segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Susto Linguístico

Introdução a Chomsky e a Linguagem[i]

McGilvray inicia citando poderes cognitivos notáveis do ser humano, surgidos entre 50 e 100 mil anos atrás e que seriam atribuídos à linguagem. São eles: se juntar em comunidades, a ciência, religião, as definições de tempo e espaço, arte, a capacidade de explicar as coisas, a política, etc. Pela linguagem podemos especular, planejar, medir, contar e medir. Enfim, “A linguagem é o meio expressivo – e criativo – primordial”.

De acordo com McGilvray, Chomsky teria criado sozinho a ciência moderna da linguagem e, para ele, a linguagem é um sistema de base biológica que evoluiu a partir de um único indivíduo que a transmitiu geneticamente para toda a sua prole. A sua introdução evolutiva significa que ela teve uma causa naturalística que nos torna únicos[ii].

Algumas ressalvas que tiramos da introdução, é que Chomsky, conforme sugere McGilvray, busca uma teoria da natureza humana e se vale da biolinguística. Ele também discute questões sobre moralidade e universalidade, ciência e senso comum, política, etc. Além disso, ele tem pouca simpatia com as filosofias contemporâneas da mente e linguagem. Chomsky é um racionalista que traz uma metodologia para estudar a mente humana e a linguagem visando construir uma ciência naturalista desses campos.

Uma primeira observação de Chomsky sobre a língua é a pobreza de estímulo, isto é, a criança desenvolve a língua sem um treinamento formal, isso vale para toda a população, em qualquer lugar. Ele vê a língua com um conteúdo fixo e inato e, pela biolinguística, a mente composta de várias partes / órgãos, programados pelo genoma.

Um segundo ponto é o aspecto criativo do uso da linguagem, isto é, que parece não ter antecedentes causais, mas que permite uma infinidade e complexidade conceitual. Há uma estrutura similar a um sistema computacional que gera maneiras estruturadas de falar, pensar e compreender, mas, não obstante, somos livres em nossa maneira de usar a linguagem.

Por fim, McGilvray ressalta que a ciência da linguagem fundada por Chomsky é um sistema interna e que polariza com os empiristas, que trazem uma ciência do comportamento linguístico e de como a mente se relaciona com o mundo exterior e baseada em regras de uso. De um lado, externalismo, de outro, inatismo e internalismo. Porém, os racionalistas são empíricos e visam desenvolver a linguagem como a química e a física, mas com outras técnicas experimentais.



[i] CHOMSKY, Noam. A ciência da linguagem: Conversas com James McGilvray. Editora Unesp. Introdução.

[ii] Isso implica que a linguagem não surgiu de maneira gradual e, nem tampouco, mística. 

domingo, 11 de dezembro de 2022

Referencialismo

Aborda a teoria referencialista do significado e mostra como ela mistura referência e significado[i]

Sagid atribui a Frege o ponto de partida das teorias através das quais o significado de uma expressão linguística se relaciona ao referente dessa expressão. Nesse sentido, misturam-se significado e referência. Porém, a teoria referencialista se divide em direta, isto é, a referência não é determinada pelo significado e indireta[ii], em que pelo menos parcialmente a referência é determinada pelo sentido / significado. Além disso, ambas as teses podem ser aplicadas globalmente, se universalmente válidas ou localmente, se limitadas a alguns casos.

Dito isso, tem-se que o referencialismo é uma teoria do significado em que o significado da expressão linguística é o referente da mesma. Sobre o problema descritivo da teoria referencialista do significado, temos que o significado é o referente, ou seja, o significado de "Aristóteles" é a própria pessoa. Sobre o problema fundacional da teoria referencialista do significado, temos que as expressões linguísticas significam o que significam em virtude de se referirem ao que se referem[iii]. E ela ainda implica na tese fundacional da teoria da referência direta[iv], na medida em que o referente não é determinado pelo significado.

