quarta-feira, 27 de abril de 2016

Liberdade: um nada ontológico*

Eu admito a ontologia da vontade humana. Eu acredito que há uma vontade de onde parte a ação. Eu posso conceituar uma autonomia, mas sempre conjugada com a heteronomia. Eu concordo com uma lei moral, que podemos segui-la ou não, que disso depende certa autonomia que é determinada tanto pela razão como pela sensibilidade. Essas coisas, eu quase as pego, eu as vejo. Eu vejo vontade, eu vejo lei, eu pego a causalidade, eu sinto uma causa e toco em um efeito. Eu recebo uma heteronomia ou uma autonomia, eu sei que recebo ambas ou sou influenciado por elas. Mas eu não concebo a liberdade, eu não a toco, não a vejo e nem a formulo.
Existiria liberdade e não-liberdade ou determinação? Não, nem em termos práticos e nem teóricos. É uma investigação que não dá resultado. Eu poderia pensar uma ideia de liberdade – eu penso uma ideia liberdade. De onde vem essa ideia? De um algo chamado liberdade: um nome, um conceito, uma abstração, um algo que acontece? Não, a liberdade não existe e Kant nunca a supôs ou claramente a estabeleceu**. Para ele, tudo não passou de dialética (sem solução), para ele tudo não passou de uma ideia da faculdade da razão. Há uma [suposta] ideia de liberdade [supostamente] vislumbrada por todos e como propriedade da vontade. Essa propriedade a nós parece invisível, defectível, indefinível, imprópria e descartável. Porque Kant, o crítico, em atitude transcendental, admitiu uma ideia negativa de liberdade. E Kant, o prático, idealizou uma liberdade, mas nunca liberdade em si. Somos livres? Depende, o significado de ser livre é muito amplo, posso estar livre do sono agora porque escrevo. Posso estar aqui escrevendo sem ninguém me obrigar a isso ou mesmo me obstruindo. Sou livre às vezes, em parte. Mas a liberdade é um algo que jamais poderia ser conceituado, porque deixaria de ser. Tanto quanto a determinação porque ela é tão concreta que não pode ser vislumbrada, pensada. Pensar a determinação é estar determinado por ela, não pensar é estar determinado pela sua repulsa.
A vontade não precisa de uma propriedade chamada liberdade, ou de uma ideia de liberdade. Um ser estritamente racional poderia possuir a liberdade, mas ele não saberia. Sendo puro intelecto ele nada saberia por que saberia de tudo. Ele não conviveria porque estaria encerrado em si, repleto, redondo, completo. E, ao idealizarmos um ser estritamente racional, nos tornamos estritamente humanos e estritamente incapazes de lidar com qualquer razão que a nós possa ser tangível. Eu posso admitir um imperativo categórico, um dever, normas de ação, uma universalidade e uma objetividade de uma lei moral, eu posso admitir felicidade, querer, dever. Eu acredito no desinteresse. Mas isso em nada tem a ver com liberdade. Pode ter algo a ver com Deus e alma, mas liberdade???
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* Puro impulso, algo que não se deve fazer em filosofia. Depois revisarei, remendarei ou mudarei de opinião.
** é uma hipótese, requer comprovação. 

