Três modos de investigar filosoficamente a tecnologia:
perspectiva analítica, uma abordagem fenomenológica e um exame inspirado na
Escola de Frankfurt. [i]
Introdução.
Se
a filosofia da tecnologia é recente e a definição de seu objeto não é unânime,
em parte pela relação com a técnica e estilos de pensamento, sua unidade se dá
pela atividade eficiente e racional do fazer. Cupani trará a visão analítica de
Bunge, o enfoque fenomenalista de Borgmann e Feenberg trazendo a Escola de
Frankfurt.[ii]
A
perspectiva analítica de Mario Bunge
Bunge
associa a técnica (tradicional) ou tecnologia (científica) ao artefato, ou
seja, produção de algo artificial transformando a natureza, seja ele uma coisa
ou um sistema, como mudar o leito de um rio e até social e a uma planificação,
isto é, atingir um objetivo eficientemente a partir de instruções e tarefas
sequenciadas. Porém, o progresso humano se acelera com a inovação trazida pela
tecnologia, através do “estudo científico do artificial”, conforme Bunge.
A
tecnologia busca um conhecimento específico, embora a partir do método geral de
pesquisa hipotético-dedutivo, seja com teorias substantivas, que fornecem
conhecimento sobre os objetos da ação ou operativas, que versam sobre as ações
de que depende o funcionamento dos artefatos, por exemplo nas interações
homem-máquina. Uma teoria científica se torna teoria tecnológica ao visar a
prática e previsão dos eventos, tendendo a simplificá-la e segundo Bunge, se não
é ciência pura é a concretização de uma ação plenamente racional seguindo a tradição
iluminista e possibilitando uma engenharia social que de conta de problemas como
fome, superpopulação, entre outros.
Por
fim, Bunge ressalta que há sabidas consequências negativas no avanço tecnológico,
muito devido ao mau uso pelo ser humano e quando ele se isenta de responsabilidade
ou quando se considera que a tecnologia é neutra, tais aspectos devem ser tratados
por uma ética que ponha a tecnologia a serviço de todos, verdadeiramente.
A
abordagem fenomenológica de Albert Borgmann
Borgmann
vê a tecnologia como padrão de vida da modernidade e limitador da existência,
trazendo um enfoque fenomenológico que capte suas especificidades[iii] a partir da filosofia e ciências
sociais. Para ele, a chave da tecnologia são os dispositivos que usamos, muitas
vezes sem compreender seu funcionamento, para nos trazer conforto. Dispositivos
que devem estar disponíveis ao nosso alcance e ao mesmo tempo são descartáveis e
substituíveis.
Remontando
a Bacon e Descartes e o domínio da natureza, a tecnologia visou libertar o
homem dos seus problemas, constituindo o modo de vida europeu que supera o uso
da técnica concreta para trazer os dispositivos como meio sem fins últimos, ou
seja, trazem uma função descontextualizada ao mesmo que tempo que nos desengaja
em nossa relação com eles. Impulsionado pela propaganda, cria-se uma cultura de
consumo tecnológico que, se por um lado traz a promessa de uma vida melhor, por
outro se impõe como paradigma.
Então,
Cupani traz o conceito de foco, que vem do latim focus ou seja, lareira, que
era o centro de calor nas casas e onde se praticavam grande parte das
atividades. Mesmo ainda nas lareiras atuais há o fogo vivo queimando. Há “práticas
focais” que realizamos, como comer em família ou pescar, que são fim em si
mesmas e têm significado e se opõem ao olhar tecnológico onde as coisas são meios,
por exemplo, uma vaca como máquina que produz carne e leite, submetidos à lei
da eficiência[iv].
Segundo
Borgmann, nisso consiste a atitude tecnológica: a perda das coisas ou práticas
focais para um universo de consumo, como meios para fins circunstanciais. O trabalho
deixa de ser atividade social para ser atividade de produção de artifícios. A
tecnologia, ao mesmo tempo que nos traz alívio, traz uma comodidade frívola e
de instrumentalização da vida, mas também uma implicação que nos faz manter
esse modo de vida.
Se
a promessa tecnológica está em acordo com os padrões de liberdade e auto
realização da democracia liberal é justamente ao trazer a questão de uma vida
boa que poderemos reconstruir nossa relação com a tecnologia, conforme Borgmann.
É quando percebemos a importância das
coisas e práticas focais, usando uma descrição dêitica[v], que nos contrapomos à tendência
tecnológica. Uma vida boa com práticas em si mesmas e que seja favorecida pela
tecnologia, que ela realce essas práticas ao invés de soterrá-las naquele modo
cúmplice. Interesse focal como fim, tecnologia como meio. Mais qualidade de
vida e com algum dispositivo. Diminuir o consumo dos ricos para melhor as
condições dos pobres.