Então, o referencialismo indica que o significado é o referente, mas não deixa claro, como podemos notar no caso da expressão “filósofos” que tanto pode ser uma propriedade como um conjunto. Mas é uma teoria intuitiva, já que o significado da expressão é o que a expressão seleciona. E ela também aborda de maneira razoável dois problemas do significado: a ambiguidade (quando uma expressão tem mais de um significado) e a sinonímia (quando duas ou mais expressões têm o mesmo significado). Para o primeiro, a ambiguidade se dá pelo fato de haver mais de um referente (como no caso do banco-instituição e banco-assento), para o segundo, a sinonímia se dá porque as expressões selecionam o mesmo indivíduo (Gil e ex-ministro da cultura).

Embora o referencialismo seja uma teoria intuitiva, tida como do senso comum, ela é em geral incorreta e já foi refutada pelos filósofos, basicamente por três objeções[v]. A primeira objeta que nem toda expressão linguística dotada de significado tem referente (ex., todavia, não, etc...). A segunda admite que, para o referencialismo, todas as expressões são tratadas como nomes e, por conseguinte, uma frase seria uma lista de nomes. Porém, um lista de nomes não têm significado, mesmo que sejam tipos de objetos diferentes, como nomes, propriedades e outros. Por fim, a terceira objeção mostra que algumas expressões referenciais com sentido não se referem a nada, como é o caso de “Papai Noel”, que não existe.

Mas, se o referencialismo não tem validade universal, pode ter abrangência local, como no caso dos nomes próprios, que são um subconjunto dos termos singulares. Assim, pela teoria referencialista do significado dos nomes próprios, o significado de um nome próprio é exclusivamente o referente desse nome (a pessoa). Donde que a função do nome na frase é introduzir o referente, essa a sua condição de verdade. A expressão “Aristóteles é sábio” é verdade se e somente se a pessoa Aristóteles pertence ao grupo dos sábios. Para esses casos, informa Sagid, é uma teoria bem aceita contemporaneamente, até mais do que a concorrente descritivista.



[i] Recortes da Aula 07 - Referência Direta, Indireta e Referencialismo, do professor Sagid Salles: https://www.youtube.com/watch?v=tKhXSNrWH0M&ab_channel=ThePhilosophersDAO - CURSO IF, Filosofia da linguagem.

[ii] Descritivista.

[iii] O referencialismo não diz exatamente como o significado é determinado, isso fica por conta da referência.

[iv] Isto é, o modo como o referente é determinado.

A estratégia de Ian Hacking para a filosofia da linguagem

Trata outros aspectos da filosofia da linguagem que não as teorias do significado[i]

Hacking postula que uma filosofia da linguagem aplicada teria mais interesse do que as teorias puras do significado, isto é, aquelas que estudam o significado em si mesmo. Sua abordagem é a de examinar estudos de casos que influenciaram as teorias da linguagem, seja partindo da metafísica ou epistemologia, questões estas que são centrais da filosofia e não da linguística. Segundo Hacking, mesmo os pais da filosofia da linguagem, como Wittgenstein, Moore ou Austin, estavam tratando de problemas tradicionais de filosofia como ética, percepção e a natureza da mente humana.

Entretanto, apenas recentemente a filosofia da linguagem enveredou pelas teorias do significado, conforme Hacking: “Grande parte da teoria pura do significado que atualmente ocupa nossa geração irá muito rapidamente tornar-se autônoma, mas um corpo de questões essencialmente filosóficas sobre a linguagem permanecerá” (p 13)[ii]. Mas não interessam tanto à filosofia, insiste Hacking, como a linguagem interessa.

Para Hacking, há um interesse filosófico pela linguagem que vai além das dificuldades de expressão e comunicação, questões relativas à ambiguidade, equívocos e paradoxos e que, por ventura, seriam prevenidas por boas definições de termos e palavras (conforme proposto por Bacon) ou mesmo fazendo uma “limpeza” dos diversos usos de termos no discurso cotidiano, mas que acabaria por trazer novos termos e aumentar o problema.

