Aubenque
tratou de, a despeito da admiração de Plotino por Platão, colocar a exegese que
o primeiro faz de Aristóteles dentro de uma separação de limites entre Platão e
Aristóteles, coisa que, depois de Plotino, borrou as fronteiras entre ambos. Plotino
critica a doutrina aristotélica das categorias alegando que, se tomadas uma a
uma elas são homônimas e, assim, contrariam a intenção da doutrina através da
qual cada categoria significaria univocamente um gênero determinado do ser [1].
Se ele, por um lado, reitera a dificuldade de uma definição que unifique as
categorias, por outro, aprova a constatação da polissemia do ser como
fundamento da doutrina das categorias: “que o ser não se diz de modo sinônimo
em todas as coisas” [2]. A homonímia remete à convergência dos significados de ουσια em Aristóteles, chamada por Owen
de “unidade focal de significação”. Plotino apreende esse esquema, vejamos, a
partir de dois pontos selecionados por Aubenque.
1. Segundo Aubenque, para Plotino, a
unidade das categorias do ser é nominal. O problema se verifica na relação da ουσια com as outras
categorias quando Aristóteles diz dela que: “o que nem é dito de um sujeito nem
está em um sujeito”. Se esse enunciado não define a substância, embaraça, visto
que as essências [ou substâncias] segundas são
ditas de um sujeito e a diferença específica, tempo e lugar não estão em um
sujeito e nem são ditos dele e não são
substâncias. Haveria de se dizer da substância o que ela é, que é
justamente dizer que é, defini-la por
seu ser. Ou seja, a enticidade, o ser do ente. Então, o verbo ser é empregado
homonimamente, a partir de uma ordem de consecução: o ente primordial, a substância,
é emprega absolutamente, e o ente não essencial, por participação, entra em uma
síntese, como no fato de ser-branco. Na Metafísica,
Aristóteles confirma o verbo ser, “το
εστιν”, independente de toda relação na substância e consecutivo a ela nas
outras categorias [3]. Mas, sendo platônico, Plotino inova na terminologia:
a. A
relação dos termos segundos aos primeiros é por participação (relação de
dependência sem reciprocidade).
b. Visando
diferenciar a interpretação de proposições do tipo: (A) “Sócrates é branco” (o
branco está nesse ser – é um acidente) de (B) “O branco é Sócrates” (o branco é
ser), Plotino insere o verbo “ter” no vocabulário ontológico. Ele, então,
diferencia a participação platônica: “x participa do ser” ou “x tem o ser”, não
quer dizer que “x é o ser”, da predicação aristotélica: “um ser é x”. Do que se
percebe a inversão da noção de ουσια: em Platão, ουσια era um predicado do qual
participaria tudo o que é ente, para a noção de sujeito em Aristóteles,
imparticipável, mas fundamento de toda predicação. Nesse ponto, posteriormente,
Plotino avança e relega apenas aos predicados a relação de pertencimento, já a
substância passa a ser o que é seu
próprio o que é [4].
2. Plotino, ao criticar a falta de unidade
da doutrina da substância aristotélica [5], propõe uma solução genealógica que,
aplicada à substância, permitira encontrar uma ordem de derivação entre a
substância inteligível e o resto (aludindo a uma divisão do inteligível de um
lado e às determinações da substância sensível de outro: forma, matéria e o
composto). Aqui se entra em um terreno de unidade das substâncias que será
chamado transcendental e o da unidade das categorias, ou seja, dos diversos
sentidos de ser, que será chamado predicamental. Ora, é Plotino que deixa claro
que essa interpretação hierárquica é contrária à doutrina de Aristóteles, haja
vista que na Metafísica o Filósofo
marca o sentido focal da categoria primeira com as outras: “o ser se diz em
sentidos múltiplos, mas é sempre em relação a um princípio único; com efeito,
certas coisas são ditas entes porque são substâncias, as outras porque são
afecções da substância”. As outras coisas tomam da substância não o seu ser [em
sentido ontológico], mas a sua denominação de ser [em sentido verbal]. Plotino
não acha um princípio na doutrina aristotélica [6], como, por exemplo, se a
substância inteligível fosse o princípio da substância sensível; não é o caso,
Aristóteles descreve, não deduz. Aubenque ainda ressalta que tal doutrina da
substância inteligível poderia ser encontrada na Metafísica, por exemplo, em uma ουσια
como Deus – tal essência escapa ao discurso categorial. E Plotino percebeu que,
se há homonímia nos sentidos de ser, a unidade focal acrescenta apenas uma
ordem entre os sentidos, não havendo uma unidade transcendental do ser.
Fica para outro momento os desdobramentos dos desvios que Dexipo opera na doutrina das categorias de Aristóteles e como ele platoniza ou plotiniza o Filósofo.
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* Pierre
Aubenque. Plotino e Dexipo, exegetas das categorias de Aristóteles. In: Sobre a metafísica de Aristóteles:
textos selecionados - coordenação de Marco Zingano. Editora Odysseus, São
Paulo, 2009.
[1] Sendo
homônimas seriam aplicadas ao mesmo tempo ao sensível e ao inteligível, do que
não poderia haver univocidade. Porém, as categorias aristotélicas são
categorias do sensível, aí o inteligível foi deixado de lado. Embora Plotino
queira resgatar as categorias do inteligível dos gêneros do Sofista de Platão, Aubenque compreende
que as categorias apresentam sua originalidade ao delimitar os gêneros do
sensível.
[2] Doutrina da
não-sinonímia, portanto, da homonímia do ser, embora sucessores de Plotino [e
Porfírio] tendam a levar a doutrina a um intermediário entre homonímia e
sinonímia, uma quase-sinonímia.
[3] A ordem dos
termos da substância e suas categorias, aqui, está numa relação de
anterioridade-posterioridade.
[4] Aubenque
marca o nascimento de uma distinção ontológica entre um tipo de ente que tem o
ser e um tipo de ente que é seu próprio ser e que será utilizada por São Tomás
para diferenciar ontologicamente as criaturas e Deus. Mas, em Porfírio, não se
deve confundir “ter o ser”, “receber o ser” no sentido de Platão onde o branco
participa da Brancura, com o “ter o ser” de Aristóteles, onde o branco é
atribuído a uma ουσια. Senão,
“receber o ser” poderia se confundir com receber o ser de uma potência doadora,
qual seja, o ser do mundo sensível receberia o seu ser do ser inteligível, como
o branco recebe sua brancura do Branco em si. Plotino sabe que a substância
aristotélica é fundamental, mas não fundadora, é substrato e não princípio.
[5] Nesse caso à
homogeneidade dos referentes.
[6] Plotino o
buscou em uma derivação paronímica.