domingo, 29 de março de 2015

Mestre Provisório*

    Nesse artigo, Pereira faz uma breve reconstrução histórica da função do professor que, de mestre responsável por inculcar uma moral civilizatória na população, se vê como profissional urbano diluído na efemeridade da contemporaneidade que massifica a cultura e a educação. Diante desse contexto de transformação histórica e social, como fica a autoridade do professor? Pereira vai analisar essa mudança no modelo e nas relações sociais a partir do pano de fundo do Deus morto de Nietzsche e da perda da autoridade política no mundo atual, no que ele chama de “desautorização docente na contemporaneidade” (p. 15)[1].
    O viés psicossocial da abordagem de Pereira busca confrontar o papel que a religião trazia no Antigo Regime, como orientadora da moral e guardiã dos costumes. Com o renascimento e as revoluções modernas, a sociedade conhece os ideais republicanos que apontam para uma sociedade onde todos devem compartilhar os mesmos direitos, sociedade de iguais, em um quadro em que nasce a pedagogia como “ciência do ensino geral (...) que visa abafar as diferenças em prol de um mundo de iguais” (p. 21). Sociedade que deveria superar a imagem do pai, ser uma sociedade de irmãos à revelia da fraternidade; que depõe o poder de Deus enfraquecendo a autoridade, mas que passa a se valer do poder superior da racionalidade. “Em outras palavras: depusemos um deus abstrato e edificamos o Deus-Estado; afrouxamos o poder do pai e entronizamos o Pai-Razão.” (p. 24). Freud mesmo, em seus estudos, relevou o desprestigio que a figura do pai sofre junto com o declínio da sociedade patriarcal em que a família divide suas responsabilidades com o estado, onde muitos se introduzem entre a criança e o pai, colocando em “em questão o tecido homogêneo da imago paterna” (p. 27). A figura paterna se dispersa na nova ordem difusa do mundo.
    Se o mestre, oriundo das classes prestigiadas, era aquele que deveria incluir na sociedade todos os não educados e não instruídos, em um novo mundo civilizado e racional, não haveria espaço para "brutos". Avançando na história o surgimento de estabelecimentos de ensino gera uma grande demanda por professores que passam a ser recrutados mesmo nas classes trabalhadoras, mas sob o rigor de centros formadores que prezam por suas virtudes morais e intelectuais. Ora, o mestre responsável pela salvaguarda moral da sociedade se vê em uma correlação de forças com os alunos na sua atualização para o professor profissional e, na sociedade de iguais, o professor se funde nessa mistura de detentor e guia de condutas e, ao mesmo tempo, nivelado com os alunos a quem deve ensinar. Esse caráter de igualdade quebra a sua garantia de exercício que, em algumas situações, deveria ser manifestada.
    Politicamente, vivemos em uma sociedade que promove a ruptura entre o passado e o futuro. O pós-moderno, que é o contemporâneo, se exime da tradição em busca de valores fugazes e isento de fundamentos sólidos. Pereira expõe a crise da autoridade com base em Hannah Arendt: uma crise histórica que evolui da quebra da tradição religiosa, seguindo pelo enfraquecimento da política até chegar a uma era em que as pessoas se abstêm da autoridade e da responsabilidade por assumir o mundo. Mundo que, em constante transformação, produz crianças ansiosas e com déficit de atenção[2].
    Além disso, a pedagogia exige que o professor realize seu trabalho, mas seus modelos são utópicos e irreconciliáveis com a prática, que fica a mercê de soluções criativas e individualizadas do ente educador, onde o professor se aproxima mais de um “facilitador” ou “mediador”. “O discurso pedagógico, mesmo sem poder assegurar, continua empunhando a bandeira de ser possível educar de modo a pôr ordens nas coisas. Para tanto, tal discurso, por sua natureza, não pode abrir mão nem da autoridade, nem da tradição.” (p. 28).
    A partir desse esboço histórico podemos perceber quão sobrecarregada é a tarefa do professor: “como o professor em nossa contemporaneidade deve fazer valer o apagamento da diferença e, ao mesmo tempo, fazer valer a restauração da autoridade, que a maquinaria pedagógica trata de inculcar?” (p. 21). Como superar essa ambivalência? Em um mundo que parte da horizontalidade da relação mestre-aluno e que desautoriza a hierarquia de saber, o mestre não pode ter um caráter perpétuo, perene, mas se trabalhar “não tanto com base nas boas técnicas pedagógicas, que inflacionam mais frustrações do que conquistas, mas muito mais com base na sua experiência e arte de viver.”. Assim, Pereira acena para o mestre provisório, figura que, em um mundo em constante mudança e que refuta o abstrato e o universal, deve ser um não ser, um ser que não está lá, ser provisório. Um ser que é transitório e estimula a capacidade de aprendizado de seus alunos.