Além disso, Hacking diz que seus estudos de caso devem ser simples em geral, embora sejam abordados filósofos recentes da linguagem[iii], como Davidson e Feyerabend que ainda têm uma obra fragmentada e de difícil acesso, embora discorra pouco sobre nomes importantes como Austin, Strawson (Indivíduos) ou Quine (Palavra e Objeto), nem tampouco sobre a filosofia linguística de Oxford.

Hacking foca na tradição anglo-americana, além da perspectiva histórica, já que a linguagem é discutida desde Platão (Eutifrone), pelos empiristas ingleses, que são familiares e mais fáceis, segundo ele. Nessa perspectiva, a ideia surge como conceito chave, mas que teve abordagens bem diferentes ao longo da história.



[i] HACKING, I. Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp, 1999. 1. Estratégia.

[ii] Autônoma como ocorreu com a psicologia.

[iii] Metafísicos, segundo ele.

sábado, 19 de novembro de 2022

Introdução ao Significado

Sobre o significado e conceitos correlatos[i]

Entendemos o significado da frase “Aristóteles é sábio”, ao passo que a frase “praticum ble” não o tem. De “Aristóteles é sábio”, sabemos tanto o significado da frase como de cada expressão subfrásica que a compõe e a filosofia da linguagem procura saber qual significado desta ou daquela expressão linguística, ou melhor, de cada tipo de expressão linguística. Se podemos procurar no dicionário o significado de uma palavra para nosso uso cotidiano, há desacordo no significado dos tipos de expressões, como nomes próprios, por exemplo, que podem ser descrições ou o próprio objeto referido (como temos visto).

Então, como esse tipo de expressão (um nome próprio) significa o que significa? Em virtude de quais fatos? E, assim como feito com a referência, Sagid traz os problemas descritivos e fundacionais também para o significado, conforme o quadro abaixo.

Problema

Descritivo

Fundacional

Referência

Qual item da realidade a expressão pretensamente seleciona?

Como essa expressão refere?

Significado

Qual significado desse tipo de expressão?

Em virtude de quais fatos essas expressões significam o que significam?

Isso posto, uma teoria do significado deveria tratar de fatos básicos a cerca do significado, como por que certos tipos de frases têm o significado que têm e casos específicos como a ambiguidade, que é o caso da mesma expressão ter significados diferentes (como em “Cheguei ao banco” – da praça ou instituição financeira?) e a sinonímia, abordando expressões diferentes com mesmo significado (como solteiro e não casado.. em virtude de que?). E, assim como o método usado na investigação da referência, no qual classes diferentes apresentam mecanismos diferentes para a resolução dos problemas, para o significado também se faz necessário dividir as expressões em classes específicas.

Conceitos

Sagid explica que a palavra significado é ambígua, apresentando diferentes sentidos como significado linguístico e conteúdo, e exemplifica. Supondo que encontremos um diário com a frase “Eu estou triste”. Embora não saibamos quem escreveu essa frase, sabemos que a frase significa que a pessoa que escreveu está triste. Sabemos porque conhecemos as convenções linguísticas, como “eu”, que tem sempre como referente quem proferiu a expressão, etc. Porém, não conhecemos o significado em certo sentido, qual seja, qual informação particular é transmitida: é João ou Maria quem está triste?

No primeiro caso, trata-se do significado linguístico, no segundo do conteúdo, que será o foco de Sagid nesse curso. Conforme dito, o significado linguístico é convencional por meio de regras; não varia com o contexto, isto é, a regra é sempre a mesma, embora o conteúdo possa variar; restringe o conteúdo impondo limites (por exemplo, “Eu estou triste” não quer dizer “A neve é branca”); pode não ser rico o suficiente para determinar o conteúdo[ii].

