domingo, 11 de julho de 2021

Catálogo de autores da Filosofia da Tecnologia - primeira lista

Traremos resenhas de autores ligados à filosofia da tecnologia a partir das obras Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas, organizada pelo Jelson Oliveira a partir de textos da ANPOF (Caxias do Sul, RS: Educs, 2020) e Filosofia da tecnologia: um convite, organizado por Cupani (Florianópolis: Editora da UFSC, 2016).

Da primeira obra, foram analisados seis autores até agora: Gunther Anders, Juan David García Bacca, Albert Borgmann, Mario Bunge, Georges Canguilhem e Gilles Deleuze. Da segunda, trata-se de Ortega y Gasset, Heidegger, Arnold Gehlen, Simondon e Lewis Mumford. São visões panorâmicas e delas destacamos o que mais nos chamou a atenção até agora.

Filosofia da Tecnologia: seus autores e seus problemas.

Gunther Anders traz uma visão antropológica de um ser humano sem mundo, que nasce sem um lugar e que esse deve ser construído pela técnica misturando antropogênese e tecnogênese. Mas, da evolução técnica para a tecnologia, podemos acabar em um mundo sem ser humano, dados os exemplos de usos perversos do conhecimento que podem juntar niilismo e nossa aniquilação, isto é, seu conceito de aniilismo. Anders também aborda nossa obsolescência perante a tecnologia e a criação de uma Technature que nos torna objetos da técnica. Se caracterizado na vertente determinista e preocupado com a ontologia tecnológica, aponta que a criatividade pode ter um papel importante nesse cenário.

Juan David García Bacca. Em linhas gerais, nos parece que Bacca faz um elogio da técnica entendendo a realidade de modo tecnocêntrico e a superação do natural pelo artificial, que tudo transforma em artefatos. É como se a técnica trouxesse uma ordem artificial e humanizadora ao Universo, de acordo com os propósitos do homem. Relevante para ele é a criatividade, que é tratada como uma potência criadora com característica metafísica, um fim supremo.

Albert Borgmann é filiado a Heidegger com seu paradigma do dispositivo e olhar para a essência do tecnológico de um ponto de vista metafísico. Em sua análise, a tecnologia nos afasta da realidade e das questões essenciais, que são as práticas focais que usam a tecnologia como meio. Borgmann aponta problemas no pós-modernismo tecnológico que se caracteriza pela hipermodernidade do universo cibernético irreal e que deveria ser combatido por relações incorporadas, pela refutação do imediatismo e uma análise ética da internet e da quantidade de informação recebida. Mas é uma visão otimista que busca o equilíbrio na adoção tecnológica e que em um ponto se aproxima da visão cristã de engajamento comunitário e cuidado com o outro.

Mario Bunge tem uma visão otimista da tecnologia, como campo de conhecimento associado ao científico, metódico e controlado, para produção de artefatos eficientes a partir de recursos naturais e sociais e que se aperfeiçoa. Também contribuem criatividade e inovação, mas o conhecimento tecnológico, espalhado nas várias, transforma lei científica em enunciado prático. Enfatiza-se a tecnologia da informação, embora ele seja crítico da equiparação do cérebro com um computador. Vinculado à tradição iluminista, embora veja os excessos da tecnologia, não foca neles.

Georges Canguilhem. Aqui trata-se de um estudo de caso da técnica de gestação de fetos por máquinas, ectogênese, que, se sujeita a questões éticas, seria defendida por Canguilhem na linha de Descartes. Além disso, mostra o papel de retrovírus em tais experimentos, vírus que competem com o homem na hegemonia do planeta, mas muito pelo cultivo em populações humanas que os mantêm e transmitem. Por fim, a vida como experiência maquínica mostra que há uma continuidade entre a vida e o homem por meio da técnica.

Gilles Deleuze. Partindo dos conceitos deleuzianos, já que Deleuze não tem propriamente uma teoria sobre a técnica, há o ponto de vista ontológico pelo estatuto da diferença: “o Ser é unívoco e imanente à multiplicidade dos entes como diferença”. É a noção virtual-atual fundamental da diferença como devir, atualização do virtual dentro do campo imanente. Similarmente, a tecnologia não se esgota no tecnológico, posto que há a imanência técnica, um modo nosso de ser, epistêmico, que expressa uma multiplicidade tecnológica. É a técnica o campo de sentido que permite a compreensão tecnológica que tem uma produção planejada e outra impensada, diferencial. A tecnologia se aproxima da multiplicidade e a técnica da univocidade, mas numa relação imanente pois a técnica é unívoca como sentido de nossa época, expressada na multiplicidade dos entes tecnológicos.

Filosofia da tecnologia: um convite.

