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quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Estruturas perceptivas e inferenciais

Nós não vemos as mesmas coisas e isso é, preferencialmente, uma questão de linguagem[i]

Uma distinção entre ver e enxergar. Você vê, mas enxerga? O ato de ver algo quer dizer que sabemos o que estamos vendo (enxergamos?)? Por exemplo, uma pessoa que, não sabendo latim, olha para uma página com um texto em latim, não compreende o que está vendo, porém ao olhar para a mesma página em português, se conhecedora da língua, entenderá. É como quando estamos tentando explicar algo para alguém e dizemos: “ali, ó! Não está vendo?”. E por aí vai, com conhecimentos gerais ou específicos das mais variadas áreas, como no contraste da experiência entre um crítico de arte visualizando uma obra e um leigo que vai ao museu pela primeira vez. Se parece óbvio para alguns é inalcançável para outros.

Experiência sensória e conhecimento epistêmico. Então, há um ato fisiológico de perceber as coisas pela experiência sensória (o que chamei de ver), mas há algo além desse ato, como postula Wilfrid Sellars[ii], que é um tipo de conhecimento de natureza epistêmica (o que chamei de enxergar), como uma razão ou crença justificada[iii], cuja primazia é sua natureza inferencial. O conceito primordial de Sellars é a percepção e, para ele, não existe percepção não conceitual.  Não se pode negar, conforme argumenta Pettersen, a natureza causal da experiência, mas ela, por si só, não representa conhecimento porque ele requer uma estrutura que possa articular essa experiência.

Mito do dado. Sellars, conforme argumenta Pettersen, é um crítico do empirismo e formulou o mito do dado: supor que as experiências sensórias per se constituem conhecimento, isto é, supor que ver é saber (ie, enxergar). Com sua crítica, ele recusa que o dado "cru" da experiência é a fonte do conhecimento, como quando citamos que ver um texto em latim não quer dizer que o compreendemos. No cerne da argumentação está uma suposta ambiguidade na teoria dos dados dos sentidos[iv], a confusão entre “estar consciente” e “saber”.

Crenças. Na base do nosso conhecimento há crenças, conteúdos mentais que podem ser do tipo “preferir o vermelho ao azul” (uma simples preferência) ou “a lei da gravidade” (uma lei científica) que, baseada em justificativa racional, é o conhecimento do tipo epistêmico que estamos enfatizando, como “saber algo”. Podemos ver coisas e estarmos conscientes delas, como animais ou crianças bem pequenas que não sabem exatamente o que está acontecendo para além de dados particulares que não representam fatos epistêmicos; particulares são experiência não articuladas epistemicamente, não organizadas por uma estrutura conceitual.

O caminho do conhecimento. Se a nossa experiência começa pelo objeto físico, por sentir um conteúdo sensorial, é a partir daí que começamos a ter crenças, um começo de conhecimento, mas que só será inferencial quando há articulação daquela experiência e se pode fazer implicações. Mas, para o empirismo clássico (Hume, Locke e Berkeley), sentir é uma forma de conhecer, salta-se do objeto físico para um conteúdo epistêmico diretamente.

Nominalismo psicológico. Para Sellars e, conforme enfatiza Pettersen, tomando por base o guia de estudos de Brandom, é um caminho que vai do sentir (fisiológico, terminações nervosas) para uma crença não inferencial (psicologia) e só depois que a filosofia atua, no último passo do conhecimento, de crenças inferenciais que ordenam o mundo pela linguagem, no que constitui o nominalismo psicológico, já que é a linguagem que estrutura a nossa psique[v].

Ética. Estamos no campo da ética que já está bem distante do objeto físico. É aí que formulamos conceitos, ou mal os formulamos, como no caso do racismo. De fato, não há diferença entre pessoas pela cor da pele, mas é uma experiência conceitual prévia que o determina, algo cultural, não natural.

Senciência e Sapiência. Por fim, nessa primeira aproximação de Sellars, cabe destacar a diferença entre senciência, no campo do sentir e sapiência, já na esfera da episteme. Para o último caso, cabe dizer que “sei que sei” (enxergo), enquanto o primeiro só sabe (vejo), mas não sabe que sabe. Como as crianças fera[vi] criadas por animais e, quando resgatadas, não têm nenhum conceito – uma crítica ao inatismo.