A perspectiva crítica de
Andrew Feenberg
Feenberg,
que segue a linha da Teoria Crítica, vê a tecnologia como a estrutura material
da modernidade capitalista, operando em termos do controle da natureza e dos
seres humanos, eficiência e recursos. Seu desenvolvimento pode ser determinado
por critérios técnicos ou sociais de progresso, mas ela se torna a principal
forma de poder nas mãos de empresários e tecnocratas que, visando sua
autopreservação, ignoram condições comunitárias e ambientais em prol da
perpetuação da racionalidade que se justifica pela eficiência.
Entretanto,
movida por interesses sociais específicos, trata-se de uma eficiência que visa
o lucro e a venda de mercadorias em uma sociedade consumista que não observa as
exigências da vida humana como igualdade de oportunidades e direito de lazer,
por exemplo. A mediação tecnológica se
generaliza em todos os setores (trabalho, educação, esportes) obedecendo
interesses privilegiados que, em nome da eficiência, restringem as
possibilidades e aumenta a disciplina e a padronização. Nesse sentido, as
realizações tecnológicas são praticadas por sujeitos que não se responsabilizam
pelos produtos, se reificam[vi].
Mas,
segundo Feenberg há limitações que podem ser contestadas quando os dominados
subvertem o uso para se protegerem ou trazerem inovações informais. É a
ambivalência da tecnologia que permite que ela seja contestada e siga um
desenvolvimento divergente saindo de uma realidade instrumentalizada em direção
à realização humana quando as pessoas assumem uma responsabilidade política.
Entretanto,
Feenberg propõe uma transformação gradual a uma civilização onde as
potencialidades humanas, hoje negadas, caminhem em direção ao público, uma
evolução de bem-estar social. A mudança civilizatória que permitiria um avanço
social além do capitalismo atual pode se dar com o foco cada vez maior nas
necessidades humanas dentro dos códigos técnicos.
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Trazemos
as reflexões de Cupani sobre a contribuição de cada enfoque.
Bunge
traz a confiança na tecnologia para aprimorar nossa existência superando modos
de vida atrasados, reconhecendo que não é neutra, mas se alinhando a sua ação
racional oriunda do Iluminismo sem esquecer a ação ética e política, embora
Cupani ressalte sua falta de apreço a culturas não científicas e nesse caso, as
visões de Ladrière e Lacey poderiam ajudar.
Borgmann
mostra como paradigma tecnológico nos perpassa e traz uma abordagem dêitica
para nos alertar de nossa cumplicidade com a tecnologia. Entretanto, enfatiza
Cupani, ele subestima fatores sociais e rejeita a visão marxista alegando que
traça um cenário de incapacidade de mudanças que viria de sua proposta de nossa
relação ambivalente com a tecnologia. A saída é pelo cultivo dos interesses focais,
entretanto, argumenta Cupani, em países periféricos a possibilidade de boa
parcela da população mudar a relação com a tecnologia é quase nula se tornando inócua
e ingênua.
Feenberg
faz a análise no âmbito sociopolítico e critica a eficiência que não é inerente
à tecnologia, mas guiada por interesses sociais. Diferentemente de uma proposta
marxista clássica, Cupani reforça que ele busca uma relação com a tecnologia
que a instrumentalize para transformar o modo de vida e uma transição difícil ao
socialismo pelos estratos médios da sociedade, como por exemplo ocorreu em maio
de 1968.
Por
fim Cupani, cita Feenberg na função heurística da tecnologia, de “quebrar a
ilusão de necessidade de que o mundo quotidiano está recoberto”, que talvez
valha para os três autores, como forma de abordar os desafios da análise
tecnológica na busca por um mundo melhor.
[i] Conforme https://www.scielo.br/pdf/ss/v2n4/a02v2n4.pdf, acesso em 15/02/2021. Alberto Cupani, na Revista Scientiae Studia (2004).
[ii] Os dois últimos com Technology
and the character of contemporary life (1984) e Transforming technology (2002).
[iii] Cupani caracteriza: teorias
instrumentais veem a tecnologia como um meio ao serviço dos propósitos
humanos; teorias substancialistas acreditam que a tecnologia seja
autônoma; teorias pluralistas insistem na multiplicidade de fatores aos
quais responde a tecnologia.
[iv] Esse nos parece ser o conceito
central da tecnologia e o mais artificial e impositivo. O que não serve a esse fim
é indiferente.
[v] Ou mostrativa, ou seja, baseada
naquelas experiências de coisas que possuem valor e direito de existir em si
mesmas (e não como meros meios) e no testemunho que se pode dar delas.
[vi] Reificado é como estou, é como
estava até acordar do sono dogmático, do qual ainda desembaço a vista.
Nota 6 = espanto
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