terça-feira, 17 de março de 2015

“O mestre ignorante” – Jacques Rancière: A negação do saber do professor que emancipa o aluno.

  Viajemos com Rancière para o entorno do século XIX recuperando um esboço de proposta pedagógica de Jacotot, homem que, a partir de suas experiências, nos convida a refletir sobre a educação atual e as possibilidades de emancipação. Porque, conforme Rancière, Jacotot foi uma voz dissonante em uma época histórica pós-revolução francesa onde as conquistas herdadas se consolidavam em um programa que visava esclarecer a população tendo como base o progresso. E o progresso se firmava em uma proposta de reduzir as desigualdades, diminuir a diferença entre o esclarecido e o ignorante. Época de instrução, de transmissão de conhecimentos, aonde a instituição pedagógica era lugar para exercício da autoridade dos professores e de desenvolvimento dos jovens rumo ao limites de suas capacidades intelectuais. Mas, eis a voz que alertava: o que se buscava era reduzir a desigualdade em busca da igualdade, mas, tomando como princípio a desigualdade, tal empreitada se tornava tarefa sem fim, nunca se chegaria a tal igualdade. Aqui, sublinham-se dois conceitos que Jacotot nos lega: ao partir da desigualdade como origem, parte-se do modelo tradicional no qual a distância entre o mestre e o aluno limita o aluno aos conhecimentos do professor – método de transmissão de conhecimentos, embrutecedor; mas, se o início é a ignorância como igualdade entre ambos, ali se reconhecem as capacidades de crescimento conjugado, método emancipador. Porque as potências intelectuais são iguais, as capacidades de conhecimento se aplicam a todas as inteligências. Não é o professor que subordina o aluno e o transforma em seu refém, mas o professor deve conduzir o aluno em um processo de autorreconhecimento de suas capacidades como capacidades de conhecimento universal: esse conhecimento que se adquire e se acumula no dia a dia.
  Rancière resgata tal abordagem em uma França dos anos 80 impregnada do debate pedagógico que acusa a escola como reprodutivista, como reproduzindo as desigualdades da sociedade na escola, modelo que, de acordo com Rancière, fica preso à redução das desigualdades presentes em nome de uma igualdade futura. Papel da escola de civilizar e instruir a sociedade visando à superação da desigualdade e apontando para a possibilidade de igualdade futura nunca alcançada. A igualdade não é o fim, ela tem que ser verificada de início, tem que estar no começo, ali não deve haver distância entre professor e aluno, entre culto e ignorante. A régua não é o saber, porque o saber é de cada um, o saber de um não pode ser definido por outro, nem tampouco a ignorância: na base, somos todos ignorantes com capacidades de saber que precisam ser devidamente estimuladas.
  Saltemos da França do XIX para uma reflexão atual que Lilian do Valle nos apresenta: que lições podemos tirar para a nossa educação? O paradoxo proposto por Joseph Jacotot flerta com o cotidiano paradoxal do ato de ensinar e se reinventar dos professores: beira a um ceticismo que poderia levar a uma desordem a ser aplicada na prática. Soma-se a isso a dialética que se estabelece entre educação e política: seria o pressuposto para igualdade política a igualdade na educação? Aí, não estaria de novo a igualdade como meta? E Jacotot não é questão de método que se divide entre a busca pelo aluno modelo da abordagem tradicional e a sua que eleva a atividade do aluno capaz. Mais do que isso, seu modelo é emancipador, de autonomia do sujeito capaz de aprender por si só, de todo sujeito capaz de aprender por si só, sem mediação, sem interlocução. Mesmo na realidade brasileira da década de 60, comenta Lilian, que colocou na base a tentativa de redução das diferenças entre as culturas visando a inclusão social, mesmo lá, quem é o professor que sabe o que o aluno precisa? Pelo contrário, a pedagogia de Jacotot retira o professor do seu conforto porque, para emancipar alguém, o professor deve ele mesmo ser emancipado. Isso significa que o professor deve abrir mão de seu conhecimento como conhecimento que garante sua posição e sua autoridade, ele deve se considerar ignorante e estar sempre em busca do conhecimento novo. Por outro lado, o professor não deve se fiar em um conhecimento seu maior que o dos alunos, nem em seu conhecimento e a ignorância do aluno: “O mestre anuncia a igualdade, mas só o aluno pode verificá-la, fazendo-a existir para si”. É negando seu saber que o professor emancipa seu aluno. É negando seu saber que o professor se emancipa.
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RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
VALLE, Lilian do. Pedra no tropeço: a igualdade como ponto de partida. Educação e Sociedade, Campinas, v. 24, n. 82, p. 259-266, abr. 2003.

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