Gehlen mostra o caminho da técnica que, em direção ao inorgânico, perde seu valor moral[i]
A técnica do inorgânico.
A análise de Gehlen, seguindo as linhas de Kapp e McLuhan, parte da capacidade
biológica humana de produzir instrumentos, da antropologia e do impacto da tecnologia
na cultura. Para ele, o homem carece de órgãos e instintos especializados de
adaptação ao ambiente e por isso deve transformar as condições naturais. Para
agir, o ser humano se serve de princípios como a substituição e fortalecimento
das capacidades biológicas por técnicas que são substitutivas, fortalecedoras e
facilitadoras.
A técnica, como a nossa capacidade de transformar a
natureza, faz parte da essência do homem e é esperta e improvável, como se pode
ver, por exemplo, com a invenção da roda e do fogo. Entretanto, como alavanca
de nossa cultura, ela substitui o orgânico pelo inorgânico, tanto nos
materiais, quanto na energia que substitui a força humana e animal. Isso porque,
salienta Gehlen pelo texto de Cupani, o inorgânico é mais fácil de conhecer
racionalmente e experimentalmente, características da ciência moderna e da
cosmovisão pragmático-positivista impulsionada pelo modo de produção
capitalista.
Técnica sobrenatural.
Gehlen também aborda a magia, tida como técnica sobrenatural, que foi usada
durante milênios para imputar regularidade e estabilidade ao ambiente, seja
intervindo na provocação de chuvas, fertilidade, entre outros. Dela se valiam
as comunidades antes da ciência, funcionando como um autônomo animado, isto é,
uma relação rítmica entre homem e cosmos, uma ressonância entre o homem e a
natureza, o periodismo dos fenômenos no qual a ação humana se inseria e tentava
intervir.
Então, magia e técnica visam facilitar a ação humana e
evoluem em uma lei progressiva que passa pelo estágio da ferramenta, depois da
máquina que dispensa energia humana, até o autômato, com processos
autorregulados. Todavia, neste caminho evolutivo que culmina nos tecnólogos
modernos, o trabalho é instintivo, posto que, dada a não especialização, o
homem deve aumentar o controle sobre a natureza como lei de sua existência. E
segue.
Cultura das máquinas.
Tudo isso, aliado à produção capitalista e ao credo iluminista, leva à “cultura
das máquinas” e a um intelectualismo, senão esoterismo, das ciências e das
artes que fogem do naturalismo através de um experimentalismo sem metafisica. É
uma experimentação incessante que se espalha pelas áreas chegando ao caráter
transitório das produções artísticas, científicas e arquitetônicas e a
indústria passa a viver a obsolescência das mercadorias. É o pensamento técnico
e social moderno que se pauta em cinco “modos”: requerimento ou demanda total,
efeitos preestabelecidos, mensuração padronizada, partes intercambiáveis e o
princípio da concentração nos efeitos.
Efeitos da tecnologia.
O resultado disso é prejudicial à nossa dimensão emotiva e moral que é
substituída pela abstração e pela dificuldade de compreender a complexidade
técnica que nos afasta do ambiente natural. Mas a atitude iluminista, que gerou
essa cultura industrial, estava baseada em ingredientes como a bondade natural,
o caminho racional para ser feliz ou a universalidade moral, que já não são
mais endossados. Até a Revolução Industrial, nosso contato com o mundo orgânico
trazia dependência das forças naturais. A partir dela, priorizamos o inorgânico
que não suscita um padrão moral fazendo com que, no auge do século XX,
tivéssemos perdido o senso de realidade e não fôssemos mais responsáveis pelo
que fazemos. Assim, na visão de Gehlen, a técnica ultrapassa a magia na
subjugação do natural, mas extrapolando qualquer norma moral traz consequências
negativas para nossa alma. Contudo, como bom conservador, o autor não aponta
soluções, segundo Cupani.
[i] Conforme Cupani, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. 3. ed. - Florianópolis: Editora da UFSC, 2016. Capítulo 2: Estudos Clássicos: Arnold Gehlen.
Mostrará Santiago Castro-Goméz, ao analisar Sloterdijk, que Gehlen se faz parte do movimento da antropologia filosófica que traz o homem como ser deficiente que, aí, cria seu mundo artificial por pura impossibilidade de sobrevivência no ambiente natural.
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