Ortega y Gasset fala de técnica e produção, trazendo o raciovitalismo em que a razão responde necessidades vitais por um ato de liberdade. Além disso, os atos técnicos superam a satisfação pela produção resultado do projeto que obtém o que não há, gerando uma sobre natureza. Porém, para ele, visando o viver bem, produzimos o supérfluo e vamos progredindo de acordo com circunstâncias, já que a vida não é dada, é um constante problema onde o homem está na situação de técnico. Ortega y Gasset faz uma distinção em épocas, partindo dos primórdios onde as invenções se dão por acaso, depois na Grécia, Roma e Idade Média, há a técnica dos artesões e produção de instrumentos até o século XX, onde a técnica já não é natural e predomina o império das máquinas. É aí que ele faz uma crítica dizendo que a plenitude tecnológica pode levar ao vazio existencial.

Heidegger faz uma passagem da técnica tradicional para a moderna. Na primeira, há noções gregas como o telos (finalidade) que faz com que uma coisa surja, além da noção irrefletida de causa e efeito, ou a poiesis (produção) que traz à presença algo que há ocorre na physis (natureza). Já na segunda, desafiamos a natureza para que ela se torne disponível ao homem. Se os antigos cuidavam da natureza, agora a técnica tem por objetivo desafiá-la para que forneça algo para o homem. Nessa, até o homem deve ficar disponível, mas, conforme destaca Cupani, para Heidegger ainda haveria uma liberdade de resistência. Mas, as teses metafísicas e linguagem obscura do autor dificultam a nossa compreensão.

Arnold Gehlen mostra, de um ponto de vista antropológico, que nos valemos das técnicas para transformar a natureza e isso fazendo parte de nossa essência, já que carecemos de órgãos e instintos de adaptação ao ambiente. Contudo, o caminho da técnica é de substituir o orgânico pelo inorgânico, que é mais fácil de conhecer racionalmente e experimentalmente e em linha com o modo de produção capitalista. Ele mostra que há, também, uma técnica sobrenatural, a magia que, junto com a técnica, visam facilitar a ação humana e evoluem da ferramenta para a máquina, que dispensa energia humana, até o autômato, com processos autorregulados. Há, nesse caminho iluminista, uma cultura das máquinas e que leva a indústria a viver da obsolescência das mercadorias e tem como efeitos um prejuízo à nossa dimensão emotiva pois, até a Revolução Industrial, nosso contato com o mundo orgânico trazia dependência das forças naturais e, depois dela, a prioridade do inorgânico  não suscita um padrão moral que traz consequências negativas para nossa alma. Contudo, como bom conservador, o autor não aponta soluções, segundo Cupani.

Simondon trata da gênese do objeto técnico que evolui do abstrato ao concreto se aperfeiçoando, do artesanal e instável ao industrial, mantendo como essência a técnica. Quando concreto, se torna independente e se aproxima do objeto natural, todo esse processo mostrado pela cultura técnica que esquematiza o funcionamento dos objetos. Ele enumera três níveis no mundo técnico: elementar, quando o avanço não ameaça hábitos tradicionais, a era da termodinâmica e por fim a era da informação que regula e estabiliza o mundo. Para ele, a evolução técnica é análoga a de um ser vivo onde ocorre a criação de um meio para o objeto. Porém, a filosofia deve tentar compreender a índole dos objetos técnicos por meio de um ensino de iniciação à técnica que forme pessoas capazes de entender a natureza das máquinas e que permita superar nossa angústia atual frente às máquinas e compreender os objetos como portadores de informação, sua história, como resolveram problemas e como o homem foi estabelecendo uma relação prática com o mundo.

Lewis Mumford trata da mecanização, que é um ritmo da máquina que nos afasta do mundo real por meio de abstrações e é favorecida pela associação entre a técnica e o capitalismo, porém mais em proveito particular. Nas etapas do desenvolvimento tecnológico que ele enumera, passamos inicialmente pelas invenções mecânicas que nos levam a deixarmos de ser o motor energético e enriquecem nossa vida, para um período da indústria inorgânica baseada em carvão e ferro que degrada a vida humana pela exploração e depauperação das pessoas. Há então uma mudança axiológica que traz aceleração do tempo em busca de ganho para chegarmos no uso da eletricidade e ligas metálicas que, entre conquistas, problemas e compensações, suscita a questão do papel da máquina no melhoramento da existência humana. Para Mumford, a máquina é o processo tecnológico como um todo, pela nossa mente permitindo a criação de artefatos, desde o surgimento da civilização, mas que concentra poder e dominação. Pois que é o mito da máquina, então, que nos conduz a uma megamáquina constituída de seres humanos e o impulso obsessivo de controlar natureza que pode nos eliminar. Diante disso, precisamos de um modelo diferente de vida para superar essa condição derivado não das máquinas, mas dos organismos vivos e dos complexos orgânicos (ecossistemas).

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