sábado, 23 de abril de 2016

Mundo sem qualidades*

Quando nós estudamos o movimento moderno na Filosofia nos deparamos com um mundo mecânico. Isso se evidencia em Descartes (que batiza o sistema de coordenadas cartesianas) com a sua essência geométrica que reduz a realidade aos "contornos corpóreos". É o cérebro racional que está em ação; ele se baseia em um modelo matemático. O cogito entende regras dedutivas e se permite somente um conhecimento certo e seguro, indubitável. É uma consciência purificada dos sentidos, porque eles enganam!!! De um lado o cogito, de outro um mundo mecânico muito espacial, causal, travado[1]. Mas, então, o que haveria nesse mundo?
Haveria somente realidades geométricas, seria um mundo sem qualidades. Nesse mundo, não há cores, sons, cheiros. E onde estariam essas "qualidades"? Na mente, segundo Locke [2]. Essas qualidades estariam em nós. O cheiro, então, seria uma criação da nossa mente. O mundo não tem nada de qualitativo; é tudo espacial, essencial, grudado (que são as qualidades primárias de Locke, mas quase não parecem qualidades...). Não existe som, existe deslocamento de partículas. Atribuímos qualidade a um som e "achamos" que fomos xingados ou elogiados. Isso são os qualia; eles existem de alguma forma; eles têm uma natureza [material, espiritual].
Do que podemos concluir que: ou há uma consciência que não é racional (que não é conceitual, dedutiva) ou [isso] não é consciência é só sensação. A questão é que tudo passa pela subjetividade e por uma experiência individual, privada. Se essa subjetividade é sensitiva, então, há, de alguma forma, consciência "sensível" [espalhada no corpo][3]. Caso contrário, a consciência é só racional e os qualia se perdem em algum lugar - quem os sente?
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* Aula dia 17/03, Filosofia das Ciências Neurais - Osvaldo Pessoa Jr.
[1] Conforme notas de aula de Pessoa: o mecânico é um mundo físico quantitativo e baseado no movimento. Já para o fisicismo tudo tem natureza física, material (até a mente). Mas pode haver um fisicismo não mecânico que incluiria os qualia como fazendo parte do físico. 
[2] É ele que distingue entre qualidades nos corpos e idéias na mente, ou seja, qualidades são potências de produzir ideias.  Qualidades primárias que são: solidez, extensão, movimento e figura e são inseparáveis dos corpos; qualidades secundárias que são cor, som, etc., que são produzidas pelas qualidades primárias e têm a potência de causar ideias: seja o fogo causar sensação de calor ou dor. Mas, as ideais primárias são semelhantes às qualidades nos corpos ao passo que as ideias secundárias não existem como qualidade nos corpos, embora sejam geradas pelas primárias e nos afetem. As qualidades secundárias, então, não são nos corpos, mas nas ideias que produzem em nós. O calor do fogo está em nós, não nele, a dor do fogo está em nós, não nele. As qualidades primárias são reais e produzem qualidades secundárias que nos afetam. Sem nossa sensibilidade e percepção, adeus qualidades secundárias. O que é o mesmo: mundo sem qualidades. (Tirado dos trechos selecionados do Ensaio sobre o Entendimento Humano pelo prof. Osvaldo Pessoa Jr., para a disciplina de Filosofia das Ciências Neurais. In: http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Locke-Qualia-2.pdf)
[3] Aqui abrimos possibilidade para o conceito de consciência encarnada de Merleau Ponty. Vale a investigação de tal conceito "metafísico" de um corpo próprio lançado no mundo fundamentar o caso de superveniência da mente a uma cognição incorporada.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Transição da Metafísica dos Costumes para a Crítica da Razão Prática Pura*

O Conceito da Liberdade é a chave da explicação da Autonomia da Vontade

A vontade só é uma causalidade eficiente dos seres vivos [enquanto racionais] pela propriedade da liberdade (como uma definição negativa) que a torna independente de causas estranhas (assim como há uma necessidade natural dependente). Liberdade, esta, provida de uma causalidade[1] regida por leis imutáveis. Mas, se a necessidade natural é heterônoma, a liberdade da vontade é autônoma[2]. A propriedade da vontade de ser lei para si mesma e o princípio da moralidade (vontade que contem a si mesma e como lei universal) só são possíveis por um conceito positivo de liberdade que será mostrado adiante.

A LIBERDADE TEM DE PRESSUPOR-SE COMO PROPRIEDADE DA VONTADE DE TODOS OS SERES RACIONAIS

A moralidade [que vale para todos os seres racionais] deriva de uma liberdade [como propriedade da vontade] que deve ser demonstrada para todos os seres racionais. Ao agir sob a ideia da liberdade um ser é livre e, sendo ser racional que tem uma razão prática, só assim pode agir. O sujeito racional só julga pela sua razão que é livre e indeterminada e, portanto, a vontade requer essa ideia [da liberdade] sendo atributo de todos os seres racionais.