Ora, mesmo o conteúdo também apresenta diferentes sentidos, sendo 1.) o que é dito pela frase e 2.) o que é implícito pela frase. Pois bem, o significado linguístico restringe o conteúdo que é dito pela frase, embora uma parte do conteúdo possa escapar. A pergunta “Como você está se sentindo?” pode trazer o conteúdo dito “Eu estou triste.”. Já a pergunta “Você vai à festa?”, se tiver como resposta “Eu estou triste”, traz a informação adicional “Eu não vou à festa.”. Já a pergunta “Como você está se sentindo?” pode trazer o conteúdo dito “Eu estou triste.” acompanhado de um piscar de olhos e aí significando que a pessoa não está triste. Então, os dois conteúdos são importantes, já que o implícito pode, por exemplo, envolver cinismo, sendo fundamental no uso cotidiano.

A distinção entre o conteúdo dito e o implícito tem, provavelmente, forte relação com certo significado literal e não literal, assim como a semântica e a pragmática, respectivamente. A semântica, que será alvo da abordagem de Sagid, está sujeita a menor variação contextual, já a pragmática abrange todos os detalhes contextuais e as intenções que são relevantes para a comunicação[iii][iv].

Princípio da Composicionalidade

Seguindo com o arcabouço conceitual, finalizaremos com o PC. Não há dúvidas de que entendemos expressões subfrásicas (gato, cachorro, Platão, etc..) e parece que assim é porque aprendemos quando criança e temos esse conhecimento prévio. O mesmo com frases, cujos significados nos foram introduzidos e a eles recorremos por força da memória. Mas, se é assim, como podemos conhecer frases novas instantaneamente, frases nunca ouvidas como “João Rafael escreveu um bilhete com caneta tinteiro azul-turquesa?” Vejamos.

As frases “João é sábio” e “Marcos é sábio” têm significados diferentes já que, pelo menos, uma expressão é diferente entre elas. Do mesmo modo, “João é sábio” e “João é barbudo” atribuem predicados diferentes a João. Logo, tem-se a impressão de que o significado da frase é parcialmente determinado pelas expressões que a compõem. Mas, as frases tanto podem ter expressões linguísticas diferentes e significado igual, como “A neve é branca” e “Snow is white”, quanto podem ter as mesmas expressões e significados diferentes, como “João chegou ao banco” (instituição financeira) e “João chegou ao banco” (assento da praça). Desse modo, nossa hipótese inicial se invalida, e podemos enunciar a primeira parte de PC como "o significado da frase é determinado pelo significado das expressões subfrásicas".

Mas, há frases que podem ter as mesmas expressões com os mesmos significados e mesmo assim terem significados diferentes. É o caso de “João ama Maria” e “Maria ama João”. Destarte, teríamos que acrescentar a ordem no PC, isto é, o modo como as expressões estão organizadas, sua estrutura. E o princípio da composicionalidade é formulado por Sagid como se segue: “O significado de uma frase é determinado pelo significado de suas partes e pelo modo como estas estão estruturadas”. Segundo ele, o princípio é popular entre os filósofos e mostra que o significado das expressões é valioso na contribuição das frases, de maneira que será explorado por Russell no caso da teoria das descrições definidas.

Finalizamos ressaltando que o PC nos ajuda a esclarecer o fenômeno da produtividade da linguagem, isto é, nossa capacidade de formular e entender frases inteiramente novas pela composicionalidade, que permite criar um universo infinito de frases baseadas em um conjunto finito de regras.



[i] Recortes feitos das aulas 04, 05 e 06 do professor Sagid Salles disponíveis no Youtube. Curso IF - Filosofia da Linguagem: https://www.youtube.com/playlist?list=PLb6DzdXIOv4EtJpTp1G9kThcOi_DATFyS.

[ii] Sagid informa que tanto o significado linguístico quanto o conteúdo também levantam os problemas descritivo e fundacional.

[iii] Assim como a nota anterior, os problemas se aplicam tanto ao conteúdo dito quanto ao implícito.

