quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

O Antropoceno e a nossa visão de mundo

Sobre um tempo em que o ser humano deixa marcas geológicas em um planeta cuja imagem ele precisa rearticular[i]

O Antropoceno: uma inovação. A despeito do 34º Congresso Internacional de Geologia, em 2012, declarar o Antropoceno uma “possível” época geológica e, conforme ressalta Latour sobre o tamanho do peso desse tipo de decisão, já que colocaria uma marca da humanidade na geo-história, ainda assim, foi decretado o fim do Holoceno[ii]. Nesse sentido, depois de 11 mil anos de desenvolvimento da civilização, há um período novo de instabilidade[iii].

Certamente, continua Latour, a burocracia associada a tal decisão se deve a que a comunidade geológica precisa de um sinal geológico que seja medido pela estratigrafia, ou seja, seu reconhecimento nas rochas. Entretanto, não se discute o fato que o termo Antropoceno, cunhado por Crutzen no ano 2000[iv], já seja consenso nas pesquisas de mudanças climáticas.

Embora o Novo Regime Climático não tenha respaldo ainda na Geologia (depois de 2016, mas antes de 2019 quando foi chancelado[v]), Latour aponta para as contribuições do grupo liderado por Zalasiewicz a respeito dos temas das conferências: potências de agir, zona metamórfica, etc., e nossas pegadas começam a aparecer na base rochosa, nossa ação gera fenômenos em escala global e o dispêndio de energia da humanidade como um todo chega ao gasto energético de vulcões ou tsunamis, senão que nossa potência pode atingir a das placas tectônicas (nosso gasto por volta de 17 terawatts ainda ínfimo perto dos 130 mil oriundos da ação do sol).

Não obstante o citado na definição do termo, Latour recupera nossas “contribuições”[vi], enfatizando os efeitos dos sinais radioativos das bombas atômicas. Se antes queríamos dominar a natureza, agora trata-se de procurar nosso traço em suas ruínas. Importante ressaltar o fato de marcamos um tempo geológico a partir de uma contribuição de 100 a 200 anos, o que mostra o ritmo da transformação.

Mente et malleo. Porém, ressalta Latour, é justamente o Antropoceno, “cavilha de ouro” (golden spike), que pode se tornar o conceito filosófico que nos afastará da modernidade. Se a questão humana era parte dos estudos em ciências humanas, esse novo oximoro trata de colocar “Anthropo” no centro da “ciência natural” e da geologia, deixando para traz a área das humanidades que, as voltas com nossos valores, não viu o trabalho do martelo[vii].

E o termo, conforme continua ele, sendo mal compreendido, faz com que apressadamente se fundam as noções de Natureza e Cultura, em metamorfose capaz de petrificar o rosto humano ou antropomorfizar a natureza. A esse propósito Latour alude à revista Nature[viii] que, trazendo a “Era do humano”, não percebeu que se tratava exatamente do seu fim.

A ocasião ideal para desagregar as figuras do homem e da natureza. Retomando o tema anterior, Latour enfatiza que o Antropoceno não é capaz de reconciliar natureza e sociedade, mas que vem para desintegrar tais noções tão presentes até então. Pois quando a ação humana se funde com a geologia, tudo se mistura, pois nos misturamos aos ciclos do carbono e do nitrogênio, e às impressões de lavas em rochas se misturam plásticos.

O Antropoceno habilita a transposição da geografia física e da geografia humana tornando obsoleto um conceito como o de Natureza. Assim como não permite responsabilizar ninguém por ele, já que a humanidade como um todo não poderia atuar como um agente único, dotado de consistência moral ou política. E mesmo que se pudesse responsabilizar é possível já imaginar a grita em contrário. Entretanto, não se pode enumerar a pegada de carbono de cada um porque há povos distintos, há interesses diversos, enfim, uma miríade de hábitos e ações as mais contraditórias que nos impede de ser um todo unificado.

Sloterdijk ou a origem da imagem da esfera[ix]. Conforme argumenta Latour, para retirar o fardo que é para o humano carregar o Globo todo nas costas, convém recorrer ao conceito de esferas de Sloterdijk, como que capaz de imunizar e perpetuar a vida. É esse conceito de esfera, germinado na história da filosofia, que Sloterdijk usa para tematizar um envoltório que nos permite viver e respirar, que nos climatiza. Inclusive para criticar o Dasein de Heidegger, ele pergunta: para onde o Dasein é jogado no mundo, qual a composição do ar e temperatura de lá?

Segundo Sloterdijk, criou-se uma imagem de Globo que não se sustenta, se o Globo é belo, não se põe de pé. Ter uma visão global é sair da esfera e se expor ao mundo, quebrar o envoltório é destruir a camada de proteção que nos sustenta vivos. Envoltório frágil, mas que contém as condições climáticas que permitem nossa existência.