DO INTERESSE QUE ANDA LIGADO ÀS IDEIAS DA MORALIDADE

Dada a liberdade como pressuposto da vontade e da determinação de se agir sob ela, segue que as máximas [subjetivas] devem valer objetivamente [como legislação universal]. E, como imperativo categórico, é um dever estarmos submetidos a esse princípio e não por interesse. Assim, mesmo determinando o princípio, nada se demonstra a respeito de sua validade objetiva. O juízo de ser digno de felicidade, mesmo sem dela poder participar, é o efeito das leis morais que fogem ao interesse empírico e que nos fazem pensar como pode ser possível uma lei moral obrigar ou: como sermos livres no agir mas estarmos submetidos a determinadas leis?
Livres e submetidos? Há que separar: nos pensamos como causas eficientes (pela liberdade, a priori), mas nos representamos a nós mesmos como efeitos (pelas ações). Porque o que se nos representa pelos sentidos e mesmo com auxílio do entendimento são fenômenos e nunca coisas em si mesmas. Fazendo-se a distinção, segue-se que há coisas em si e resulta um mundo sensível e um tinindo inteligível, e que o próprio homem só se conhece enquanto fenômeno, embora admita necessariamente um Eu o constituindo[3].
Mas é a razão a faculdade do homem que é pura atividade própria[4], espontaneidade que está acima do que a sensibilidade pode fornecer ao entendimento e distingue o sensível do inteligível. O ser racional, então, considera-se pertencendo ao mundo sensível sob leis naturais e pertencendo ao mundo inteligível sob leis da razão. Na base de todas as ações de seres racionais está o princípio da moralidade que se conjuga com a ideia da liberdade pelo conceito da autonomia. Assim, ao nos pensamos livres, pertencemos ao mundo inteligível onde se reconhece a autonomia da vontade que tem como consequência a moralidade.

COMO É POSSÍVEL UM IMPERATIVO CATEGÓRICO?

As ações no mundo sensível são fenômenos da causalidade da vontade do mundo inteligível que não conhecemos, por isso compreendemos as ações dependentes de apetites e inclinações[5]. As leis do mundo inteligível nos são imperativas; categóricas porque se fossemos só inteligível as ações seriam conforme a autonomia da vontade, mas como somos também sensíveis, essas ações devem ser conforme a essa autonomia, dever que é uma proposição sintética a priori.O uso prático da razão comum mostra que no mundo inteligível há uma ideia de liberdade que nos conscientiza de uma boa vontade que é um dever que acaba sendo transgredido pelas impulsos determinantes da sensibilidade, do qual devemos nos libertar.

DO LIMITE EXTREMO DE TODA A FILOSOFIA PRÁTICA

Diferem-se, então, dois conceitos: a liberdade é uma ideia da razão cuja realidade objetiva é duvidosa; a natureza é um conceito do entendimento que demonstra sua realidade na experiência[6]. Uma vez esses conceitos acomodados pela filosofia especulativa, a filosofia prática se sente confortável para operar. Como a pouco mencionado, mesmo a razão humana vulgar se vê dotada da liberdade da vontade quando se pensa como inteligência, como coisa em si independente. Se pensa assim e, também, sem contradição, se pensa como objeto afetado pelos sentidos. No mundo inteligível a vontade está acima das inclinações e apetites, mundo do qual só se sabe que há uma lei da razão imediata e categórica; aí o sujeito é Eu verdadeiro, ao passo que como homem é apenas fenômeno de si mesmo.
