiro legitima a segunda. Porém, antes da instituição da propriedade privada, houve uma “propriedade de natureza” que foi por ela tomada e há um direito de existência relegado.
O problema, que ocorre na Alemanha de Marx (1842), refere-se a um direito consuetudinário dos pobres sob a coleta de madeira e que, então, passa a ser considerado crime por uma lei florestal. Marx questiona a deliberação principalmente a partir de dois pontos: que se a árvore faz parte da propriedade privada, os galhos verdes fazem parte da árvore e da propriedade privada, porém os galhos secos caídos não fazem mais parte da árvore e, portanto, também não fazem mais parte da propriedade privada e poderiam ser coletados sem dolo porque “juntar madeira seca do chão e roubar madeira são coisas essencialmente diferentes”[1].
Mais que isso, o segundo ponto levantado por Marx é que o que pune, o guarda florestal está a mando do proprietário florestal, o que causa uma confusão do público com o privado e “o direito torna-se um instrumento privilegiado para impor novas definições de propriedade em benefício dos proprietários”[2].
Há, além do direito consuetudinário, um direito natural que a natureza oferece às classes sem propriedade e que elas dele se utilizam para sobreviver. O ponto que a lei coloca é entre o direito dos possuídos e o direito de propriedade, já que os pobres passam a vender essa madeira, seja confeccionando objetos ou na forma natural. Haveria o direito de propriedade do possuidor sobre esse elemento natural? Parece falacioso, já que “o novo direito pretende abolir o direito imprescritível dos pobres ao bem comum oferecido pela natureza”[3]. Bensaïd lança mão de um conceito de propriedade híbrida ou incerta, usado por Marx, que se refere a um tipo de propriedade nem privada nem comum e que, do ponto de vista privado, haveria um direito dos possuídos, mas também dos não possuídos, ignorado pelo entendimento racional moderno. E um Estado que, devendo zelar pela racionalidade do direito coletivo, se perde na imposição do direito privado. Em um momento de transição e fortalecimento da propriedade privada, a lei é usada como instrumento de espoliação sobre os mais pobres ainda mais abandonados com a eliminação de instituições de auxílio.
Bensaïd, porém, argumenta que não é o direito consuetudinário que está na fundamentação de Marx, mas haveria um direito natural elementar. Sob a revolução francesa a Província do Reno tenta incutir o direito do homem sobre as tradições feudais, mas Berlim restabelece o direito prussiano colocando em dúvida a igualdade civil. Se a escola alemã de Hugo é contra o monopólio da produção estatal do direito, defende o direito consuetudinário histórico, porém o direito consuetudinário do privilégio e não o da parte desfavorecida. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, Marat já pregava um direito de existência: “Para conservar a vida, o homem tem o direito de atentar contra a propriedade, a liberdade e a vida de seus semelhantes”[4] e Robespierre a liberdade como direito elementar do homem. Sob tal influência, Marx vai argumentar no sentido de que, na correlação de forças do direito consuetudinário, é o direito da massa pobre que deve ser defendido e prevalecer, já que as legislações esclarecidas os atacam com parcialidade.


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* Em: Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Karl Marx e Daniel Bensaïd. São Paulo: Boitempo, 2017.
[1] P. 18.
[2] P. 20.
[3] P 21.
[4] P 26.

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