sábado, 2 de novembro de 2024

Alma em conflito

Passemos por dois argumentos platônicos sobre a existência da alma[i]

Nosso tema aqui trata da dualidade corpo e alma e visa trazer aspectos da contribuição de Platão para esse debate, certamente uma primeira posição mais estruturante na Antiguidade. É um recorte sucinto para que tenhamos parte da opinião antiga em contraponto ao que temos tratado. Platão, se é um dualista, não é puritano a ponto de desprezar o corpo como um mal, que interferiria na pureza da alma[ii]. Na realidade o corpo não se opõe à alma, mas a tendencia, desviando-a de suas virtudes pelos vícios que deveriam ser superados pela atividade filosófica.

Mas o primeiro argumento platônico que queremos destacar, usado por Victor Lima, é o argumento dos contrários, que aparece no Fédon. Ocorre que, se o corpo é um entrave, dele nos livraríamos pela morte quando a alma estaria livre. É nesse ponto, segundo Araújo, que Platão lança mão do argumento, numa perspectiva ontológica diferente do viés ético que vínhamos comentando e que visa investigar um modo de ação que busque o bem.

A base do argumento socrático é que há uma relação de oposição em tudo o que existe e cuja chave de leitura se poderia compreender por processos de geração e corrupção dos seres. Algo é menor porque foi maior; do mais rápido se origina o mais lento e uma coisa é melhor se antes ela foi pior[iii]. Note-se que há um processo cíclico: de um contrário ao outro e, de novo, ao seu contrário, pois se assim não fosse um dos contrários se anularia. “Do estar vivo se gera o estar morto, e do estar morto se gera o estar vivo: que outra origem haverá para a vida?” (p. 122).

Na sequência Platão trata do argumento da anamnese, já que a alma sobrevive ao corpo, em uma nova vida corporificada ela terá conhecimentos anteriores que precisam ser recordados. E é interessante notar com Araujo que as reminiscências da alma acabando passando por um conhecimento pela via do sensível, assim suavizando o papel maléfico do corpo e enlaçando o sensível ao inteligível[iv].

Sobre a composição da alma, que faz parte do segundo argumento platônico que queremos destacar, Victor Lima satiriza o tema com a crença de que haveria uma polarização entre sermos, algumas vezes, irracionais em determinadas atitudes, ao invés de racionais. Porém, não é isso que Platão expressa. Uma tripartição da alma mostra que há uma racionalidade envolvida que pode optar por um vício ou uma virtude.

Pontuemos[v] que a alma é tema amplamente abordado por Platão[vi]. O Fédon é o diálogo que trata da morte de Sócrates e nele há uma defesa da eternidade da alma, da reminiscência, da afinidade da alma com o mundo das Ideias e tratando-a como indivisível e imortal. Já o princípio da tripartição da alma é apresentado na República e estabelece que uma mesma coisa não pode ter propriedades que sejam contrárias na mesma parte e ao mesmo tempo, por isso a divisão em razão, espírito e apetite. Cada parte da alma tem uma função específica, conforme argumenta Silva, seja buscando a verdade, a honra e o prazer. Uma alma tripartite aparece quando ela entra em contato com o corpo e deve lidar com seus desejos, dores e apetites. Isto é, dentro da alma há um conflito entre esses desejos.

Passa-se que há, por um lado, cálculo racional e, por outro, um impulso irracional. Mas o cálculo racional não é simplista em relação aos fins, ele leva em conta a noção de bem inerente da alma e oriunda de seu estado puro. Assim, visa orientar desejos aparentemente irreconciliáveis ao que é bom, pelas virtudes em oposição ao que é mais vantajoso e havendo que se afastar dos impulsos conflitantes. Por fim, pode-se notar que há um processo complexo de busca pelo bem na abordagem de Platão, onde a razão se integra com emoções e desejos tendo como norte uma vida harmoniosa.



[i] Com base em https://www.youtube.com/live/yrgT7en77Kg, Aula 2: A alma na Filosofia Antiga (Parte 1) - Curso Filosofia da Mente. Canal https://www.youtube.com/@istonaoefilosofia. Em 25/10/2024. Conforme, Victor Lima, alma é o que hoje podemos chamar, de certo modo, de mente.

[ii] Conforme https://www.anpof.org.br/periodicos, Portal de Periódicos da ANPOF. Revisa de Filosofia Argumentos. As perspectivas onto-epistemológica e ético-antropológica da dualidade corpo/alma, no Fédon, de Platão: https://www.anpof.org.br/periodicos/argumentos-revista-de-filosofia-ufc/leitura/675/24999. Acesso em 27/10/2024.

[iii] Idem, conforme as citações do Fédon, pg. 122.

[iv] No cabe trazer à tona o argumento detalhadamente, apenas marcamos os pontos principais que nos poderão ser uteis quando colocamos em perspectiva a uma abordagem moderna ou contemporânea.

[vi] Não trataremos dos diálogos Fedro, Timeu, Mênon e Leis, eles não são referidos por Vitor Lima. 

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