domingo, 24 de outubro de 2021

Dataficação da vida

Apresenta esferas de dataficação da vida e suas relações com os bios aristotélico e a comunicação, área do autor[i]

Lemos mostra que a digitalização, que se inicia na segunda metade do século XX, é atualmente absorvida pela dataficação, ou seja, atividades como criar um website ou transformar um livro impresso em e-book estão, hoje, inseridas no Big Data e Machine Learning. Conforme ele diz: “é um processo de tradução da vida em dados digitais rastreáveis, quantificáveis, analisáveis, performativos”, que permite interferir nos mais diversos domínios.

Baseada no culto aos números, a dataficação é impulsionada pelas redes sociais, computação em nuvem e os algoritmos, que permitem a projeção de cenários, indo além de mera conversão do analógico em digital. Trata-se de coletar, processar e tratar dados para realizar predições, como, por exemplo, quando aquele livro digitalizado é lido, tem-se a geração de dados sobre velocidade de leitura, destaque de citações, etc., no que Lemos caracteriza de performatividade, isto é, com base no comportamento fazem-se inferências e se geram recomendações. Então, os modelos algorítmicos surgem do processo inicial de digitalização dos dados, seguido por sua performatividade.

Dataficação da vida social na sociedade de plataformas. É pela fusão da dataficação com plataformas que possuem infraestrutura para disponibilização de aplicativos, tratamento do fluxo de dados e processamento algorítmico de inteligência de dados que entramos na fase do capitalismo de dados ou de vigilância. A vida social dataficada tem seus dados rastreados de forma generalizada se expandindo em todas as áreas, permitindo monitoramento de redes sociais, vigilância policial, entre outras, centralizados na operação de cinco megaplataformas.

Essa plataformização da sociedade se expressa na cultura dos aplicativos e visa, através de soluções inovadoras, resolver qualquer problema cotidiano[ii] pelo engajamento de seus usuários e integração com dispositivos como telefones, carros e eletrodomésticos.

Dataficação da natureza. Entretanto, para serem produzidos e operarem, dispositivos e infraestruturas de datacenters requerem da natureza minério e energia agravando a crise climática do Antropoceno por uma extração climática. É um ponto que Heidegger já havia levantado sobre a técnica moderna de desafiar a natureza exigindo energia de ser extraída e armazenada. Lemos fala da “Ge-stell”, esse dispositivo que a ciência usa para tomar a natureza como reservatório e oriundo do paradigma de ciência moderna do século XVII, quando o homem se vê mestre da natureza, isso se constituindo destino, mas perigo, já que acompanhado de uma intervenção livre da natureza[iii].

Com a dataficação da vida, essa provocação passa à tradução do mundo em dados digitais e mostrando que a computação de nuvem traz consequências físicas na retirada de matéria e energia, além da produção de lixo eletrônico[iv], com implicações éticas e políticas planetárias.

Dataficação do conhecimento. Depois de tratar das relações sociais e naturais, Lemos traz a dataficação como produção de conhecimento na medida que é uma tradução digital do mundo e que permite simular objetos e ações pela inteligência artificial (IA). É uma nova maneira de gerir a vida do planeta de forma hegemônica que indica uma transparência perfeita.

Com o espalhamento em todas as áreas da ciência pelo avanço de Big Data e IA, a dataficação marca uma virada epistemológica na leitura do mundo, mas que vê a análise de máquina neutra e eficiente. Isso porque os dados são coletados como se fossem brutos e os algoritmos como racionais, levando a preocupações sobre métodos e procedimentos. O culto aos algoritmos cria uma algocracia epistocrática (um poder tecnocrático na mão de especialistas) que, edificada na suposta neutralidade algorítmica, permitiria ler o grande livro da natureza, conforme Newton postulou no XVII.

Bios, comunicação e dataficação da vida. Bem, aqui Lemos correlaciona a dataficação com os bios propostos por Aristóteles: vida contemplativa, vida prazerosa e vida política, conjugado com o quarto bios proposto por Muniz Sodré de vida midiatizada associada à tecnologia, que estaria relacionado ao quarto bios aristotélico do comércio e, agora, associado ao capital. Para Sodré, informa Lemos, com as tecnologias virtuais há uma nova subjetividade associada a esse bios na esfera dos negócios e por meio da técnica digital. Segundo Lemos, o motor desse quarto bios é a dataficação da vida que corresponderia a uma midiatização profunda.

Entretanto, enfatiza Lemos, a dataficação perpassa todos os bios, mas pelo modo da comunicação[v] e não se confundindo com a mídia. Ele continua argumentando que a comunicação passa pelo sujeito humano, sua existência e com uma característica eudaimônica e de mediação, de construção de subjetividade e pelo diálogo. Ou seja, se não é um bios, constitui os quatro bios na dataficação.

Por fim, Lemos alerta que novas pesquisas devem procurar desvelar os processos de dataficação da vida que, para ele, se destaca na comunicação, já que ela é transversal aos bios aristotélicos e não só ao midiático. Isso se apercebe pelo marco da dataficação na cultura digital que, na trilha da digitalização, se dá nas áreas do conhecimento e sociabilidade, sem deixar de fora a demanda por recursos naturais.



[i] Resenha de Dataficação da vida, acesso: http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2021.2.39638, em 22/10/2021. André Lemos, Ufba, Salvador, BA, 2021.

[ii] Não exaustivamente, por meio de Google e Apple temos, entre outros: Waze, Uber, AirBnb, iFood, Zoom, Facebook, Twitter, WhatsApp, Tinder, LinkedIn, YouTube, Instagram, Spotify, Netflix, Google Home...

[iv] Lemos traz números alguns dos quais destacamos: i) a produção de dispositivos e o uso da internet é responsável por 3,7% das emissões de efeito estufa; ii) para movimentar a moeda virtual BitCoin, são necessários 22 milhões de toneladas de emissões de CO2 por ano, o que equivale a toda a pegada de carbono da Jordânia; iii) a energia consumida pelos datacenters do Facebook, só para uso dos brasileiros, equivale ao consumo de energia de mais de 15 mil residências no país pelo mesmo período; iv) para a produção e a veiculação de Fake News no YouTube sobre o vazamento de óleo no Nordeste brasileiro foram emitidos 1.42 MtCO2e (equivalentes ao derramamento de 3,30 barris de petróleo).

[v] Bios theoretikos: conhecimento pelos dados, bios apolautikos: subjetividades por meio das redes sociais e usos de aplicativos, bios politikos: circulação da palavra nas redes sociais, bios midiático: plataformização da sociedade como forma de uma midiatização estrutural.

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