[iv] Sobre pragmática, Sagid indica Grice, a conferir: https://criticanarede.com/lds_conversas.html. 

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Filosofia da linguagem - introdução e referência

Começando um novo passeio pela filosofia da linguagem[i]

Bem, nesse blog já há algumas introduções à filosofia da linguagem que pretendemos continuá-las, mas nunca é tarde parece recomeçar. E é partir das aulas de Sagid que pretendemos fazer um panorama, começando por uma limpeza de terreno e pela conceituação de referência. De acordo com ele, os dois conceitos fundamentais da filosofia da linguagem são: referência e significado – sobre os quais temos falado ultimamente nesse espaço.

Isso posto, Sagid distingue a filosofia da linguagem da filosofia linguística, esta última pretendendo resolver problemas filosóficos pela linguagem, seja na busca por uma linguagem ideal, logicamente perfeita e sem defeitos, seja pela linguagem comum e, nesse caso, pelos seus usos e contextos.

Já a filosofia da linguagem visa resolver problemas de linguagem e ela procede por teses, apontando argumentos, soluções favoráveis e contrárias. E, como temos visto, três são seus principais problemas[ii]: qual o mecanismo que faz com que o mero proferimento de um som, por exemplo, “Belo Horizonte”, nos permita selecionar um lugar no universo (referência)? Por que determinadas frases têm significado e outras não? Como alguém consegue compreender o que dizemos? Essas questões de largada, salienta Sagid, mostram que é fácil usar a linguagem, mas difícil explica-la.

Problema da Referência

Começando pela referência, podemos perceber que algumas expressões linguísticas pretensamente[iii] se conectam a realidade. Um nome seleciona um indivíduo, a expressão “isto” seleciona um objeto, quando falamos “cavalo” podemos nos referir ao grupo dos cavalos e “todavia” não seleciona nada[iv]. Daí que o problema da referência pode ser analisado de duas formas diferentes, o primeiro verifica qual item da realidade uma expressão pretensamente seleciona; o segundo como uma expressão pretensamente seleciona aquele item.

Sagid denomina o primeiro o problema descritivo da referência, tipicamente metafísico, que investiga do que a realidade é composta. Por exemplo, a expressão “O Saci Pererê é arteiro” seleciona um item da realidade ou um item ficcional? Expressões linguísticas que selecionam referentes que são personagens da ficção são tratadas pelo paradoxo das existenciais negativas singulares e sobre elas não há consenso. O problema descritivo é caracterizado por Sagid como de fronteira, isto é, não é propriamente linguístico e sobre eles há desacordo metafísico. Mesmo os termos gerais, que veremos a seguir, corresponderiam exatamente a quê? Ao pensarmos em “cavalo”, nos vemos as voltas com um determinado tipo de cavalo, com o conjunto de todos os cavalos possíveis ou apenas com a propriedade de um animal ser um cavalo?

O segundo é o problema fundacional da referência, isto é, aquele que trata do mecanismo que garante a seleção dos itens, mais especificamente, consoante Sagid: “em virtude de quais fatos há correspondência entre sons, tinta no papel e um indivíduo do mundo?”. Desse problema surgem as teorias da referência que trazem cada qual um mecanismo que pode bem funcionar ou não e que o escrutínio informará.

Termos singulares e termos gerais

Sagid argumenta que o método de proceder da filosofia da linguagem é o de quebrar o problema em partes, no que podemos caracterizar como um método analítico. Então, o problema fundacional da referência pode ser dividido em um problema da referência singular, que verifica o que faz com que um termo singular se refira ao objeto ao qual se refere e um problema da referência dos termos gerais, que verifica o que faz com que um termo geral se refira aos objetos aos quais se refere. Isso porque, aparentemente, há diferença entre o mecanismo referencial para termos gerais e termos singulares.