O homem só se introduz no mundo inteligível pelo pensamento [negativo] onde não ultrapassa seus limites; porém essa liberdade está ligada uma vontade [positiva] de agir segundo a máxima como lei. Nesse mundo inteligível não há objeto[7], ele é apenas um conceito para se pensar fora dos fenômenos e como causa livremente eficiente. Mundo inteligível que é condição formal, mundo inteligível da autonomia da vontade em que a razão não ultrapassa os limites de explicar como é possível a liberdade. Só se explica o que é objeto; a liberdade que não se determina como as leis naturais não exige explicação, mas se pressupõe como fundamento dos fenômenos, como as coisas em si, ainda que oculta. Assim como é fato que temos um sentimento moral que é o efeito subjetivo das leis morais, é um interesse puro da razão sem objeto, é um interesse da razão agir universalmente segundo sua máxima cuja validade é princípio suficiente de determinação da vontade.
Que o homem queira aquilo que a razão prescreve como dever, é impossível explicar porque não se comprova na experiência. O nosso interesse pela moralidade é válido porque somos homens e porque ele nasce da vontade, do nosso verdadeiro eu. Então, um imperativo categórico só é válido pela ideia de liberdade, da mesma forma que a lei moral cujo autonomia da vontade é condição formal. É necessário pressupor a liberdade da vontade e admiti-la praticamente (isto é, na ideia!!!) como condição de suas ações voluntárias, embora não se explique como uma razão pura pode ser prática. Temos essa ideia, mas não temos o conhecimento desse mundo inteligível que é um algo que está no todo e fora da sensibilidade, mas não se resolve o problema do interesse da ação como causa determinante da vontade. Esse é o limite extremo da investigação moral: não buscar um interesse empírico para a ação moral e nem sem perder em quimeras transcendentais. Fiquemos no limite do mundo inteligível das inteligências pertencendo ao reinos universal dos fins em si mesmos, mas sem esquecer que também somos sensíveis. E sem conceber a necessidade prática incondicionada do imperativo moral, já que aí não seria uma lei moral, ou seja, de suprema liberdade.
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* Kant, Immanuel. Terceira Seção. In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Edições 70.
[1] Causalidade significa leis de causa e efeito.
[2] Então: a.) agimos por uma máxima: de ter-se a si mesma por objeto como lei universal; b.) agimos pelo princípio: a vontade é, em todas as ações, uma lei para si mesma; c.) essa máxima e esse princípio são a fórmula do imperativo categórico e do princípio da moralidade; d.) vontade livre e vontade submetidas a leis morais são uma e mesma coisa.
[3] O mundo sensível varia pela percepção, o inteligível é base daquele e idêntico e aí encontra-se um homem que, enquanto pura atividade, nada sabe.
[4] Acima do entendimento que tem por atividade reunir representações em uma consciência.
[5] Ações no mundo inteligível assentam no princípio da moralidade; ações no mundo sensível assentam no princípio da felicidade.
[6] Não há contradição nessa dialética da razão que do ponto de vista especulativo aposta na necessidade natural, mas que do ponto de vista prático aposta na liberdade da vontade, do que resulta termos que eliminar essa aparente contradição. Essa é tarefa da filosofia especulativa que mostra o sujeito livre submetido a leis como um só sujeito e, assim, abre caminho para a filosofia prática e a moral.
[7] Se houvesse seria heterônomo, como no mundo sensível.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Notas sobre o paralelismo psicofísico*