[i] Reflexão introdutória a partir das aulas de https://www.youtube.com/@brunopettersen, Bruno Pettersen: Sellars – Empirismo e Filosofia da Mente.

[ii] De acordo com a Wikipedia, Wilfrid Stalker Sellars foi um filósofo americano, ligado à Universidade de Pittsburgh desde 1963 até à sua morte e que apresentou a doutrina do nominalismo psicológico, segundo a qual todo o estar ciente é uma questão linguística.

[iii] Recupera-se, aqui, a tese platônica de que conhecimento é crença verdadeira justificada.

[iv] Interessante que dados dos sentidos vêm de Russell, mas ele já separa a tese de Berkeley que misturou o dado com o sentido.

[v] Esta visão estaria associada Husserl e Merleau-Ponty, de acordo com Pettersen.

[vi] https://pt.wikipedia.org/wiki/Crian%C3%A7a_selvagem: Crianças selvagens são crianças que logo nos primeiros anos de vida passaram a viver em completo isolamento da humanidade. São crianças que depois de pouco tempo de vida se perdem da população, vivem como animais, não falam e não andam como pessoas socializadas. Tais histórias se originaram de relatos relativamente comuns no século XVIII, que descreviam crianças encontradas no campo, tidas como sobreviventes por circunstâncias especiais, desde os primeiros anos de vida, criadas por animais, sem contato com humanos e assim se tornando selvagens.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Só sei que nada sei

Esse texto traz notas sobre o diálogo Teeteto[i]

Podemos perceber, no diálogo do Teeteto, a aplicação do método maiêutico de Sócrates que visa a parturição de um conhecimento novo por Teeteto, jovem, mas promissor aprendiz. A questão principal de Sócrates é exatamente tentar delinear o que é o conhecimento e ele luta contra a concepção estabelecida por Protágoras de que conhecimento é percepção, conforme 1.) “Penso, portanto, que aquele que conhece qualquer coisa, percebe o que conhece; e, como aparece no momento, o conhecimento não passa de percepção” (Teeteto falando, p. 70) e 2.) “... a que Protágoras costumava apresentar ... o ser humano é a medida de todas as coisas” (Sócrates falando, p. 70).

Em boa parte do diálogo de Platão, Sócrates vai lidar com essa concepção vigente e chegará mesmo a fazer Teeteto parir essa opinião, de que percepção é conhecimento, mas logo irá subtrair esse primogênito por se mostrar equivocado(p. 86). Há alguns pontos, que podemos destacar, contrários a essa tese e começamos por verificar que ela se baseia na percepção que é diferente em cada pessoa e, também, sobre coisas individuais, e cada indivíduo irá ter uma a sua visão. Ocorre que, o que aparece está em constante mudança tornando difícil o conhecimento, isso estaria no campo do fenômeno e não do ser. Sócrates localiza esse debate na tradição, com Protágoras, Heráclito e Empédocles defendendo que as coisas estão em fluxo constante contra Parmênides, para quem a realidade é uma e imóvel, com a célebre citação de que o ser é e o não-ser não é[ii].

A argumentação é longa e passa por pontos como a análise do movimento e se ele é a causa do ser pois tudo o que existe está em movimento, que pode ser um movimento local ou dos astros, mas também, nesse sentido, nada aparece como ele, pois muda. Sócrates também considera o ponto de vista do nosso interior, isto é, há a percepção do eu e o objeto percebido no mundo, mas volta a reforçar que as coisas que aparecem não são, por conta do fluxo do vir a ser, reforçando a diferenciação entre percepção e conhecimento.

Um ponto interessante na argumentação é que, para Sócrates, ao basear o conhecimento na percepção individual, Protágoras faz com que cada um seja dono de sua verdade e com isso agrada a sua plateia. Mas a verdade para um pode ser falsa para outro, o que deixaria a questão aberta para disputas. Ao questionar a percepção, Sócrates também traz o problema do conhecimento pelos sentidos e argumenta que por eles não se chega na apreensão do ser e da verdade, mas pelo raciocínio, que seria uma atividade da alma que pode atingir as coisas que são.