Tomemos os exemplos de Sagid de expressões linguísticas que pretensamente se referem a itens da realidade:

1.     Aristóteles é sábio.

2.     Isto é uma cadeira.

3.     Aqui é Ouro Preto.

Podemos dividi-las em expressões subfrásicas: “Aristóteles”, “isto”, “aqui” e “Ouro Preto” como sendo termos singulares; “sábio” e “cadeira” como sendo termos gerais[v]. Ora, os termos singulares seguem a condição de no máximo um que, embora não sendo uma definição exata de termo singular, já que pode eventualmente acontecer a um termo geral, ainda assim nos permite certa caracterização. A condição de no máximo um permite caracterizar que uma expressão se refere a algo e que se refere a no máximo uma coisa. Ela trabalha com condições de verdade, quais sejam, condições que devem ser satisfeitas para uma afirmação ser verdadeira[vi]. Por exemplo, “Aristóteles” costumeiramente é tido como termo singular, mas pode vir a ser usado como termo geral em “Há mais de um Aristóteles na sala”.

Uma forma de tratar o problema, proposta por Strawson, é não fazer a distinção entre tipos de termos, mas entre tipos de uso dos termos, isto é, quando determinada expressão é usada como um termo singular, etc., entretanto haveríamos que sempre qualificar sua utilização.

De todo modo, Sagid de claro que procedemos à imagem de um funil, que ele exemplifica trazendo classes de termos singulares como os indexicais, que mudam em cada contexto. Dentre eles, há os indexicais puros, nos quais há um referente para cada contexto como em “eu” (o referente é a pessoa que usou a palavra) ou “aqui” (o referente é o lugar que a pessoa está) e há os verdadeiros demonstrativos que, diferentemente dos indexicais puros que estão associados a um significado linguístico, dependem de outros fatores, como uma intenção direcionadora. O significado de “Isto é uma caneta” depende de que se aponte ou direcione para algo. Tal qual “ele”, “aquele”: não se atém somente a uma regra de uso. Ou seja, o funil divide as classes em diferentes mecanismos referenciais cada qual com uma explicação. No caso dos termos singulares podemos ter indexicais puros, verdadeiros demonstrativos ou nomes próprios, que Sagid terá como foco para estudar as diversas teorias da referência, já que é tema dominante no debate.

Cabe ressaltar, por fim, que esse é o método da ciência, isto é, embora queiramos compreender o todo, a ciência parte do particular ao geral, assim como para entender a linguagem geral temos que entender os diversos mecanismos subjacentes.



[i] Recortes feitos das aulas 01, 02 e 03 do professor Sagid Salles disponíveis no Youtube. Curso IF - Filosofia da Linguagem: https://www.youtube.com/playlist?list=PLb6DzdXIOv4EtJpTp1G9kThcOi_DATFyS.

[iii] Pode haver determinado grau de ceticismo que torne a referência impossível e, no limite, até a nossa própria existência e, aí, Sagid menciona Peter Unger para investigação posterior. Quine também aborda o tema de fronteira com a epistemologia (por exemplo, tradução radical).

[iv] Aqui vale a distinção de uso e menção das expressões linguísticas que Sagid ressalta. Podemos usar um nome para falar de uma pessoa, por exemplo, “O Aristóteles é filósofo” ou podemos pela expressão mencionar como em “Aristóteles” tem 11 letras.

[v] Poderíamos também incluir nos termos que se referem à realidade expressões como “Alguém foi reprovado” ou “Todos foram reprovados”, mas se tratam de quantificadores, termos que contam a frequência de ocorrência de termos gerais ou singulares.