Fechner
O paralelismo psicofísico não privilegia nenhum dos lados, nem o materialismo e nem o idealismo, pois trata a relação empírica entre ambos como uma relação funcional. Trata-se de duas atividades: de uma perspectiva interna a mente coincide consigo mesma; de uma perspectiva externa a mente é a base material [1]. Assim, não se observa mente e corpo simultaneamente, não se pode estar fora e dentro.
Corpo e mente são paralelos. Se para Leibniz havia dois relógios [sincronizados], aqui se simplifica para um, dispensando o interacionismo entre eles [ou o ocasionalismo ou a harmonia preestabelecida] (não importa, é funcional) [2].
As ciências naturais baseiam-se na perspectiva externa e as humanidades na interna; a filosofia natural vê a unidade, o duplo de corpo e mente, a partir de relação empírica, não metafísica.

Heidelberger
O paralelismo psicofísico é, por alguns, confundido com a doutrina cartesiana das duas substâncias que interagem, mas na realidade é o oposto porque ele nega a divisão do mundo. Trata-se de um dualismo de aspectos.
Em sua forma primária, o paralelismo psicofísico é um postulado empírico: para cada evento mental há um evento físico que lhe corresponde, regularmente, de acordo com uma lei. Ou seja, eles são funcionalmente dependentes e há, aí, um método de investigação. A dependência funcional entre eles nada diz a respeito da relação causal ou interativa entre corpo e mente, o método é neutro a qualquer consideração metafísica. Livrando-se de tais explicações descreve-se claramente a dependência entre os fenômenos, aproximando-se de uma superveniência [3].
Há uma segunda forma de paralelismo psicofísico que se vale de uma teoria metafísica para explicar a correlação, tratando o ser humano como uma entidade única com dois aspectos diferentes: mental e físico. Chamada de visão de identidade ou doutrina das duas perspectivas versa que: da perspectiva da própria identidade suas propriedades são consideradas sob um aspecto mental; de uma perspectiva externa a entidade é considerada um algo físico. Há esse viés metafísico que é acausal, não interacionista e que se vale de uma perspectiva em que algo é dado. Fechner considera metafísico qualquer adendo ao postulado empírico porque nenhuma experiência pode prová-los.
Seja o postulado empírico ou a teoria da identidade, esses vieses do paralelismo psicofísico abrem um bom caminho ao materialismo independente de uma doutrina metafísica universal. Também garantem a área de atuação da psicologia no mental desvinculada do físico e uma autonomia da filosofia além da neutralidade científica.
Podemos perceber a influência de Fechner em Mach que abraçou o postulado empírico livre de adendos, se apoiando em dependências funcionais neutras entre os fenômenos e sem nenhuma relação causal ou explicação, visão cética e antimetafísica, que legou o empirismo lógico.
A força da teoria da identidade vem da dificuldade de reconhecer o pensante independente do material; de uma aparentemente causalidade entre cada domínio separadamente, o físico e o mental; da conservação de energia física (sem um processo mental aí consumindo); de sua simplicidade e frugalidade.
E a sua terceira forma, uma tese cosmológica que, por analogia, expandiria a presença de processos psíquicos para além do humano, aproximando-se de um pan-psiquismo. Forma esta que levou ao rechaço até mesmo da segunda forma de Fechner, que deveria estar mais associada a um paralelismo psicofisiológico (livre do místico).
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* Tirado dos trechos selecionados de Fechner e Heidelberger pelo prof. Osvaldo Pessoa Jr., para a disciplina de Filosofia das Ciências Neurais. In: http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Fechner-Paralelismo-1.pdf.
[1] Em 07/04, segundo Pessoa: interno é mente e externo é cérebro.
[2] Em 07/04, segundo Pessoa: interacionismo é o de Descartes: há relação de causa entre corpo e mente; harmonia preestabelecida é de Leibniz: Deus criou o melhor dos mundos possíveis com as séries sincronizadas e correndo em paralelo; ocasionalismo de Malebranche: Deus tá sempre ajustando os ponteiros para que o mental esteja de acordo com o material. E Espinosa: há só uma substância com dois aspectos. E Huygens: um relógio transfere impulso ao outro e vice-versa e eles se sincronizam – é físico.
[3] Em 07/04, segundo meu entendimento da aula: superveniência como uma sobreposição do material no mental.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Plotino, exegeta de Aristóteles*