Conforme Latour, “oferecendo-nos a primeira filosofia que atende diretamente às exigências do Antropoceno”, Sloterdijk conceitua um Deus Esfera (Deus sive Sphaera)[x] que pode romper a cosmologia ocidental ao colocar a Terra no centro jogando Deus para a periferia. Ele mostra que há um bifocalismo a ser superado: local teocêntrico ou geocêntrico. No mais, pensar globalmente trazendo a reboque Deus nos impede ter de pensar historicamente e ficamos sem o tempo e o espaço...

A confusão entre a ciência e o globo. Da mesma maneira há, para Latour, duas visões de mundo científicas que não se reconciliam: a da Natureza (na natureza, centrada no cosmos) e a da Natureza no laboratório, como se uma descoberta científica pudesse traduzir a Natureza. Do mesmo modo que a imagem do Globo ou Deus cristão é o Globo platônico separado e perfeito, sem os efeitos da gravidade. Esse sim, se pode abarcar com a mão[xi], mas que aí não passaria de um globo de papel machê.

 Então, Segundo Latour, é pelo uso da esferologia de Solterdijk ou da história da ciência que conseguiremos escapar da maldição de Atlas, pelo entendimento que a noção de globo não inclui tudo o que está contido no mundo, o global é um modelo reduzido pois nunca se pode pensar globalmente sobre a Natureza ou Gaia.

Tyrrell versus Lovelock. Conforme Latour, ao tratar do Antropoceno, de Gaia ou do Globo, confundem-se as figuras de conexão com as de totalidade, mesmo entre os cientistas. Um exemplo que ele traz é o de Tyrrell que converte Gaia em algo superior que envolveria a Terra[xii]. Diante disso, Tyrrell postula que Lovelock não consegue provar que existe essa camada de proteção da Terra, tal como uma Providência. E aí seu erro, conforme indica Latour, de tomar o todo pelas partes.

A despeito do alerta de Lovelock e de sua hesitação em definir Gaia, ainda assim Tyrrell a toma por um ente todo-poderoso como que por uma visão teológica, talvez pela influência daquele conceito de Globo. Mesmo que Lovelock tenha conceituado uma versão profana de Gaia, não teleológica e que foge de um nível de conexão e outro de totalidade reguladora, Tyrrell é taxativo ao adotar o segundo ponto em prol da teoria da evolução, tirando qualquer possibilidade de os organismos também poderem interferir no meio.

Por mais que Lovelock enfatize não haver intenção oculta na autorregulação planetária, um neodarwinista como Tyrrell vê ali uma Teodiceia. Isso porque alguns cientistas se agarram à visão global de um superorganismo, ao invés de se mirarem nas conexões entre os seres. E o Antropoceno ensina que não há uma unificação em uma esfera terráquea e que a cosmologia do planeta azul como Globo deve ser superada. Se livrar da maldição de Atlas é ultrapassar a imagem da Esfera platônica sem história nem descontinuidade, a ideia ideal.

Os ciclos de realimentação não desenham um globo. Mas é tomando as potências de agir com um movimento em ciclos que se traça um caminho que rompe o desenho da esfera. E aqui Latour toca num ponto particularmente problemático que é o de como trazer essa noção de Antropoceno, tão distante, para o centro das atenções. Ainda que já tenham havido vários ciclos para superar a visão de Globo, como as observações de Keeling e as medições do ciclo do dióxido de carbono, o buraco na camada de ozônio ou os estudos de Carl Sagan sobre um possível inverno nuclear, é preciso que os sintamos, de fato, em nós mesmos. Isso quer dizer receber os efeitos do que praticamos, de nossa frágil condição climática, ou seja, desses ciclos que voltam a nós e nos sensibilizam (assim como os ciclos para parar de fumar, por exemplo, conforme cita Latour: a necessidade de sentir na pele, ou, nos pulmões...).

É por ciclos entrelaçados que a camada de Gaia se compõe, envoltório delicado das zonas críticas e que, não somente sente a nossa ação, como reage e é nesse momento que temos que ter nossos sensores ativados para não sermos negacionistas e identificarmos de que maneira as potências de agir estão conectadas.

Enfim, outro princípio de composição. Por mais que Gaia gere sinais de insatisfação, a partir do Antropoceno que destruiu qualquer sonho de união no cuidado com a Natureza, ela em si também não nos une como que nos chamando à ordem. Dada a complexidade do que se passa sob Gaia, nem mesmo a Ciência une, haja vista as pseudocontrovérsias lideradas pelos climatocéticos. Há, então, que se tecer uma universalidade, segundo Latour, pela construção de coletivos em uma multiplicidade de ações em torno de uma luta política.

Redesenhar o formato Natureza/Cultura em uma nova cosmologia, que é de um tempo pós-natural e pós-humano. Não se trata mais de questões ambientais, mas da redistribuição das potências de agir, maior que as paixões políticas que conhecemos.