[vi] Parece-nos uma abordagem bastante lógica.

sábado, 17 de setembro de 2022

Significado e Referência

Mostra que a linguagem, aparentemente coisa simples e natural, tem uma teoria do senso comum que não responde a questões básicas e, por isso, instaura um ramo de investigação filosófico[i]

Introdução. Uma teoria filosófica do significado deve responder questões como:

1.     O que é isso de certos tipos de marcas e ruídos terem significado?

2.     Por que uma expressão tem o significado que tem, isto é, expressões têm significados distintos?

3.     Como é possível que nós produzamos e compreendamos elocuções com significado?

O senso comum indica que as expressões possuem significado por estarem no lugar de coisas do mundo – essa a chamada teoria referencial do significado. Mas, ela é inadequada porque, na realidade, poucas palavras estão no lugar das coisas e se palavras fossem somente para relacionar coisas não formaríamos frases gramaticais.

Significado e compreensão. A partir da sentença (1) “Papa Francisco jogou futebol no América de MG.”, consideremos:

4.     A sentença não exprime uma verdade, mas a compreendemos sem esforço

5.     Naturalmente lemos e compreendemos frases imediatamente

6.     Mesmo sem nunca as ter visto antes

Daí que pode se tratar de uma capacidade até mais espantosa do que comer ou respirar, argumenta Lycan. Podemos pensar que compreendemos 1.) porque falamos português, 2.) compreendemos cada palavra e 3.) compreendemos o modo como essas palavras estão ligadas. Porém, além da compreensão humana, expressões linguísticas são objetos em si, algo particular, sejam frases com significado ou frases algaraviadas (que não dizem nada, ex. “Eu tatu pão de queijo”). Temos, então, os dados:

7.     Algumas sequências de marcas ou ruídos são frases com significado.

8.     Cada frase com significado tem partes que também tem significado.

9.     Cada frase com significado significa algo em particular.

10.  Quem domina uma língua tem a capacidade de compreender muitas das frases dessa língua, sem esforço e quase instantaneamente, e formula também frases do mesmo modo.

A teoria referencial. Bem, conforme dito, para o senso comum o significado se reduz a coisas, as palavras são como etiquetas, um nome denota[ii] uma pessoa. Há significado porque as frases espelham estados de coisas que descrevem, mas as palavras aparecem em sentido convencional, ou seja, arbitrariamente associadas às coisas (ex., eu me chamar Luís, etc.). Se parece que sei o que significa pois sei o que refere[iii], há objeções.

Objeção 1. “Nem toda palavra nomeia verdadeiramente ou denota um o” objeto de fato existente, com Pégaso, o cavalo alado. Ou pronomes de quantificação, como em “Ninguém viu”. Mesmo frases do tipo sujeito-predicado, como “O Raul é magro”, traz magro descrevendo Raul, mas o que magro nomeia? Ora, magro é uma propriedade[iv] de Raul, algo abstrato: “O Magro”. Além desses pontos, há substantivos que não nomeiam, por exemplo, “prol” ,”bel” e outras palavras que têm significado mas não nomeiam como “sim”, “muito”.

Objeção 2. Uma lista de nomes nada diz: “João Gabriela José”.

Objeção 3. O significado não se esgota na referência, como podemos lembrar de termos correferenciais que podem não ser sinônimos. Conclui-se que a referência é importante em si, apesar das inadequações da teoria referencial do significado.   



[i] Fichamento de Filosofia da linguagem: uma introdução contemporânea. LYCAN, William. Tradução Desiderio Murcho. Portugal: Edições 70, 2022. Capítulo I, introdução.

[ii] Denota * Nomeia * Designa * Refere.

[iii] Como fica evidente, para a teoria referencial do significado, o significado é a referência, mas Frege, por exemplo, irá mostrar que o significado é o sentido e ainda sobra a referência. Já explorado em:  https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/05/alem-da-referencia-o-sentido.html: “(...) E mostra que os nomes próprios não tem um único significado, conforme falamos acima, mas dois: um é a coisa no mundo que a palavra designa, um indivíduo, referência, entidade no mundo. Entretanto, além da referência, o sentido (sínn), é uma caraterística objetiva das palavras. Ruffino explica que, para cada pessoa, um nome pode conter um significado com conotação subjetiva, mas há um sentido objetivo que é [quase] o mesmo para todos.”

