sábado, 20 de fevereiro de 2021

Filosofia da Tecnologia: três enfoques

Três modos de investigar filosoficamente a tecnologia: perspectiva analítica, uma abordagem fenomenológica e um exame inspirado na Escola de Frankfurt. [i]

Introdução. Se a filosofia da tecnologia é recente e a definição de seu objeto não é unânime, em parte pela relação com a técnica e estilos de pensamento, sua unidade se dá pela atividade eficiente e racional do fazer. Cupani trará a visão analítica de Bunge, o enfoque fenomenalista de Borgmann e Feenberg trazendo a Escola de Frankfurt.[ii]

A perspectiva analítica de Mario Bunge

Bunge associa a técnica (tradicional) ou tecnologia (científica) ao artefato, ou seja, produção de algo artificial transformando a natureza, seja ele uma coisa ou um sistema, como mudar o leito de um rio e até social e a uma planificação, isto é, atingir um objetivo eficientemente a partir de instruções e tarefas sequenciadas. Porém, o progresso humano se acelera com a inovação trazida pela tecnologia, através do “estudo científico do artificial”, conforme Bunge.

A tecnologia busca um conhecimento específico, embora a partir do método geral de pesquisa hipotético-dedutivo, seja com teorias substantivas, que fornecem conhecimento sobre os objetos da ação ou operativas, que versam sobre as ações de que depende o funcionamento dos artefatos, por exemplo nas interações homem-máquina. Uma teoria científica se torna teoria tecnológica ao visar a prática e previsão dos eventos, tendendo a simplificá-la e segundo Bunge, se não é ciência pura é a concretização de uma ação plenamente racional seguindo a tradição iluminista e possibilitando uma engenharia social que de conta de problemas como fome, superpopulação, entre outros.

Por fim, Bunge ressalta que há sabidas consequências negativas no avanço tecnológico, muito devido ao mau uso pelo ser humano e quando ele se isenta de responsabilidade ou quando se considera que a tecnologia é neutra, tais aspectos devem ser tratados por uma ética que ponha a tecnologia a serviço de todos, verdadeiramente.

A abordagem fenomenológica de Albert Borgmann

Borgmann vê a tecnologia como padrão de vida da modernidade e limitador da existência, trazendo um enfoque fenomenológico que capte suas especificidades[iii] a partir da filosofia e ciências sociais. Para ele, a chave da tecnologia são os dispositivos que usamos, muitas vezes sem compreender seu funcionamento, para nos trazer conforto. Dispositivos que devem estar disponíveis ao nosso alcance e ao mesmo tempo são descartáveis e substituíveis.

Remontando a Bacon e Descartes e o domínio da natureza, a tecnologia visou libertar o homem dos seus problemas, constituindo o modo de vida europeu que supera o uso da técnica concreta para trazer os dispositivos como meio sem fins últimos, ou seja, trazem uma função descontextualizada ao mesmo que tempo que nos desengaja em nossa relação com eles. Impulsionado pela propaganda, cria-se uma cultura de consumo tecnológico que, se por um lado traz a promessa de uma vida melhor, por outro se impõe como paradigma.

Então, Cupani traz o conceito de foco, que vem do latim focus ou seja, lareira, que era o centro de calor nas casas e onde se praticavam grande parte das atividades. Mesmo ainda nas lareiras atuais há o fogo vivo queimando. Há “práticas focais” que realizamos, como comer em família ou pescar, que são fim em si mesmas e têm significado e se opõem ao olhar tecnológico onde as coisas são meios, por exemplo, uma vaca como máquina que produz carne e leite, submetidos à lei da eficiência[iv].

Segundo Borgmann, nisso consiste a atitude tecnológica: a perda das coisas ou práticas focais para um universo de consumo, como meios para fins circunstanciais. O trabalho deixa de ser atividade social para ser atividade de produção de artifícios. A tecnologia, ao mesmo tempo que nos traz alívio, traz uma comodidade frívola e de instrumentalização da vida, mas também uma implicação que nos faz manter esse modo de vida.

Se a promessa tecnológica está em acordo com os padrões de liberdade e auto realização da democracia liberal é justamente ao trazer a questão de uma vida boa que poderemos reconstruir nossa relação com a tecnologia, conforme Borgmann.  É quando percebemos a importância das coisas e práticas focais, usando uma descrição dêitica[v], que nos contrapomos à tendência tecnológica. Uma vida boa com práticas em si mesmas e que seja favorecida pela tecnologia, que ela realce essas práticas ao invés de soterrá-las naquele modo cúmplice. Interesse focal como fim, tecnologia como meio. Mais qualidade de vida e com algum dispositivo. Diminuir o consumo dos ricos para melhor as condições dos pobres.