Há, então, a hipótese de o conhecimento ser um tipo de opinião verdadeira, investiga-se como se forma uma opinião e suas possibilidades de erro bem como a divisão entre conhecer (epistemologia) e ser (ontologia) e se distinguirá entre uma opinião falsa e uma opinião do que não é. Aqui podemos lembrar que muitas vezes a causa do erro é uma opinião sobre algo que não conhecemos, ou imaginamos que conhecemos ou de algo a que associamos um pensamento errático a uma percepção.

A argumentação é longa e complexa e não teríamos condições de fazer um aprofundamento, trata-se de uma primeira aproximação dos principais pontos que nos chamaram a atenção. Mas, parece que a indicação de Sócrates de conhecimento passa pela capacidade de definir algo por uma característica que o torne distinto dos demais, conforme p. 166:

“conclusivamente, aquele que possui a opinião correta sobre qualquer coisa e acrescenta a isso uma compreensão da diferença que a distingue das outras coisas terá adquirido conhecimento dessa coisa, da qual detinha anteriormente somente opinião.”

Embora, ao final, Sócrates afirme que “A conclusão é que nem a percepção, Teeteto, nem a opinião verdadeira, nem a explicação racional associada à opinião verdadeira poderiam ser conhecimento” (p. 169). Porém, Teeteto continua grávido e pode seguir estimulado a continuar tal tipo de diálogo, mas “munido da sabedoria de não pensar que sabes aquilo que não sabes” (p. 169).



[i] Notas sobre o diálogo Teeteto (ou do Conhecimento). PLATÃO. Diálogos I – Teeteto, Sofista, Protágoras. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2007.

[ii] Sobre Parmênides, nota de rodapé 77 e https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2025/02/o-problema-de-parmenides.html. 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Breves ideias sobre Locke, Berkeley, árvores e Deus

Importante marcar alguns pontos de Berkeley, como o seu empirismo idealista e o nominalismo[i]

Inatismo. Grosso modo, para o empirismo realista de Locke, as ideias nos são causadas pelas coisas por meio das sensações. Locke está nesse momento de florescimento das teorias do conhecimento (epistemologia) que visam escapar das amarras do platonismo e aristotelismo que influenciavam a filosofia desde sempre. Cabe lembrar que, conforme ressalta Lucas, ele não é exatamente um anti-racionalista, porém critica o inatismo proveniente do racionalismo, entre outras coisas, porque se tivéssemos ideias inatas (Deus, alma, etc.) não deveríamos discutir a respeito delas, elas já estariam “lá”. Desse modo, pensa Locke, somos uma tábula rasa e vamos aprendendo com a experiência, qual seja, conhecemos através de estímulos das qualidades primárias e secundárias dos objetos, as primeiras objetivas (a temperatura) e as segundas subjetivas (o calor).

Ideias. Ora veja, enfatiza Lucas, as ideias são produzidas pelas sensações, mas não só, há ideias produzidas pela reflexão (estímulo interno) a partir de operações simples da razão sobre aquelas ideias da percepção. Nota-se esse papel da razão. Por fim, há ideias simples e ideias complexas: as primeiras oriundas tanto da sensação (dados do sentido) ou da reflexão (composição, distinção, comparação); as segundas que são combinações de ideias simples (modo, substância e relação). Essas últimas, por exemplo, gratidão ou duração, ideias de modo dependentes de algo; relações de parentesco: fulano é pai de cicrano que é filho de beltrano e por aí vai; e uma pessoa como sendo uma substância, ou uma panela, que são ideias simples juntas, conforme ensina Lucas. Reconhecer uma coisa necessita que ela seja identificada e, como Locke não pode lançar mão da essência (aristotélica?), fica esse agregado de ideias simples, que podem até serem abstrações: medo ou Deus[ii].

Idealismo. Esse tipo de teoria empirista é um problema para Berkeley, católico que era, já que fundamenta o nosso conhecimento na matéria. Para Berkeley, o nosso conhecimento é formado por ideias que se originam em nossas percepções, então ser é ser percebido. De um lado o empirismo realista e, de outro, o empirismo idealista. Citações que Lucas apresenta: “As coisas existem de maneira verdadeira e imutável na matéria” e “As coisas não existem fora do fato de serem percebidas”. Choque. Mas para Berkeley é isso: o conhecimento vem das sensações, mas não há garantias de sua base material, o que, segundo Lucas, é uma noção perturbadora e que tenta se livrar de um mundo material que leva ao ceticismo e ateísmo.