[iv] Atributo * Característica * Particularidade. 

sábado, 20 de agosto de 2022

Papagaio

Eu, quando criança, fiz aula de capoeira e o mestre me apelidou papagaio porque eu estava sempre de prosa enquanto ele palestrava. Fato psicológico passível de explicação, não trataremos dele aqui, trataremos da linguagem e da comunicação trazendo nossa pergunta retórica: “Eu falo e você em escuta, mas entende?”. Bem, não há dúvidas que sim pois estamos aí nos comunicando há milênios, mas como isso acontece?

Ora, pelo que pudemos apreender até agora por estudos da Filosofia da Linguagem e correlatos, isso se dá pelo significado, isto é, a palavra, o texto, os ruídos que emitimos, todos eles carregam significado e, devido a ele, nos entendemos. Mas que chatice essa de nos perguntarmos sobre esse tipo de coisa, não é mesmo? Conversamos e pronto! Ora bolas. Entretanto, não é bem assim, vejamos.

Há uma ordem no universo? Essa pergunta evasiva nos leva a pensar se há algum tipo de substrato, seja ele material ou espiritual, em todas as coisas que nos cercam. Podemos atribuir isso a Deus e seguirmos nessa viagem "desinteressada" ou podemos investigar. E a filosofia está aí justamente para isso, investigar se há leis na natureza, se seguimos essa lei, se há o livre-arbítrio e quais ações deveríamos escolher em determinadas ocasiões, etc. Não só a filosofia, obviamente, mas ela, primordialmente.

Soma-se a esse leque de questões aquelas relacionadas à linguagem e voltamos ao significado. Se nos comunicamos porque a linguagem é feita de significados, o que eles são? Mais comumente pleiteia-se que o significado se refere a algo no mundo, a chamada teoria ingênua da referência, qual seja, que o significado é a referência. Então, eu falo sobre algo, você vê aquele algo e nos entendemos. Porém, isso não é assim em muitos casos, ainda que geralmente o seja. Por exemplo, se eu falo “O atual rei da França é careca” eu não estou me referindo a algo, pois tal objeto (o rei da França) não existe. E é aí que começam os problemas, avaliemos.

A Filosofia da Linguagem reflete sobre o significado, a referência e suas teorias. Contudo, ela se mostra muito lógica e podem haver outras abordagens, como a Linguística, análise do discurso ou mesmo a destituição de uma abordagem tão estrita e que, muitas das vezes, desconsidera os próprios falantes responsáveis pela existência da linguagem e etecetera.

Isso posto, já há um edifício da filosofia da linguagem de aproximadamente 150 anos que não pode ser descartado. Se o significado é a referência, se o significado está na proposição, em outras palavras, se eu analiso a própria frase para extrair dela o significado (uma verdade que frase expressa) ou se ele é uma questão de uso da linguagem, definido pelos falantes em jogos de linguagem. Também podemos ter um enfoque mais subjetivo ou intersubjetivo entre nós que falamos ou objetivo, como investigar se a linguagem per se poderia ser analisada.

É justamente aí que nos lembramos do papagaio. Ele fala, eu escuto, mas entendo??? Depende, ele pode falar coisas com sentido ou sem sentido para nós, mas para ele, há sentido, isto é, significado? Se ele fala “são 10 horas” e são dez horas, posso entender, mas se ele fala “hoje é televisão”, a primeira vista eu posso não entender, mas ele pode estar a se referir que "hoje é o dia de comprar a televisão", já que ontem comprei um chiclete. 

De todo modo, há muitas cartas nesse jogo da filosofia da linguagem, mas muitas delas já marcadas e não podemos nos embaralharmos, por isso é vital uma análise mais aproximada do assunto que nos permita limpar o terreno e verificar se o que o papagaio fala tem sentido, aquele do poleiro ou a criança que fazia bagunça na capoeira.