A perspectiva crítica de Andrew Feenberg

Feenberg, que segue a linha da Teoria Crítica, vê a tecnologia como a estrutura material da modernidade capitalista, operando em termos do controle da natureza e dos seres humanos, eficiência e recursos. Seu desenvolvimento pode ser determinado por critérios técnicos ou sociais de progresso, mas ela se torna a principal forma de poder nas mãos de empresários e tecnocratas que, visando sua autopreservação, ignoram condições comunitárias e ambientais em prol da perpetuação da racionalidade que se justifica pela eficiência.

Entretanto, movida por interesses sociais específicos, trata-se de uma eficiência que visa o lucro e a venda de mercadorias em uma sociedade consumista que não observa as exigências da vida humana como igualdade de oportunidades e direito de lazer, por exemplo.  A mediação tecnológica se generaliza em todos os setores (trabalho, educação, esportes) obedecendo interesses privilegiados que, em nome da eficiência, restringem as possibilidades e aumenta a disciplina e a padronização. Nesse sentido, as realizações tecnológicas são praticadas por sujeitos que não se responsabilizam pelos produtos, se reificam[vi].

Mas, segundo Feenberg há limitações que podem ser contestadas quando os dominados subvertem o uso para se protegerem ou trazerem inovações informais. É a ambivalência da tecnologia que permite que ela seja contestada e siga um desenvolvimento divergente saindo de uma realidade instrumentalizada em direção à realização humana quando as pessoas assumem uma responsabilidade política.

Entretanto, Feenberg propõe uma transformação gradual a uma civilização onde as potencialidades humanas, hoje negadas, caminhem em direção ao público, uma evolução de bem-estar social. A mudança civilizatória que permitiria um avanço social além do capitalismo atual pode se dar com o foco cada vez maior nas necessidades humanas dentro dos códigos técnicos.

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Trazemos as reflexões de Cupani sobre a contribuição de cada enfoque.

Bunge traz a confiança na tecnologia para aprimorar nossa existência superando modos de vida atrasados, reconhecendo que não é neutra, mas se alinhando a sua ação racional oriunda do Iluminismo sem esquecer a ação ética e política, embora Cupani ressalte sua falta de apreço a culturas não científicas e nesse caso, as visões de Ladrière e Lacey poderiam ajudar.

Borgmann mostra como paradigma tecnológico nos perpassa e traz uma abordagem dêitica para nos alertar de nossa cumplicidade com a tecnologia. Entretanto, enfatiza Cupani, ele subestima fatores sociais e rejeita a visão marxista alegando que traça um cenário de incapacidade de mudanças que viria de sua proposta de nossa relação ambivalente com a tecnologia. A saída é pelo cultivo dos interesses focais, entretanto, argumenta Cupani, em países periféricos a possibilidade de boa parcela da população mudar a relação com a tecnologia é quase nula se tornando inócua e ingênua.

Feenberg faz a análise no âmbito sociopolítico e critica a eficiência que não é inerente à tecnologia, mas guiada por interesses sociais. Diferentemente de uma proposta marxista clássica, Cupani reforça que ele busca uma relação com a tecnologia que a instrumentalize para transformar o modo de vida e uma transição difícil ao socialismo pelos estratos médios da sociedade, como por exemplo ocorreu em maio de 1968.

Por fim Cupani, cita Feenberg na função heurística da tecnologia, de “quebrar a ilusão de necessidade de que o mundo quotidiano está recoberto”, que talvez valha para os três autores, como forma de abordar os desafios da análise tecnológica na busca por um mundo melhor.



[i] Conforme https://www.scielo.br/pdf/ss/v2n4/a02v2n4.pdf, acesso em 15/02/2021. Alberto Cupani, na Revista Scientiae Studia (2004).

[ii] Os dois últimos com Technology and the character of contemporary life (1984) e Transforming technology (2002).

[iii] Cupani caracteriza: teorias instrumentais veem a tecnologia como um meio ao serviço dos propósitos humanos; teorias substancialistas acreditam que a tecnologia seja autônoma; teorias pluralistas insistem na multiplicidade de fatores aos quais responde a tecnologia.

[iv] Esse nos parece ser o conceito central da tecnologia e o mais artificial e impositivo. O que não serve a esse fim é indiferente.

[v] Ou mostrativa, ou seja, baseada naquelas experiências de coisas que possuem valor e direito de existir em si mesmas (e não como meros meios) e no testemunho que se pode dar delas.

[vi] Reificado é como estou, é como estava até acordar do sono dogmático, do qual ainda desembaço a vista.

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