sábado, 30 de julho de 2022

Fontes iniciais da filosofia analítica

Funda a filosofia analítica em Russell, destacadamente, e Moore[i]

Nesse capítulo introdutório, Schwartz finca as bases da filosofia analítica em Russell e Moore, com destaque também para Frege e Wittgenstein, que têm como principais pontos a recuperação do clássico empirismo britânico (mas corrigindo-o), a invenção da lógica simbólica e a repulsa ao idealismo hegeliano. Além disso, Schwartz passa pela filosofia da linguagem, mas com uma abordagem muito lógica e distante da linguística. Enfim, é um passeio inicial nessa visão positivista que tanto influenciou a filosofia do século XX até os nossos dias.

Schwartz destaca o pioneirismo de Frege, mas que foi popularizado por Russell nos Principia mathematica (com Whitehead) e que expõe a nova lógica simbólica que influencia, por exemplo, Kurt Godel e posteriormente a computação e o estudo da linguagem. Então, a lógica matemática pode resolver a questão deixada em aberto pelos empiristas que é “Como é possível a matemática pura?”[ii]. Conforme Schwartz: “Russell não podia aceitar o “empirismo puro” – a ideia de que todo o conhecimento é derivado da experiência sensorial imediata...” (p. 11) e que levaria ao ceticismo, senão solipsismo. Bem, isso mostra a faceta racionalista de Russell, quando diz que o “empirismo tradicional é um erro e que há um conhecimento a priori e universal”, mas que o leva a ter de explicar a independência empírica, digamos assim. Para esse fim, Frege e Russell reconceitualizam a matemática pelo uso da lógica simbólica que trata a lógica matematicamente e a matemática como uma forma de lógica. Isso permite responder a questão deixada em aberta por Kant e não explicada pelos empiristas e que aponta para uma matemática analítica.

Ora, se Kant estabeleceu que “7 + 5 = 12” é sintético a priori, Frege procura mostrar que a aritmética pode ser deduzida da lógica pura. Mas os idealistas tinham a geometria como uma fortaleza, segundo Russell, pois com validade independente da experiência ou mesmo a questão relacionada à infinitude dos números primos não possível de prova via teste empírico. Há uma solidez matemática racionalista já que as proposições matemáticas, se independentes da experiência, são necessariamente verdadeiras e oriundas da razão pura. Entretanto, ao mesmo tempo, tal conceituação abre as portas metafísica, ontologia, etc., e para a falência do empirismo. É aí que o logicismo de Russell visa mostrar que a matemática pura é um prolongamento da lógica dedutiva e que não há proposições sintéticas a priori; toda a matemática poderia ser derivada da pura lógica, em um trabalho gradual. Poder-se-ia partir dos postulados de Peano, demonstrar que são puramente lógicos e, daí, com base analítica para a matemática. Mas, ao mesmo tempo, leva Wittgenstein a mostrar que a matemática é toda tautológica. Isso desmistifica não somente as verdades matemáticas como também o uso racionalista das verdades da religião ou da metafísica[iii].

Schwartz também enfatiza a importância da linguagem para o desenvolvimento da filosofia analítica. Sua análise se inicia com teoria das descrições definidas de Russell, que aparece na obra “Da denotação”, de 1905 e que se baseia em sua lógica simbólica. Como sabemos, uma descrição definida se destina a selecionar (denotar) um objeto, mas pode ocorrer de selecionar algo inexistente, mais de uma coisa, etc., e daí que Russell procura mostrar que as descrições definidas não denotam de forma isolada[iv], elas não denotam por si mesmas. Isso pode ser demonstrado se analisadas logicamente, o que revelará o que está por trás de uma descrição enganadora como “o presidente do Canadá é uma mulher” que se transforma em “há um e somente um presidente do Canadá e é uma mulher” (a predicação "uma mulher" é falsa, e não o caso de que haja um objeto inexistente). O uso da lógica simbólica faz com que a expressão não se refira a um indivíduo, mas seja uma expressão geral da forma: Ǝx{[Fx & x (Fy x = y)] & Mx} :: há ao menos uma coisa, no máximo uma coisa e a predicação.

Para além das descrições definidas, Russell desenvolveu uma metafísica com base na sua lógica simbólica, conhecida como atomismo lógico. Conforme Schwartz, “Russell sustentava que a linguagem, quando totalmente analisada, consiste em proposições atômicas e proposições moleculares constituídas delas pelas funções lógicas: não, ou, e, se ..., então ...”. Isto é, há átomos lógicos que podem ser descobertos pela análise filosófica, um tipo de realidade que não pertence a nenhuma outra coisa, mas que são metafisicamente necessários. Tanto mundo quanto linguagem tem uma estrutura comum que pode ser representada pela lógica simbólica, visão esta que influenciará Wittgenstein, mas será negada pela filosofia da linguagem comum.

Por outro lado, a contribuição de Moore é no sentido de uma filosofia do senso comum. Schwartz mostra que o positivismo foi uma reação contra a dialética hegeliana, que tratava da negação da negação e considerada por eles obscura. De acordo com Moore a metafísica hegeliana negava a realidade em prol do espírito absoluto, legando o senso comum a mera aparência. Então, Moore visa limpar essa crosta filosófica por um apelo à simplicidade do senso comum. Se Hegel (e Bradley, contemporâneo de Moore) procurou negar a realidade dos objetos do mundo, isso poderia ser configurado como ilusão filosófica. Porém, embora influenciando Wittgenstein e a filosofia de Oxford, a proposta de Moore do senso comum não teve força suficiente para superar os argumentos tanto de céticos quanto de idealistas.