Solipsismo. A partir do empirismo idealista de Berkeley, o exemplo que Lucas do Prado nos traz é aquele: se uma árvore cai na floresta e ninguém observou, ela fez barulho? Ora, parece que não, já que o evento não foi percebido por ninguém. As sensações não se ligam aos objetos, porque Berkeley postula que as ideias são substâncias mentais. Lucas insiste: as ideias são sensações dos sentidos, são pensamentos. Sentir é pensar. Ideias e sensações são subjetivas, sem suporte material. Então o existente é o perceptível, não podemos garantir o resto material do mundo. Ocorre que tal concepção leva ao relativismo pois cada qual estaríamos à mercê de nossas próprias ideias / percepções possivelmente nos conduzindo ao solipsismo, isto é, uma falta de garantia de algo fora de nós.

Salvaguarda. Para Berkeley, não existe divisão entre as qualidades primárias e secundárias, qualquer qualidade é uma sensação, é subjetiva, um pensamento. Berkeley, então, rejeita o dualismo cartesiano, optando pela “res cogitans”. Por aí, se as percepções não são relativas, pois estamos sempre vendo “o mesmo”, há um espírito ativo que cria ideias e coisas, ser onisciente, onipotente e onipresente, percebendo tudo ao mesmo tempo, embora não existindo para cada um individualmente. E o raio que caiu na árvore, foi escutado? Se não foi escutado por ninguém, nenhum ser humano, há um ser que tudo vê, tudo sabe e percebe: Deus. Então, por mais que eu não tenha garantia do mundo que você aí que lê, percebe, Deus percebe e garante. Conforme ressalta o Lucas, Deus é que dá essa coerência ao mundo e, pensando assim, Berkeley seria um coerentista e Locke correspondista. É Deus que garante essa coerência no mundo. É a existência de Deus que impede o solipsismo e o ceticismo.

Nominalismo. O fato de que haja um relativismo nos parece próprio ao empirismo, haja vista a relevância da percepção na obtenção do conhecimento, percepção essa que é individual. Entretanto, lá em Locke havia a composição de ideias complexas a partir de ideias simples, até ideias abstratas. Mas Berkeley não acredita na ideia abstrata, ele é um nominalista: cada ideia é uma ideia de uma coisa individual, há a ideia do cavalo preto, do cavalo velho, do cavalo arisco, mas não há a ideia de cavalo[iii]; há apenas o nome cavalo, uma palavra. Se um objeto é uma série de sensações particulares, essas percepções indicam a ideia de que tenho uma palavra que garante o universal, inexistente no mundo material. A palavra é uma convenção prática que destaca nas sensações series coerentes permanentes, conforme Lucas.


[i] Pegando vídeos introdutórios para relembrar. Canal https://www.youtube.com/@FilosofiaEspiral. Vídeos preparatórios para o vestibular da UFPR. Recordar (sic relembrar) é viver.

[ii] Seria a ideia complexa a coisa em si e as ideias simples fenômenos?

[iii] A cavalidade: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2014/02/cavalidade.html, que coisa mais engraçada essa defesa da essência... 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Aufbau

Reavaliar leituras estereotipadas do Aufbau visando mostrar que se trata mais de um projeto lógico-linguístico do que somente epistemológico.[i]

O Aufbau[ii] tinha por fim lançar as bases para a construção da ciência unificada sobre um sistema lógico (linguístico)-epistemológico (psicológico) de conceitos (objetos) visando a redução de cognições umas às outras por uma linguagem fenomenalista com a certeza do imediatamente dado na experiência, mais certo que as coisas materiais.

Tentando desintrincar o lógico-psicológico, Pizzutti e Liston argumentam que as cognições básicas seriam derivadas não dos dados dos sentidos, mas metodologicamente tidas com válidas. O próprio Carnap afirmara que a epistemologia era de base metodológica visando justificar as cognições relacionadas. Assim, a premissa do Aufbau é de ordenação lógica dos conceitos, visando o sistema construcional, mas que teria um base auto psicológica, na medida em que essa ordenação também dependeria do conhecimento dos objetos inferiores, trazendo uma primazia epistêmica.

