sábado, 23 de abril de 2016

Mundo sem qualidades*

Quando nós estudamos o movimento moderno na Filosofia nos deparamos com um mundo mecânico. Isso se evidencia em Descartes (que batiza o sistema de coordenadas cartesianas) com a sua essência geométrica que reduz a realidade aos "contornos corpóreos". É o cérebro racional que está em ação; ele se baseia em um modelo matemático. O cogito entende regras dedutivas e se permite somente um conhecimento certo e seguro, indubitável. É uma consciência purificada dos sentidos, porque eles enganam!!! De um lado o cogito, de outro um mundo mecânico muito espacial, causal, travado[1]. Mas, então, o que haveria nesse mundo?
Haveria somente realidades geométricas, seria um mundo sem qualidades. Nesse mundo, não há cores, sons, cheiros. E onde estariam essas "qualidades"? Na mente, segundo Locke [2]. Essas qualidades estariam em nós. O cheiro, então, seria uma criação da nossa mente. O mundo não tem nada de qualitativo; é tudo espacial, essencial, grudado (que são as qualidades primárias de Locke, mas quase não parecem qualidades...). Não existe som, existe deslocamento de partículas. Atribuímos qualidade a um som e "achamos" que fomos xingados ou elogiados. Isso são os qualia; eles existem de alguma forma; eles têm uma natureza [material, espiritual].
Do que podemos concluir que: ou há uma consciência que não é racional (que não é conceitual, dedutiva) ou [isso] não é consciência é só sensação. A questão é que tudo passa pela subjetividade e por uma experiência individual, privada. Se essa subjetividade é sensitiva, então, há, de alguma forma, consciência "sensível" [espalhada no corpo][3]. Caso contrário, a consciência é só racional e os qualia se perdem em algum lugar - quem os sente?
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* Aula dia 17/03, Filosofia das Ciências Neurais - Osvaldo Pessoa Jr.
[1] Conforme notas de aula de Pessoa: o mecânico é um mundo físico quantitativo e baseado no movimento. Já para o fisicismo tudo tem natureza física, material (até a mente). Mas pode haver um fisicismo não mecânico que incluiria os qualia como fazendo parte do físico. 
[2] É ele que distingue entre qualidades nos corpos e idéias na mente, ou seja, qualidades são potências de produzir ideias.  Qualidades primárias que são: solidez, extensão, movimento e figura e são inseparáveis dos corpos; qualidades secundárias que são cor, som, etc., que são produzidas pelas qualidades primárias e têm a potência de causar ideias: seja o fogo causar sensação de calor ou dor. Mas, as ideais primárias são semelhantes às qualidades nos corpos ao passo que as ideias secundárias não existem como qualidade nos corpos, embora sejam geradas pelas primárias e nos afetem. As qualidades secundárias, então, não são nos corpos, mas nas ideias que produzem em nós. O calor do fogo está em nós, não nele, a dor do fogo está em nós, não nele. As qualidades primárias são reais e produzem qualidades secundárias que nos afetam. Sem nossa sensibilidade e percepção, adeus qualidades secundárias. O que é o mesmo: mundo sem qualidades. (Tirado dos trechos selecionados do Ensaio sobre o Entendimento Humano pelo prof. Osvaldo Pessoa Jr., para a disciplina de Filosofia das Ciências Neurais. In: http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Locke-Qualia-2.pdf)
[3] Aqui abrimos possibilidade para o conceito de consciência encarnada de Merleau Ponty. Vale a investigação de tal conceito "metafísico" de um corpo próprio lançado no mundo fundamentar o caso de superveniência da mente a uma cognição incorporada.

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