segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Aufbau

Reavaliar leituras estereotipadas do Aufbau visando mostrar que se trata mais de um projeto lógico-linguístico do que somente epistemológico.[i]

O Aufbau[ii] tinha por fim lançar as bases para a construção da ciência unificada sobre um sistema lógico (linguístico)-epistemológico (psicológico) de conceitos (objetos) visando a redução de cognições umas às outras por uma linguagem fenomenalista com a certeza do imediatamente dado na experiência, mais certo que as coisas materiais.

Tentando desintrincar o lógico-psicológico, Pizzutti e Liston argumentam que as cognições básicas seriam derivadas não dos dados dos sentidos, mas metodologicamente tidas com válidas. O próprio Carnap afirmara que a epistemologia era de base metodológica visando justificar as cognições relacionadas. Assim, a premissa do Aufbau é de ordenação lógica dos conceitos, visando o sistema construcional, mas que teria um base auto psicológica, na medida em que essa ordenação também dependeria do conhecimento dos objetos inferiores, trazendo uma primazia epistêmica.

Conforme citações de Carnap, o sistema construcional é baseado em conceitos sobre conceitos e transitivo, ou seja, os conceitos superiores podem ser reduzidos a enunciados sobre os fundamentais, etc. É fundado na lógica e teoria dos tipos do Principia Mathematica, ou seja, conforme os autores, projeto lógico-linguístico. Haveria quatro domínios base para construção dos conceitos das ciências empíricas em um único sistema:

i.  Auto psicológico: formam a base do sistema de reconstrução racional do conhecimento pela sua redutibilidade lógica e têm primazia epistêmica. São os objetos do mundo subjetivo do sujeito.

ii. Físico: se baseiam nos anteriores para construir os objetos do mundo da física. Se reduzem pela percepção.

iii. Hetero psicológico: outras mentes e sujeitos dotados de consciência. Se reduzem por meio da externalização dos estados psicológicos (comportamento).

 iv. Cultural: mundo dos objetos culturais. Se reduzem através de manifestações psicológicas e suas documentações físicas.

Se a base foi auto psicológica em função da base lógica construcional e epistêmica e por possuir poucos objetos básicos, envolveu dificuldades:

1. Aparente solipsismo, mas que teria apenas essa forma pois trata-se de um solipsismo metodológico e não somente experiências particulares de um indivíduo.

2. Se a base subjetiva permitiria objetividade e, segundo Carnap, sim, por propriedades estruturais análogas a todos os sujeitos e que perpassam qualquer fluxo de experiência.

3. A base formada por percepções, que são experiências elementares não sujeitas a análise, seria superada por meio da descrição das relações das propriedades individuais das experiências, num processo de quase-análise.

A partir desses pontos Carnap estabelece como sustentação das relações o reconhecimento de similaridade, comparando a imagem memorética de duas percepções para considerá-las semelhantes e construir o domínio auto psicológico subindo para os outros níveis.

Pizzutti e Liston mostram que as críticas de Quine e outros foram enviesadas e criaram uma visão caricatural do movimento de Viena. Para Quine, Carnap traria um empirismo clássico seguindo a lógica de Frege e Russell, ou seja, uma versão ingênua de empirismo fundacionista e reducionismo fenomenalista. Segundo Quine, teria havido fracasso na busca pelos fundamentos da matemática, ou seja, no logicismo, dentro do campo conceitual das ciências exatas, de um significado teórico.

Entretanto, haveria o campo doutrinal nas ciências naturais, reduzindo o significado à experiencia sensorial e daí, a verdade do conhecimento através de leis. O pai do projeto era Russell e sua proposta de dados dos sentidos como construto lógico do mundo exterior que, segundo Quine, teria quase obtido êxito por Carnap no Aufbau, mas a busca de uma certeza cartesiana teria fracassado via experiência imediata.

Segundo o próprio Carnap, uma base fiscalista seria mais interessante do ponto de vista científico, entretanto sua escolha foi pela ordenação auto psicológica privilegiando o aspecto epistemológico na esteira do realismo, idealismo e fenomenalismo e formação de uma base convencional.

Na visão de Carnap, a epistemologia, ao mesmo tempo em que justifica o conhecimento, é relativa porque relaciona cognições. No caso do Aufbau, a construção do sistema é ordenada pelo conhecimento partindo dos dados dos sentidos e cognições pressupostas como válidas. Mas a condição suficiente do sistema construcional é lógica e só metodologicamente é feita a análise epistemológica. A reconstrução racional é de inferência lógica partindo de cada um dos constituintes das experiências que podem ser epistemicamente independentes, mas a análise epistemológica para ser válida, deve permitir uma redução das cognições. Conforme os autores:

No projeto de sistemas construcionais de modo geral, a análise lógica é condição suficiente para construir um sistema, a análise epistemológica é condição necessária se o sistema proposto deve refletir, além de uma ordenação lógica, uma ordenação epistemológica do conhecimento.

Ao tratar do sistema, os autores acreditam que o Aufbau é fundacionista, mas não da maneira vista por Quine, qual seja, de que Carnap teria assumido o reducionismo como dogma da tradição empirista, isto é, a verdade “cartesiana” seria dada pela tradução do discurso significativo na linguagem dos dados dos sentidos, constatado diretamente da experiência. Na visão de Pizzutti e Liston, o sistema de Carnap é fundacionista com o domínio auto psicológico das percepções e enunciados fenomenalistas baseados em crenças básicas justificadas por si (irrevisáveis) e construcional pois permite a redução dos objetos do conhecimento científico à sua base, pela primazia epistêmica. Entretanto, se há esse justificacionismo epistemológico por enunciados básicos autoevidentes, ele não é infalível, tal como ocorre em Descartes, mas segue uma razão metodológica e, por isso, escolhida convencionalmente e substituível.

Por fim, os autores reforçam que, no Aufbau, o “projeto é guiado por uma reconstrução racional do conhecimento científico cuja base é uma ordenação lógica com elementos psicológicos” e que não está comprometido com a análise epistêmica do conhecimento.  Eles tentaram defender a tese de que Carnap não é dogmático por defender o convencionalismo e a tolerância linguística, desde que explicitada a clareza das regras o invés de argumentos filosóficos. Segundo ele, em lógica não há moral.


[i] Pedro Henrique Nogueira Pizzutti e Gelson Liston. O PROJETO LÓGICO-LINGUÍSTICO E EPISTEMOLÓGICO DO AUFBAU DE RUDOLF CARNAP. Na Revista Problemata, acessado em 10/02/2021 pelo link https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/problemata/article/view/44612/29117. Sem a marcação de em qual obra de cada autor está cada argumento, apenas uma tentativa de expor a visão panorâmica da discussão.

[ii] The logical structure of the world. Aufbau = construção.

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