Nesse artigo, Pereira faz uma breve reconstrução histórica da função do professor que, de mestre responsável por inculcar uma moral civilizatória na população, se vê como profissional urbano diluído na efemeridade da contemporaneidade que massifica a cultura e a educação. Diante desse contexto de transformação histórica e social, como fica a autoridade do professor? Pereira vai analisar essa mudança no modelo e nas relações sociais a partir do pano de fundo do Deus morto de Nietzsche e da perda da autoridade política no mundo atual, no que ele chama de “desautorização docente na contemporaneidade” (p. 15)[1].
O viés psicossocial da abordagem de Pereira busca confrontar o papel que a religião trazia no Antigo Regime, como orientadora da moral e guardiã dos costumes. Com o renascimento e as revoluções modernas, a sociedade conhece os ideais republicanos que apontam para uma sociedade onde todos devem compartilhar os mesmos direitos, sociedade de iguais, em um quadro em que nasce a pedagogia como “ciência do ensino geral (...) que visa abafar as diferenças em prol de um mundo de iguais” (p. 21). Sociedade que deveria superar a imagem do pai, ser uma sociedade de irmãos à revelia da fraternidade; que depõe o poder de Deus enfraquecendo a autoridade, mas que passa a se valer do poder superior da racionalidade. “Em outras palavras: depusemos um deus abstrato e edificamos o Deus-Estado; afrouxamos o poder do pai e entronizamos o Pai-Razão.” (p. 24). Freud mesmo, em seus estudos, relevou o desprestigio que a figura do pai sofre junto com o declínio da sociedade patriarcal em que a família divide suas responsabilidades com o estado, onde muitos se introduzem entre a criança e o pai, colocando em “em questão o tecido homogêneo da imago paterna” (p. 27). A figura paterna se dispersa na nova ordem difusa do mundo.
Se o mestre, oriundo das classes prestigiadas, era aquele que deveria incluir na sociedade todos os não educados e não instruídos, em um novo mundo civilizado e racional, não haveria espaço para "brutos". Avançando na história o surgimento de estabelecimentos de ensino gera uma grande demanda por professores que passam a ser recrutados mesmo nas classes trabalhadoras, mas sob o rigor de centros formadores que prezam por suas virtudes morais e intelectuais. Ora, o mestre responsável pela salvaguarda moral da sociedade se vê em uma correlação de forças com os alunos na sua atualização para o professor profissional e, na sociedade de iguais, o professor se funde nessa mistura de detentor e guia de condutas e, ao mesmo tempo, nivelado com os alunos a quem deve ensinar. Esse caráter de igualdade quebra a sua garantia de exercício que, em algumas situações, deveria ser manifestada.
Politicamente, vivemos em uma sociedade que promove a ruptura entre o passado e o futuro. O pós-moderno, que é o contemporâneo, se exime da tradição em busca de valores fugazes e isento de fundamentos sólidos. Pereira expõe a crise da autoridade com base em Hannah Arendt: uma crise histórica que evolui da quebra da tradição religiosa, seguindo pelo enfraquecimento da política até chegar a uma era em que as pessoas se abstêm da autoridade e da responsabilidade por assumir o mundo. Mundo que, em constante transformação, produz crianças ansiosas e com déficit de atenção[2].
Além disso, a pedagogia exige que o professor realize seu trabalho, mas seus modelos são utópicos e irreconciliáveis com a prática, que fica a mercê de soluções criativas e individualizadas do ente educador, onde o professor se aproxima mais de um “facilitador” ou “mediador”. “O discurso pedagógico, mesmo sem poder assegurar, continua empunhando a bandeira de ser possível educar de modo a pôr ordens nas coisas. Para tanto, tal discurso, por sua natureza, não pode abrir mão nem da autoridade, nem da tradição.” (p. 28).
A partir desse esboço histórico podemos perceber quão sobrecarregada é a tarefa do professor: “como o professor em nossa contemporaneidade deve fazer valer o apagamento da diferença e, ao mesmo tempo, fazer valer a restauração da autoridade, que a maquinaria pedagógica trata de inculcar?” (p. 21). Como superar essa ambivalência? Em um mundo que parte da horizontalidade da relação mestre-aluno e que desautoriza a hierarquia de saber, o mestre não pode ter um caráter perpétuo, perene, mas se trabalhar “não tanto com base nas boas técnicas pedagógicas, que inflacionam mais frustrações do que conquistas, mas muito mais com base na sua experiência e arte de viver.”. Assim, Pereira acena para o mestre provisório, figura que, em um mundo em constante mudança e que refuta o abstrato e o universal, deve ser um não ser, um ser que não está lá, ser provisório. Um ser que é transitório e estimula a capacidade de aprendizado de seus alunos.
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*Resenha – texto “A autoridade docente interrogada” – Marcelo Ricardo Pereira.
[1] Citações de páginas de PEREIRA,
2009.
[2] Aqui
não nos interessa tratar da educação das crianças abordada por Arendt e o
vínculo que seu pensamento possa apresentar com o regime nazista formador de
agentes do sistema, tão somente manifestar esse caráter de perda da autoridade
do seu pensamento.
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 5ª edição, 2001.
PEREIRA, Marcelo Ricardo. A autoridade docente interrogada. Extra- classe – Revista de Trabalho e Educação / Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais. n. 2, vol. 1. jan. 2009. Belo Horizonte, 2009. p. 14- 33.