terça-feira, 5 de abril de 2016

Plotino, exegeta de Aristóteles*

Aubenque tratou de, a despeito da admiração de Plotino por Platão, colocar a exegese que o primeiro faz de Aristóteles dentro de uma separação de limites entre Platão e Aristóteles, coisa que, depois de Plotino, borrou as fronteiras entre ambos. Plotino critica a doutrina aristotélica das categorias alegando que, se tomadas uma a uma elas são homônimas e, assim, contrariam a intenção da doutrina através da qual cada categoria significaria univocamente um gênero determinado do ser [1]. Se ele, por um lado, reitera a dificuldade de uma definição que unifique as categorias, por outro, aprova a constatação da polissemia do ser como fundamento da doutrina das categorias: “que o ser não se diz de modo sinônimo em todas as coisas” [2]. A homonímia remete à convergência dos significados de ουσια em Aristóteles, chamada por Owen de “unidade focal de significação”. Plotino apreende esse esquema, vejamos, a partir de dois pontos selecionados por Aubenque.
1. Segundo Aubenque, para Plotino, a unidade das categorias do ser é nominal. O problema se verifica na relação da ουσια com as outras categorias quando Aristóteles diz dela que: “o que nem é dito de um sujeito nem está em um sujeito”. Se esse enunciado não define a substância, embaraça, visto que as essências [ou substâncias] segundas são ditas de um sujeito e a diferença específica, tempo e lugar não estão em um sujeito e nem são ditos dele e não são substâncias. Haveria de se dizer da substância o que ela é, que é justamente dizer que é, defini-la por seu ser. Ou seja, a enticidade, o ser do ente. Então, o verbo ser é empregado homonimamente, a partir de uma ordem de consecução: o ente primordial, a substância, é emprega absolutamente, e o ente não essencial, por participação, entra em uma síntese, como no fato de ser-branco. Na Metafísica, Aristóteles confirma o verbo ser, “το εστιν”, independente de toda relação na substância e consecutivo a ela nas outras categorias [3]. Mas, sendo platônico, Plotino inova na terminologia:
a. A relação dos termos segundos aos primeiros é por participação (relação de dependência sem reciprocidade).
b. Visando diferenciar a interpretação de proposições do tipo: (A) “Sócrates é branco” (o branco está nesse ser – é um acidente) de (B) “O branco é Sócrates” (o branco é ser), Plotino insere o verbo “ter” no vocabulário ontológico. Ele, então, diferencia a participação platônica: “x participa do ser” ou “x tem o ser”, não quer dizer que “x é o ser”, da predicação aristotélica: “um ser é x”. Do que se percebe a inversão da noção de ουσια: em Platão, ουσια era um predicado do qual participaria tudo o que é ente, para a noção de sujeito em Aristóteles, imparticipável, mas fundamento de toda predicação. Nesse ponto, posteriormente, Plotino avança e relega apenas aos predicados a relação de pertencimento, já a substância passa a ser o que é seu próprio o que é [4].
2. Plotino, ao criticar a falta de unidade da doutrina da substância aristotélica [5], propõe uma solução genealógica que, aplicada à substância, permitira encontrar uma ordem de derivação entre a substância inteligível e o resto (aludindo a uma divisão do inteligível de um lado e às determinações da substância sensível de outro: forma, matéria e o composto). Aqui se entra em um terreno de unidade das substâncias que será chamado transcendental e o da unidade das categorias, ou seja, dos diversos sentidos de ser, que será chamado predicamental. Ora, é Plotino que deixa claro que essa interpretação hierárquica é contrária à doutrina de Aristóteles, haja vista que na Metafísica o Filósofo marca o sentido focal da categoria primeira com as outras: “o ser se diz em sentidos múltiplos, mas é sempre em relação a um princípio único; com efeito, certas coisas são ditas entes porque são substâncias, as outras porque são afecções da substância”. As outras coisas tomam da substância não o seu ser [em sentido ontológico], mas a sua denominação de ser [em sentido verbal]. Plotino não acha um princípio na doutrina aristotélica [6], como, por exemplo, se a substância inteligível fosse o princípio da substância sensível; não é o caso, Aristóteles descreve, não deduz. Aubenque ainda ressalta que tal doutrina da substância inteligível poderia ser encontrada na Metafísica, por exemplo, em uma ουσια como Deus – tal essência escapa ao discurso categorial. E Plotino percebeu que, se há homonímia nos sentidos de ser, a unidade focal acrescenta apenas uma ordem entre os sentidos, não havendo uma unidade transcendental do ser.
Fica para outro momento os desdobramentos dos desvios que Dexipo opera na doutrina das categorias de Aristóteles e como ele platoniza ou plotiniza o Filósofo.
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* Pierre Aubenque. Plotino e Dexipo, exegetas das categorias de Aristóteles. In: Sobre a metafísica de Aristóteles: textos selecionados - coordenação de Marco Zingano. Editora Odysseus, São Paulo, 2009.
[1] Sendo homônimas seriam aplicadas ao mesmo tempo ao sensível e ao inteligível, do que não poderia haver univocidade. Porém, as categorias aristotélicas são categorias do sensível, aí o inteligível foi deixado de lado. Embora Plotino queira resgatar as categorias do inteligível dos gêneros do Sofista de Platão, Aubenque compreende que as categorias apresentam sua originalidade ao delimitar os gêneros do sensível.
[2] Doutrina da não-sinonímia, portanto, da homonímia do ser, embora sucessores de Plotino [e Porfírio] tendam a levar a doutrina a um intermediário entre homonímia e sinonímia, uma quase-sinonímia.
[3] A ordem dos termos da substância e suas categorias, aqui, está numa relação de anterioridade-posterioridade.
[4] Aubenque marca o nascimento de uma distinção ontológica entre um tipo de ente que tem o ser e um tipo de ente que é seu próprio ser e que será utilizada por São Tomás para diferenciar ontologicamente as criaturas e Deus. Mas, em Porfírio, não se deve confundir “ter o ser”, “receber o ser” no sentido de Platão onde o branco participa da Brancura, com o “ter o ser” de Aristóteles, onde o branco é atribuído a uma ουσια. Senão, “receber o ser” poderia se confundir com receber o ser de uma potência doadora, qual seja, o ser do mundo sensível receberia o seu ser do ser inteligível, como o branco recebe sua brancura do Branco em si. Plotino sabe que a substância aristotélica é fundamental, mas não fundadora, é substrato e não princípio.
[5] Nesse caso à homogeneidade dos referentes.
[6] Plotino o buscou em uma derivação paronímica.

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