Conforme citações de Carnap, o sistema construcional é baseado em conceitos sobre conceitos e transitivo, ou seja, os conceitos superiores podem ser reduzidos a enunciados sobre os fundamentais, etc. É fundado na lógica e teoria dos tipos do Principia Mathematica, ou seja, conforme os autores, projeto lógico-linguístico. Haveria quatro domínios base para construção dos conceitos das ciências empíricas em um único sistema:

i.  Auto psicológico: formam a base do sistema de reconstrução racional do conhecimento pela sua redutibilidade lógica e têm primazia epistêmica. São os objetos do mundo subjetivo do sujeito.

ii. Físico: se baseiam nos anteriores para construir os objetos do mundo da física. Se reduzem pela percepção.

iii. Hetero psicológico: outras mentes e sujeitos dotados de consciência. Se reduzem por meio da externalização dos estados psicológicos (comportamento).

 iv. Cultural: mundo dos objetos culturais. Se reduzem através de manifestações psicológicas e suas documentações físicas.

Se a base foi auto psicológica em função da base lógica construcional e epistêmica e por possuir poucos objetos básicos, envolveu dificuldades:

1. Aparente solipsismo, mas que teria apenas essa forma pois trata-se de um solipsismo metodológico e não somente experiências particulares de um indivíduo.

2. Se a base subjetiva permitiria objetividade e, segundo Carnap, sim, por propriedades estruturais análogas a todos os sujeitos e que perpassam qualquer fluxo de experiência.

3. A base formada por percepções, que são experiências elementares não sujeitas a análise, seria superada por meio da descrição das relações das propriedades individuais das experiências, num processo de quase-análise.

A partir desses pontos Carnap estabelece como sustentação das relações o reconhecimento de similaridade, comparando a imagem memorética de duas percepções para considerá-las semelhantes e construir o domínio auto psicológico subindo para os outros níveis.

Pizzutti e Liston mostram que as críticas de Quine e outros foram enviesadas e criaram uma visão caricatural do movimento de Viena. Para Quine, Carnap traria um empirismo clássico seguindo a lógica de Frege e Russell, ou seja, uma versão ingênua de empirismo fundacionista e reducionismo fenomenalista. Segundo Quine, teria havido fracasso na busca pelos fundamentos da matemática, ou seja, no logicismo, dentro do campo conceitual das ciências exatas, de um significado teórico.

Entretanto, haveria o campo doutrinal nas ciências naturais, reduzindo o significado à experiencia sensorial e daí, a verdade do conhecimento através de leis. O pai do projeto era Russell e sua proposta de dados dos sentidos como construto lógico do mundo exterior que, segundo Quine, teria quase obtido êxito por Carnap no Aufbau, mas a busca de uma certeza cartesiana teria fracassado via experiência imediata.

Segundo o próprio Carnap, uma base fiscalista seria mais interessante do ponto de vista científico, entretanto sua escolha foi pela ordenação auto psicológica privilegiando o aspecto epistemológico na esteira do realismo, idealismo e fenomenalismo e formação de uma base convencional.

Na visão de Carnap, a epistemologia, ao mesmo tempo em que justifica o conhecimento, é relativa porque relaciona cognições. No caso do Aufbau, a construção do sistema é ordenada pelo conhecimento partindo dos dados dos sentidos e cognições pressupostas como válidas. Mas a condição suficiente do sistema construcional é lógica e só metodologicamente é feita a análise epistemológica. A reconstrução racional é de inferência lógica partindo de cada um dos constituintes das experiências que podem ser epistemicamente independentes, mas a análise epistemológica para ser válida, deve permitir uma redução das cognições. Conforme os autores:

No projeto de sistemas construcionais de modo geral, a análise lógica é condição suficiente para construir um sistema, a análise epistemológica é condição necessária se o sistema proposto deve refletir, além de uma ordenação lógica, uma ordenação epistemológica do conhecimento.

Ao tratar do sistema, os autores acreditam que o Aufbau é fundacionista, mas não da maneira vista por Quine, qual seja, de que Carnap teria assumido o reducionismo como dogma da tradição empirista, isto é, a verdade “cartesiana” seria dada pela tradução do discurso significativo na linguagem dos dados dos sentidos, constatado diretamente da experiência. Na visão de Pizzutti e Liston, o sistema de Carnap é fundacionista com o domínio auto psicológico das percepções e enunciados fenomenalistas baseados em crenças básicas justificadas por si (irrevisáveis) e construcional pois permite a redução dos objetos do conhecimento científico à sua base, pela primazia epistêmica. Entretanto, se há esse justificacionismo epistemológico por enunciados básicos autoevidentes, ele não é infalível, tal como ocorre em Descartes, mas segue uma razão metodológica e, por isso, escolhida convencionalmente e substituível.