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*Resenha – texto “A autoridade docente interrogada” – Marcelo Ricardo Pereira.
[1] Citações de páginas de PEREIRA, 2009.
[2] Aqui não nos interessa tratar da educação das crianças abordada por Arendt e o vínculo que seu pensamento possa apresentar com o regime nazista formador de agentes do sistema, tão somente manifestar esse caráter de perda da autoridade do seu pensamento.
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 5ª edição, 2001.
PEREIRA, Marcelo Ricardo. A autoridade docente interrogada. Extra- classe – Revista de Trabalho e Educação / Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais. n. 2, vol. 1. jan. 2009. Belo Horizonte, 2009. p. 14- 33.

terça-feira, 17 de março de 2015

“O mestre ignorante” – Jacques Rancière: A negação do saber do professor que emancipa o aluno.

  Viajemos com Rancière para o entorno do século XIX recuperando um esboço de proposta pedagógica de Jacotot, homem que, a partir de suas experiências, nos convida a refletir sobre a educação atual e as possibilidades de emancipação. Porque, conforme Rancière, Jacotot foi uma voz dissonante em uma época histórica pós-revolução francesa onde as conquistas herdadas se consolidavam em um programa que visava esclarecer a população tendo como base o progresso. E o progresso se firmava em uma proposta de reduzir as desigualdades, diminuir a diferença entre o esclarecido e o ignorante. Época de instrução, de transmissão de conhecimentos, aonde a instituição pedagógica era lugar para exercício da autoridade dos professores e de desenvolvimento dos jovens rumo ao limites de suas capacidades intelectuais. Mas, eis a voz que alertava: o que se buscava era reduzir a desigualdade em busca da igualdade, mas, tomando como princípio a desigualdade, tal empreitada se tornava tarefa sem fim, nunca se chegaria a tal igualdade. Aqui, sublinham-se dois conceitos que Jacotot nos lega: ao partir da desigualdade como origem, parte-se do modelo tradicional no qual a distância entre o mestre e o aluno limita o aluno aos conhecimentos do professor – método de transmissão de conhecimentos, embrutecedor; mas, se o início é a ignorância como igualdade entre ambos, ali se reconhecem as capacidades de crescimento conjugado, método emancipador. Porque as potências intelectuais são iguais, as capacidades de conhecimento se aplicam a todas as inteligências. Não é o professor que subordina o aluno e o transforma em seu refém, mas o professor deve conduzir o aluno em um processo de autorreconhecimento de suas capacidades como capacidades de conhecimento universal: esse conhecimento que se adquire e se acumula no dia a dia.
  Rancière resgata tal abordagem em uma França dos anos 80 impregnada do debate pedagógico que acusa a escola como reprodutivista, como reproduzindo as desigualdades da sociedade na escola, modelo que, de acordo com Rancière, fica preso à redução das desigualdades presentes em nome de uma igualdade futura. Papel da escola de civilizar e instruir a sociedade visando à superação da desigualdade e apontando para a possibilidade de igualdade futura nunca alcançada. A igualdade não é o fim, ela tem que ser verificada de início, tem que estar no começo, ali não deve haver distância entre professor e aluno, entre culto e ignorante. A régua não é o saber, porque o saber é de cada um, o saber de um não pode ser definido por outro, nem tampouco a ignorância: na base, somos todos ignorantes com capacidades de saber que precisam ser devidamente estimuladas.
  Saltemos da França do XIX para uma reflexão atual que Lilian do Valle nos apresenta: que lições podemos tirar para a nossa educação? O paradoxo proposto por Joseph Jacotot flerta com o cotidiano paradoxal do ato de ensinar e se reinventar dos professores: beira a um ceticismo que poderia levar a uma desordem a ser aplicada na prática. Soma-se a isso a dialética que se estabelece entre educação e política: seria o pressuposto para igualdade política a igualdade na educação? Aí, não estaria de novo a igualdade como meta? E Jacotot não é questão de método que se divide entre a busca pelo aluno modelo da abordagem tradicional e a sua que eleva a atividade do aluno capaz. Mais do que isso, seu modelo é emancipador, de autonomia do sujeito capaz de aprender por si só, de todo sujeito capaz de aprender por si só, sem mediação, sem interlocução. Mesmo na realidade brasileira da década de 60, comenta Lilian, que colocou na base a tentativa de redução das diferenças entre as culturas visando a inclusão social, mesmo lá, quem é o professor que sabe o que o aluno precisa? Pelo contrário, a pedagogia de Jacotot retira o professor do seu conforto porque, para emancipar alguém, o professor deve ele mesmo ser emancipado. Isso significa que o professor deve abrir mão de seu conhecimento como conhecimento que garante sua posição e sua autoridade, ele deve se considerar ignorante e estar sempre em busca do conhecimento novo. Por outro lado, o professor não deve se fiar em um conhecimento seu maior que o dos alunos, nem em seu conhecimento e a ignorância do aluno: “O mestre anuncia a igualdade, mas só o aluno pode verificá-la, fazendo-a existir para si”. É negando seu saber que o professor emancipa seu aluno. É negando seu saber que o professor se emancipa.
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RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
VALLE, Lilian do. Pedra no tropeço: a igualdade como ponto de partida. Educação e Sociedade, Campinas, v. 24, n. 82, p. 259-266, abr. 2003.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Ideologia e Educação

