Acerca da conceituação dualista e problemas[i]
O aristotélico Tomás de Aquino entendia a
mente como algo que nos diferenciava dos animais, já que nos permitiria fazer
abstrações e uso da vontade para controlar os apetites. Na modernidade, Descartes
introduziu grande mudança na concepção de mente, pois passou a valorizar a
introspecção, que já havia sido abordada por Agostinho, mil anos antes. Poderíamos
olhar para dentro de nossa mente e enxergar visões, ter dores, prazeres, enfim,
a experiência humana não seria reduzida nem ao material nem ao racional.
A sensação era tomada como algo da ordem do mental, um tipo
de sensação autêntica além do corpo mecânico. Nos animais faltaria a
consciência para, por exemplo, sentir uma dor consciente. O mundo, então, estimularia um
corpo e ativaria estímulos interpretados pelo aparelho cognitivo animal ou por uma
câmera de vídeo, conforme exemplo de Vitor Lima. Mas a câmera “sente”?
Evidentemente não, então agrega-se uma consciência e passamos para uma sensação
consciente nos humanos, mas não nos animais. Houve um deslocamento da
racionalidade da mente para a consciência e esse aspecto continua em
perspectiva até hoje, haja visto que é exatamente o que falta para a
inteligência artificial. Contudo, resumindo o argumento, é a consciência que
nos distingue dos animais, segundo Descartes[ii].
Relembremos, a partir da dúvida
hiperbólica Descartes chega no "eu penso", mas o que é esse “eu” que existe, que
pensa? Nesse sentido, retomando a anatomia da alma, o “eu” pensa, nega, quer, imagina
e sente. Vitor ressalta que o pensamento cartesiano abrange intelecto, volição,
sensação e emoção, quer dizer, tudo o que está dentro de nós (introspectivamente
falando) e do que somos conscientes.
Lembremos que o intelecto de Aquino apreendia algo não
complexo e que algo é ou não outra coisa, pela composição ou divisão. Em
Descartes, tudo vira atos de pensamento, seja pela concepção de ideias, como um
ato intelectual, pensar ideias claras e distintas, seja pela articulação de
ideias como ato volitivo, que é compor ideias (“2 + 2 = 4 é verdadeiro”).
Então, há o intelecto como faculdade de conhecer e a vontade como faculdade de
escolher. É a vontade que trata com a realidade, no âmbito da ação, da omissão
ou dúvida. Exceto percepções claras e distintas, das quais não se pode duvidar.
A ideia clara e distinta distintiva para Descartes
é o “penso, existo”, que é uma resposta para o cético que duvida que se possa
chegar ao conhecimento. Interessante notar o que Vitor reforça: quando Descartes
duvida de tudo, mesmo que ele duvide do pensamento, essa dúvida reforça o
pensamento, já que a dúvida é um pensamento. Aí a vontade precisa comprovar que
isso é verdadeiro.
Sobre o dualismo, Vitor mostra que, uma
que vez que compreendamos duas coisas, uma sem a outra, clara e distintamente,
elas são separadas, mesmo que seja por Deus. Se concebemos corpo e mente como
separados, então eles existem separadamente. Isso é dado na filosofia cartesiana
que considera nossa essência uma coisa pensante, não corporal. No limite, nosso
pensamento poderia ser transferido para algum outro lugar que não o cérebro. Seria possível
conceber o nosso pensamento executando em uma máquina.
Como contingentemente somos compostos por mente
e corpo, torna-se ponto vulnerável explicar como eles, com diferentes
naturezas, se comunicam. Esse ponto é que será questionado pela princesa Elizabeth
da Bohemia: como a alma, sendo pensante, pode determinar ações voluntarias?
Movimento requer contato físico e extensão, coisas que a alma não é, se
considerada imaterial.
Se há relação entre pensamento e cérebro,
e isso pode ser comprovado pela neurociência atualmente, não é possível ver
pensamentos no cérebro, só sinapses. Coisa material e coisa pensante tem atributos
opostos, uma tem lugar no espaço e a outra não, se uma se divide, a outra é indivisível,
para uma há leis físicas e para a outra há leis racionais e, por fim, uma se
conhece pelos sentidos e a outra pela introspecção. Os pensamentos, como a
ideia de beleza, existem mas não estão no cérebro, já diria Platão. O medo não
pode ser tocado, mas é percebido. Uma mão se mexe por um impulso nervoso
oriundo de alguma substância física, mas resta saber o que a originou, por
outro lado.
Eis a pertinência da pergunta da princesa,
como duas coisas quase opostas se relacionam? É o desafio do dualista, é o erro
de categoria tratado por Ryle. Descartes propôs que a interação se daria pela
glândula pineal que ainda está na esfera material, então a questão ficou sem resposta.
Mas sua grande contribuição é a conceituação da consciência, que nos atinge até
hoje.
[i] Conforme https://youtu.be/PBgONHORXZI, em 21/11/2024. Filosofia da
Mente: alma na Filosofia Moderna (Parte 1), canal Isto não é Filosofia.
Este curso explora o tema da mente, dividindo-se em três abordagens distintas:
histórica, problemática e temática. O objetivo é fornecer uma visão aprofundada
dos conceitos filosóficos que envolvem a mente, suas relações com o corpo, a
inteligência artificial e o livre-arbítrio. O Módulo 1 aborda o desenvolvimento
histórico da concepção de mente e alma, desde os filósofos antigos até o
pensamento contemporâneo, destacando a evolução das ideias ao longo dos
séculos. O Módulo 2 examina as questões problemáticas que surgem na relação
entre mente e cérebro, explorando as diferentes teorias que tentam explicar
essa relação, como o materialismo, o dualismo e o funcionalismo. Finalmente, no
Módulo 3, o curso adota uma abordagem temática, dividindo-se em dois tópicos
centrais: inteligência artificial e livre-arbítrio. Embora distintos, esses
temas são fundamentais para compreender os desafios filosóficos atuais. A parte
sobre inteligência artificial aborda as implicações da tecnologia no
entendimento da mente, enquanto o tema do livre-arbítrio explora as discussões
filosóficas sobre a autonomia humana. Ao todo, o curso conta com 23 aulas
distribuídas ao longo de 6 meses, proporcionando uma análise profunda e
abrangente dos debates filosóficos sobre a mente e suas implicações na era
moderna.
[ii] Porém, esse âmbito do mental, isto é, da consciência, só é acessível individualmente, como já tratamos aqui no espaço do blog em outros textos, por exemplo em “Haveria independência entre a mente e o comportamento?*” https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/02/haveria-independencia-entre-mente-e-o.html. Assim, o acesso direto é só de primeira pessoa e não há garantia do acesso a outras mentes, levantando um problema epistemológico.
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