Melancolia ou o fim do globo. Por fim, Latour relembra Melancolia, o filme, com a imagem de Melancolia, e não o planeta Terra, sendo Gaia, pois é aquela que devastará o que é demasiado humano. Enfim destruídos, haveremos de encontrar uma nova teologia geopolítica.



[i] Resenha da Quarta Conferência de Bruno Latour: O Antropoceno e a destruição (da imagem) do globo. Em LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu Editora / Ateliê de Humanidades Editorial, 2020. Como de costume, de maneira alguma visa exaurir a argumentação do autor, é um recorte das principais ideias abordadas.

[ii] Conforme https://www.infoescola.com/geologia/holoceno/: Na escala de tempo geológico, o Holoceno ou Holocênico é a época do Período Quaternário da Era Cenozoica do Eon Fanerozóico, que se iniciou há cerca de 11,5 mil anos e se estende até o presente, onde a humanidade se desenvolveu. O desenvolvimento da humanidade se deu principalmente graças ao clima mais ameno e estável. Os grupos nômades de caçadores-coletores passaram para uma população com casas fixas de mais de 6 bilhões de pessoas, que estão agrupadas em complexas organizações sociais com nacionalidades, culturas e modos de vida. Durante o Holoceno, o clima sofreu drásticas mudanças em relação à temperatura, chuva, nível médio do mar, entre outros aspectos. Indicadores climáticos mostraram que o El Niño também foi impactado pelas mudanças climáticas ocorridas no Holoceno, que podem ter sido geradas pela variação nos parâmetros orbitais. Neste mesmo período, também ocorreu a extinção em massa de diversos animais e vegetais, principalmente de grandes mamíferos, por volta de 9.000 a 13.000 anos atrás, ou seja, ao final da última glaciação, no limite Pleistoceno - Holoceno. Este grande evento pode estar relacionado a dois outros eventos que ocorreram na mesma época, sendo eles a mudança climática e a fixação dos povos humanos. A quantidade de espécies que estão entrando em extinção é superior a quantidade de novas espécies ou até mesmo de nascimento de animais e vegetais. Com todas estas mudanças que ocorreram e continuam a ocorrer, teve início uma nova corrente de pesquisa, na qual os pesquisadores propõem uma época nova, o Antropoceno. No entanto, para que esta nova época seja efetivamente reconhecida na tabela geológica é necessário que se tenha uma significância ou ocorrência global que marque o estratotipo globalmente, um golden Spike. Esta significância ou golden Spike é um ponto que marca o limite entre tempos geológicos diferentes, e o grande desafio está sendo encontrar este ponto que determina o início do Antropoceno para que esta nova nomenclatura seja aceita sem ressalvas pela comunidade científica da geologia mundial. Embora seja aceito que o homem seja o grande causador de algumas mudanças que estão ocorrendo na Terra, não se sabe precisar se estes impactos se iniciaram com o advento da agricultura ou da industrialização, se estão relacionados ao crescimento da população e ao uso de recursos naturais. No final do século XIX e início do século XX, a sociedade deixou de ser industrial e passou a ser uma sociedade de informação, com um grande aumento da população global e consequente consumo de recursos naturais, modificando ainda mais o planeta Terra.

[iii] Há controvérsias se por volta de 1800, no começo da revolução industrial ou no pós 2ª Guerra, graças à radioatividade artificial. Um pouco disso na nota anterior.

[iv] Tradução do texto seminal publicado por Paul Crutzen & Eugene Stoermer em 2000 na Global Change Newsletter, 41:17-18 https://revistas.uminho.pt/index.php/anthropocenica/article/view/3095/2989. Sucinto, porém mostra o estrago que temos feito ao planeta.

[vi] São: "a modificação por barragens da sedimentação dos rios; mudanças na acidez dos oceanos; a introdução de produtos químicos anteriormente desconhecidos; as ruínas compostas de vastas infraestruturas que não se parecem em nada com as anteriores; as mudanças na taxa e na natureza da erosão; as variações no ciclo do nitrogênio; o aumento contínuo do CO2 atmosférico; sem esquecer o desaparecimento abrupto de espécies vivas durante o que os biólogos se resignam chamar de "sexta extinção" p. 187, 188. Muitos dos pontos tratados por Crutzen e Stoermer.

[vii] Nossa resenha segue a fina ironia latouriana.

[viii] Referência de Latour à ilustração de Jessica Fortner https://www.nature.com/articles/519144a.

[xi] Aqui ressaltando sua constante referência a Atlas, nesses tópicos: “Na mitologia da Grécia antiga, Atlas era um gigante condenado a carregar o universo nas costas”, conforme o artigo acessado em 16/01/2022:  https://escola.britannica.com.br/artigo/Atlas/480699.

[xii] Latour uso o livro “On Gaia: A Critical Investigation of the Relationship Between Life and Earth” de Tyrrell como base da argumentação do equivocado professor.

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