  Neste texto palestra de 79, Marilena Chauí faz uma livre associação entre o conceito de ideologia e educação, analisando e clarificando alguns aspectos da educação à luz da ideologia, a partir de um enfoque marxista. Definindo a ideologia como "um “corpus” de representações e de normas que fixam e prescrevem de antemão o que se deve e como se deve agir e pensar"; ela se aplica ao conhecimento que se refere à realidade dada, em contraste ao pensamento que é capaz de refletir sobre cada situação, ao invés de agir sem pensar. Isso se dá porque, quando constituída, a ideologia transforma o que é artificial em natural e, nesse sentido, a ideologia esconde e, não obstante, legitima a luta de classes que de fato existe na sociedade.
  A ideologia está presente nos cargos de administração que advém com o capitalismo que transforma um modo de produção artesanal em modelo de produção industrial e fragmentado. São as burocracias que definem os rumos da educação, não cabendo espaço para professores e educadores. Nesse contexto, o administrar se dá a partir de um discurso sobre o assunto - discurso relativista - e não um discurso de quem é de direito. A educação sob as rédeas da ideologia preza pela maturidade e não dá voz às crianças - os grandes atores da educação. Aqui agonizam as perspectivas de emancipação e participação.  A ideologia se vale dos meios audiovisuais que, aplicados à educação, servem como objetos de consumo (mercadorias) que nada mais são do que máquinas de repetição. Dentre outros temas apontados por Chauí, a educação se utiliza de dinâmicas de grupo que buscam o líder e, tal liderança, é obtida a partir das variáveis do capital e privilegiando as classes dominantes – o líder é um produto do sistema, mas um dos que são dados como naturais.
  Ao abordar os vários aspectos que a ideologia produz na educação de forma a perpetuar o modelo vigente, Marilena aponta para a direção do que deveria ser o professor dentro desse sistema, como teor de uma proposta pedagógica embrionária: um que é utópico porque deve negar o seu saber em um papel de liderança invertida. O professor em sala, em presença deve trazer a perspectiva de ausência, acenando para uma sua posição provisória e que permita o diálogo franco e multilateral com os alunos.
  Agregando pimenta ao debate, o professor trouxe um texto de Marcelo Coelho (Folha - 11/03/2015), muito atual, em que ele trata a questão do "panelaço" contra a atual presidente no sentido de que a tal luta de classes do XIX já não existiria atualmente. De nossa parte, entendemos que a luta de classes está mais presente do que nunca em nossa sociedade e quem mais sente é a parcela da população que menos tem: dinheiro, direitos, educação, cultura. Essa é a faceta atuante da ideologia que, conforme Lukács, reifica as consciências e as classes mais baixas não tomam a consciência de sua classe. A ideologia opera nos dois lados: em cima e embaixo.
  Acreditamos que esse não é o único e imutável princípio a partir do qual se podem ser analisadas as lutas e conflitos sociais, senão que existem outros valores psíquicos e morais que interferem e alteram as regras do jogo. Mas, sem dúvida, um dos principais fatores que ainda norteiam o falível e esgotado sistema capitalista é a luta de classes que reparte a população em classes potencialmente e atualmente desequilibradas.
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Aula 11/03 - Metodologia do Ensino de Filosofia I