Moore fundamentava a sua filosofia do senso comum nos dados dos sentidos, quer dizer, sensações oriundas dos sentidos e privadas de cada pessoa. De acordo com Moore, vemos algo, mesmo que não seja o próprio objeto e, segundo ele, para saber o que é um dado do sentido basta olharmos para a nossa mão. Contudo, Schwartz alerta para complexidade da teoria, já que o senso comum não conhece dados dos sentidos e sim os próprios objetos e tal conceito foi questionado mesmo por Austin e Wittgenstein. Já Russell tomou por base os dados dos sentidos para propor um tipo de conhecimento por familiaridade, mas para falar de um objeto usamos o conhecimento por descrição, que é indireto. Dados dos sentidos, então, fazem parte daqueles átomos metafísicos da proposta russelliana e que, de fato, nos afasta do senso comum.

Essas são, então, resumidamente, as impressões que mais nos chamaram a atenção na abordagem de Schwartz sobre os primórdios da filosofia analítica e que marca toda uma nova forma de fazer filosofia passando a limpo o idealismo alemão e fundando o positivismo lógico que propõe uma junção entre lógica e matemática, mas que não deixa de mostrar uma certa tendência de Russell por um tipo de platonismo negado pelos positivistas, quando postula certos entes metafísicos.



[i] Conforme Uma breve história da filosofia analítica de Russell a Rawls. Schwartz, Stephen P. São Paulo: Edições Loyola, 2017, capítulo 1: Russell e Moore.

[ii] Destaque para a citação inicial do capítulo.

[iii] Ficamos com o nem-nem: nem experiência e nem mística. O programa de Frege e Russell teve que enfrentar vários problemas, como o da autorreferência, mas mostrou que as noções da matemática clássica podem ser definidas pelas noções da lógica como “ou”, “se ..., então ...”, “todos...”, etc., e foi quase concluído com êxito.

[iv] Repetimos o foco de Schwartz na abordagem da filosofia da linguagem: uma que não nos ajuda em nossas competências linguísticas, mas que se vale da lógica como ciência do raciocínio e inferências e impacta em muitas áreas e domínios. A despeito das descrições definidas, ainda suscitam discussões filosóficas, mas é uma alternativa profícua ao postulado de Meinong (anti occaminiano). 

sábado, 16 de julho de 2022

Do nome à descrição definida dele

É um exercício de filosofia da linguagem ainda bem incipiente e incompleto[i]

Se eu digo “Gilberto Gil é o baiano com mais balanço”, o que isso significa e a quem me refiro? Do ponto de vista intuitivo, a frase acima significa que me refiro a Gil, isto é, o significado de Gil é o próprio Gil, qual seja, a referência. Agora, se eu digo “Gilberto Moreira é o baiano com mais balanço”, o que isso significa e a quem me refiro?

Da mesma forma, intuitivamente, essa segunda frase assere a Gilberto Moreira a descrição de ser o baiano com mais balanço. Ora, se o significado é a referência, temos um problema aqui: temos dois nomes referindo à mesma pessoa, como que sendo dois significados diferentes para a mesma referência. Além do mais, certamente alguém pode não saber que Gilberto Moreira é Gilberto Gil e pensar se tratar de outra pessoa.

Essas questões iniciais trazem algumas dificuldades em se tratar do significado de um nome como sendo a própria referência, pois parece que impede flexões. Então, o que podemos fazer é separar o significado da referência, de modo que haja uma referência (Gil) e muitos significados (Gilberto Gil, Gil Moreira, o baiano com mais balanço, o primogênito de José Gil Moreira, etc.). Ora, temos aí duas teorias da referência: uma direta (o significado é a referência) e outra indireta (o significado é uma descrição da referência[ii]).

Ora, agora parece que temos uma maleabilidade maior em descrever as referências de acordo com as descrições que queiramos e nos afastando de um significado fixado. Isso aproxima o nome que identifica o objeto das descrições [definidas] que identificam o objeto. Ainda assim, vejamos, há uma âncora lá: a referência. Mas ela pode não haver como em “Saci-pererê é o menino mais travesso”, considerando que o saci-pererê não existe.

Isso leva a um terceiro e último aspecto que gostaríamos de comentar. O fato de “falar de” seja por um nome (fixo) ou uma descrição levanta dificuldades de comunicação quando falta ou sobra significado ou referência, o que nos leva a suprimir a descrição definida por uma análise lógica. Assim, o que quereria dizer a frase “O primogênito de José Gil Moreira é o baiano com mais balanço”? Que existe um primogênito de José Gil Moreira, que há no máximo um primogênito de José Gil Moreira e que, quem quer que seja o primogênito de José Gil Moreira, ele é o baiano com mais balanço.

Tem-se que a descrição definida se despe em uma asserção de existência (o primogênito existe), de univocidade (só há um primogênito do José Gil) e da predicação (ele é o baiano com mais balanço). Essa análise já permitiria também refutar o saci-pererê[iii]. A camada aparente da linguagem fica, assim, subsumida à sua base lógica real e evitamos problemas de interpretação e comunicação.

Bem, esperamos não ter errado muito, esperamos que argumentação tenha um pouco de clareza e que possa ter coberto em linhas gerais os pontos principais, embora nesse momento eu não esteja tão certo que isso tenha sido feito a contento.



[i] Nossa intenção com esse primeiro exercício de filosofia da linguagem, descompromissado, é nos aproximarmos da escrita técnica e tentar passar brevemente pelos primórdios das teorias, circunscrevendo-nos entre Russell e Frege e só.

[ii] Conforme Frege, o sentido, ou seja, um modo de apresentar o objeto (a referência).

[iii] Já que não existe, apesar de Meinong ter proposto que ele tem um ser, que faz parte da realidade dos inexistentes.