Aubenque tratou de, a despeito da admiração de Plotino por Platão, colocar a exegese que o primeiro faz de Aristóteles dentro de uma separação de limites entre Platão e Aristóteles, coisa que, depois de Plotino, borrou as fronteiras entre ambos. Plotino critica a doutrina aristotélica das categorias alegando que, se tomadas uma a uma elas são homônimas e, assim, contrariam a intenção da doutrina através da qual cada categoria significaria univocamente um gênero determinado do ser [1]. Se ele, por um lado, reitera a dificuldade de uma definição que unifique as categorias, por outro, aprova a constatação da polissemia do ser como fundamento da doutrina das categorias: “que o ser não se diz de modo sinônimo em todas as coisas” [2]. A homonímia remete à convergência dos significados de ουσια em Aristóteles, chamada por Owen de “unidade focal de significação”. Plotino apreende esse esquema, vejamos, a partir de dois pontos selecionados por Aubenque.
1. Segundo Aubenque, para Plotino, a unidade das categorias do ser é nominal. O problema se verifica na relação da ουσια com as outras categorias quando Aristóteles diz dela que: “o que nem é dito de um sujeito nem está em um sujeito”. Se esse enunciado não define a substância, embaraça, visto que as essências [ou substâncias] segundas são ditas de um sujeito e a diferença específica, tempo e lugar não estão em um sujeito e nem são ditos dele e não são substâncias. Haveria de se dizer da substância o que ela é, que é justamente dizer que é, defini-la por seu ser. Ou seja, a enticidade, o ser do ente. Então, o verbo ser é empregado homonimamente, a partir de uma ordem de consecução: o ente primordial, a substância, é emprega absolutamente, e o ente não essencial, por participação, entra em uma síntese, como no fato de ser-branco. Na Metafísica, Aristóteles confirma o verbo ser, “το εστιν”, independente de toda relação na substância e consecutivo a ela nas outras categorias [3]. Mas, sendo platônico, Plotino inova na terminologia:
a. A relação dos termos segundos aos primeiros é por participação (relação de dependência sem reciprocidade).
b. Visando diferenciar a interpretação de proposições do tipo: (A) “Sócrates é branco” (o branco está nesse ser – é um acidente) de (B) “O branco é Sócrates” (o branco é ser), Plotino insere o verbo “ter” no vocabulário ontológico. Ele, então, diferencia a participação platônica: “x participa do ser” ou “x tem o ser”, não quer dizer que “x é o ser”, da predicação aristotélica: “um ser é x”. Do que se percebe a inversão da noção de ουσια: em Platão, ουσια era um predicado do qual participaria tudo o que é ente, para a noção de sujeito em Aristóteles, imparticipável, mas fundamento de toda predicação. Nesse ponto, posteriormente, Plotino avança e relega apenas aos predicados a relação de pertencimento, já a substância passa a ser o que é seu próprio o que é [4].
2. Plotino, ao criticar a falta de unidade da doutrina da substância aristotélica [5], propõe uma solução genealógica que, aplicada à substância, permitira encontrar uma ordem de derivação entre a substância inteligível e o resto (aludindo a uma divisão do inteligível de um lado e às determinações da substância sensível de outro: forma, matéria e o composto). Aqui se entra em um terreno de unidade das substâncias que será chamado transcendental e o da unidade das categorias, ou seja, dos diversos sentidos de ser, que será chamado predicamental. Ora, é Plotino que deixa claro que essa interpretação hierárquica é contrária à doutrina de Aristóteles, haja vista que na Metafísica o Filósofo marca o sentido focal da categoria primeira com as outras: “o ser se diz em sentidos múltiplos, mas é sempre em relação a um princípio único; com efeito, certas coisas são ditas entes porque são substâncias, as outras porque são afecções da substância”. As outras coisas tomam da substância não o seu ser [em sentido ontológico], mas a sua denominação de ser [em sentido verbal]. Plotino não acha um princípio na doutrina aristotélica [6], como, por exemplo, se a substância inteligível fosse o princípio da substância sensível; não é o caso, Aristóteles descreve, não deduz. Aubenque ainda ressalta que tal doutrina da substância inteligível poderia ser encontrada na Metafísica, por exemplo, em uma ουσια como Deus – tal essência escapa ao discurso categorial. E Plotino percebeu que, se há homonímia nos sentidos de ser, a unidade focal acrescenta apenas uma ordem entre os sentidos, não havendo uma unidade transcendental do ser.
Fica para outro momento os desdobramentos dos desvios que Dexipo opera na doutrina das categorias de Aristóteles e como ele platoniza ou plotiniza o Filósofo.
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* Pierre Aubenque. Plotino e Dexipo, exegetas das categorias de Aristóteles. In: Sobre a metafísica de Aristóteles: textos selecionados - coordenação de Marco Zingano. Editora Odysseus, São Paulo, 2009.
[1] Sendo homônimas seriam aplicadas ao mesmo tempo ao sensível e ao inteligível, do que não poderia haver univocidade. Porém, as categorias aristotélicas são categorias do sensível, aí o inteligível foi deixado de lado. Embora Plotino queira resgatar as categorias do inteligível dos gêneros do Sofista de Platão, Aubenque compreende que as categorias apresentam sua originalidade ao delimitar os gêneros do sensível.
[2] Doutrina da não-sinonímia, portanto, da homonímia do ser, embora sucessores de Plotino [e Porfírio] tendam a levar a doutrina a um intermediário entre homonímia e sinonímia, uma quase-sinonímia.
[3] A ordem dos termos da substância e suas categorias, aqui, está numa relação de anterioridade-posterioridade.
[4] Aubenque marca o nascimento de uma distinção ontológica entre um tipo de ente que tem o ser e um tipo de ente que é seu próprio ser e que será utilizada por São Tomás para diferenciar ontologicamente as criaturas e Deus. Mas, em Porfírio, não se deve confundir “ter o ser”, “receber o ser” no sentido de Platão onde o branco participa da Brancura, com o “ter o ser” de Aristóteles, onde o branco é atribuído a uma ουσια. Senão, “receber o ser” poderia se confundir com receber o ser de uma potência doadora, qual seja, o ser do mundo sensível receberia o seu ser do ser inteligível, como o branco recebe sua brancura do Branco em si. Plotino sabe que a substância aristotélica é fundamental, mas não fundadora, é substrato e não princípio.
[5] Nesse caso à homogeneidade dos referentes.
[6] Plotino o buscou em uma derivação paronímica.