domingo, 6 de março de 2016

Crítica da Razão Pura - Prefácio da Tradução Portuguesa*

Confidencia Kant que trabalhava em estudo sobre os limites da sensibilidade e da razão, buscando o segredo da metafísica até então não revelado e as bases em que se funda a representação, a nossa relação com o objeto. A crítica trataria apenas da consciência, tanto teórica quanto prática, simplesmente intelectual. E Kant pretendeu colocar a filosofia, que vinha de opiniões antagônicas, na via segura da ciência, como a lógica e a matemática consolidadas desde os gregos e a física se estabelecendo com Newton.
Descartes fundou o cogito a partir do qual se deduziriam todas as verdades, mas causado externamente por Deus. O discurso cartesiano usou do método matemático e da ciência da proporção, que passando por Leibniz e Wolff desembocou na perfeição racionalista. Então Hume afasta a noção de substância para propor um sujeito psicológico que faz associações de representações sensíveis. Saindo da razão suficiente para o hábito humiano a causalidade se reduz ao sujeito psicológico e criticando o eu, a substância e a existência, o ceticismo cria a noção de fenômeno (puro conteúdo da consciência) como objeto formal do conhecimento. Seriam elas, a filosofia dogmática onde cada sistema impõe verdades metafísicas e a filosofia cética que suprime a metafísica. Kant, então, funda a filosofia crítica que visava investigar o que o entendimento e a razão podem conhecer, independentemente da experiência. Se é da natureza humana buscar uma metafísica e conhecer a coisa em si, primeiro precisaremos delimitar o conhecimento puro, a priori, que garanta a universalidade do saber.
Assim como a nova ciência da natureza questiona a natureza, força-a a dar respostas e não permanece em uma atitude passiva de contemplação, Kant, pela revolução copernicana na filosofia pretende também fazer com que possamos nos guiar pela nossa natureza ante o objeto. Além de um saber a posteriori dado pela experiência, haveria um saber a priori que é a estrutura do próprio sujeito que torna possível aquela experiência. O conhecimento, por um lado, é extraído da experiência traduzindo-se em juízos sintéticos (particulares e contingentes) e juízos analíticos que são análises de conceitos que já temos das coisas, da própria noção do sujeito e são a priori. Mas o a priori deve se voltar para o sujeito e as faculdades que possibilitam o conhecimento das coisas. O estudo do modo de conhecer os objetos, que é um modo a priori, é a filosofia transcendental. Nem experiência, nem análise, é conhecimento sintético a priori. A síntese vem da faculdade espontânea do entendimento e da sensibilidade que é intuitiva e permite acesso imediato aos dados. O objeto indeterminado da intuição é o fenômeno, dado como matéria a posteriori e como forma a priori, seja no nível da sensibilidade que fornece a representação, seja nível do entendimento que faz a síntese unificadora das representações do objeto. Então, compreendemos as coisas como aparecem, como fenômenos, mas a coisa não conhecida, que não aparece, podemos apenas pensá-la - é o conceito de númeno.
Sensibilidade. Possui espaço e tempo como formas a priori, não como conceitos, mas como intuições. São as formas originárias da experiência, formas cognitivas para construção da geometria (espaço) e da álgebra (tempo) e fundam os juízos sintéticos a priori. A Estética Transcendental trata do espaço que é realidade empírica [externa] - sem experiência o espaço não é nada; também trata do tempo que é condição interna para o pensar - o sujeito pensa a coisa em si sem espaço. Então, a construção de conceitos matemáticos (e físicos) são a partir das formas a priori da sensibilidade, mas as qualidades sensíveis são dadas pelas sensações.
Entendimento. Na Analítica Transcendental (primeira parte da Lógica Transcendental),  estudam-se os conceitos a priori que se unificam no ato de julgar. As categorias** permitem a síntese dos dados da intuição em um objeto e são formadas por um esquema pela imaginação, que permite associar o inteligível (categoria) ao sensível (fenômeno). As categorias fundam os juízos sintéticos a priori da física, já que todo conhecimento do real é sintético, mas limitados na sensibilidade por um uso imanente e não transcendente. E por isso a coisa em si é incognoscível, porque não temos uma intuição intelectual, embora ela seja suposta com fonte das impressões, que são enquadradas pelas formas a priori, espaço e tempo, da intuição sensível em fenômenos, inteligíveis pelas categorias, tornado-os objetos. A filosofia funda a ciência objetiva, mas a limita ao mundo fenomênico. E a metafísica?
RazãoNa Dialética Transcendental (segunda parte da Lógica Transcendental),  estuda-se o raciocínio, ato próprio da razão que liga os juízos em uma maior unidade possível. Subindo de condição em condição (já que os conhecimentos do entendimento são condicionados) se dirige ao incondicionado ou absoluto e busca-se a unidade total. O conceito próprio da razão é a ideia que não apresenta objeto nenhum nos sentidos e são três: alma, mundo e Deus***. Delas não temos conhecimento objetivo porque são transcendentes.
Se somente há conhecimentos a priori em matemática e física, a metafísica dogmática é impugnada, mas a razão pura admite outra metafísica, uma imanente, idealista temperada com o realismo das coisas em si. É o idealismo transcendental que distingue fenômeno e coisa em si. A coisa em si não é causa do fenômeno, mas condição da idealização dele, enquanto doadora de dados hiléticos. Entretanto, não podemos conhecê-la, já que não temos uma intuição não-sensível e não acessamos o mundo da transcendência. A especulação da razão no uso transcendental diz respeito a três objetos: a liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus. A coisa como fenômeno se submete às leis naturais, mas como coisa em si está subordinada a uma causalidade inteligível, a liberdade. Essa causalidade livre parte do homem e não está no campo do conhecimento (aqui salvam-se as ciências positivas), mas na razão prática que vai fundamentar a metafísica moral, e aí se pode falar da realidade da alma e de Deus (aqui salva-se o teísmo tradicional). Se Kant balançou entre idealismo absoluto e realismo com coisas em si, o movimento idealista que se segue traz a tona a intuição intelectual, eliminando a coisa em si e destacando o sujeito. O saber, então, é atribuído ao pensamento absoluto ou razão. Já a limitação neokantiana se volta para a Analítica transcendental compreendida como teoria da ciência. Até Heidegger que procura uma aprioridade fora do sujeito, será uma facticidade que é um funcionalismo, uma exegese do universal.
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* Alexandre Morujão. In: Crítica da Razão Pura - Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010.
** Não são propriedades das coisas como em Aristóteles, mas formas lógicas, funções do entendimento para unificar sujeito e predicado em um juízo, reduzindo as percepções à unidade de um objeto.
*** Ideia de alma: unidade absoluta do sujeito pensante (na metafísica wolffiana objeto da psicologia racional - aqui o cogito nada pode dizer a respeito da natureza da alma que não é objeto da intuição, ele apenas garante a unidade do conhecimento); ideia de mundo: unidade absoluta da experiência externa (na metafísica wolffiana objeto da cosmologia racional - ao falar do mundo cai-se nas antinomias, o uso dogmático da razão leva a uma ilusão transcendental que deve ser combatida por uma atitude crítica, evitando o convite ao ceticismo); ideia de Deus: unidade absoluta de todos os objetos do pensamento (na metafísica wolffiana objeto da teologia racional - nesse caso, as provas da existência de Deus transcendem os limites da experiência, a realidade objetiva do conceito de Deus não pode ser provada nem refutada).

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