Por fim, os autores reforçam que, no Aufbau, o “projeto é guiado por uma reconstrução racional do conhecimento científico cuja base é uma ordenação lógica com elementos psicológicos” e que não está comprometido com a análise epistêmica do conhecimento.  Eles tentaram defender a tese de que Carnap não é dogmático por defender o convencionalismo e a tolerância linguística, desde que explicitada a clareza das regras o invés de argumentos filosóficos. Segundo ele, em lógica não há moral.


[i] Pedro Henrique Nogueira Pizzutti e Gelson Liston. O PROJETO LÓGICO-LINGUÍSTICO E EPISTEMOLÓGICO DO AUFBAU DE RUDOLF CARNAP. Na Revista Problemata, acessado em 10/02/2021 pelo link https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/problemata/article/view/44612/29117. Sem a marcação de em qual obra de cada autor está cada argumento, apenas uma tentativa de expor a visão panorâmica da discussão.

[ii] The logical structure of the world. Aufbau = construção.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Graus de autoevidência*

Russell inicia dizendo que geralmente todas nossas crenças são capazes de prova por alguma razão ou mesmo outra crença, embora isso não ocorra conscientemente. Porém, ao subir na escala das razões, questionando-as, chegaremos a princípios gerais evidentes e não dedutíveis, ao nível da indução, e princípios lógicos não demonstráveis. Russell ressalta que até proposições aritméticas simples, mesmo que deduzidas, têm tanta evidência quanto princípios lógicos e os princípios éticos como: "we ought to pursue what is good”, embora esses últimos mais questionáveis.
Russell diz que, ao comparar princípios gerais com casos particulares, os últimos são mais evidentes, como no caso de uma rosa que estamos vendo, não podemos dizer que é e não é vermelha[i], excetuando-se aí os casos que usam abstração. Somam-se aos princípios gerais as verdades autoevidentes diretamente derivadas da sensação, chamadas por Russell de verdades da percepção e sobre as quais recaem julgamentos da percepção, embora não verdadeiros ou falsos. São verdades obtidas dos dados-dos-sentidos, porém não se pode dizer de uma amostra de cor que é verdadeira ou falsa, ele simplesmente existe.
Há, então, um julgamento da existência dos dados-dos-sentidos e outro que o analisa, ambos considerados por Russell verdades autoevidentes. No segundo caso, dados-dos-sentidos têm constituintes como um pedaço de vermelho que é redondo e nossos julgamentos revelam essas relações. Outro julgamento intuitivo abordado por Russell é a memória, a qual coloca na frente de nossa mente um objeto que remete ao passado trazendo todo o conhecimento do que vivenciamos. Russell comenta que os julgamentos da memória dependem do quão recente foram nossas experiências: as mais recentes mais vívidas, porém as mais antigas não nos trazem uma certeza evidente. Ou seja, há graus de evidência e fidedignidade do que apreendemos pela memória.
Ele enfatiza essa característica da autoevidência, que são os graus, desde os mais altos como verdades da percepção e princípios lógicos, passando pelo princípio da indução até chegar à variação da memória e julgamentos éticos e estéticos. Assim, Russell ressalta a importância dos graus de autoevidência na teoria do conhecimento, pois, se proposições podem ter graus de evidência sem serem verdadeiras, onde houver um conflito entre verdade e evidência, as proposições mais autoevidentes devem ser mantidas. Por fim, Russell diz que a noção de autoevidência varia entre a verdade (alto grau) e a presunção (baixo grau) e desenvolverá tal conceito associado ao conhecimento e o erro, porém antes investigará a natureza da verdade.




* Bertrand Russell, Problems of Philosophy. ON INTUITIVE KNOWLEDGE. Acessado em 3/7/2019: http://www.ditext.com/russell/rus11.html. Ver o seguinte fichamento e os anteriores: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2019/07/o-conhecimento-priori-lida-com-relacoes.html.
[i] O caminho natural é de particular ao geral, ou seja, é indutivo!