Sobre um tempo em que o
ser humano deixa marcas geológicas em um planeta cuja imagem ele precisa
rearticular[i]
O Antropoceno: uma inovação.
A despeito do 34º Congresso Internacional de Geologia, em 2012, declarar o
Antropoceno uma “possível” época geológica e, conforme ressalta Latour sobre o
tamanho do peso desse tipo de decisão, já que colocaria uma marca da humanidade
na geo-história, ainda assim, foi decretado o fim do Holoceno[ii]. Nesse sentido, depois de
11 mil anos de desenvolvimento da civilização, há um período novo de
instabilidade[iii].
Certamente, continua Latour, a burocracia
associada a tal decisão se deve a que a comunidade geológica precisa de um
sinal geológico que seja medido pela estratigrafia, ou seja, seu reconhecimento
nas rochas. Entretanto, não se discute o fato que o termo Antropoceno, cunhado
por Crutzen no ano 2000[iv], já seja consenso nas pesquisas
de mudanças climáticas.
Embora o Novo Regime Climático não
tenha respaldo ainda na Geologia (depois de 2016, mas antes de 2019 quando foi
chancelado[v]), Latour aponta para as
contribuições do grupo liderado por Zalasiewicz a respeito dos temas das
conferências: potências de agir, zona metamórfica, etc., e nossas pegadas
começam a aparecer na base rochosa, nossa ação gera fenômenos em escala global
e o dispêndio de energia da humanidade como um todo chega ao gasto energético
de vulcões ou tsunamis, senão que nossa potência pode atingir a das placas
tectônicas (nosso gasto por volta de 17 terawatts ainda ínfimo perto dos 130
mil oriundos da ação do sol).
Não obstante o citado na definição do
termo, Latour recupera nossas “contribuições”[vi], enfatizando os efeitos
dos sinais radioativos das bombas atômicas. Se antes queríamos dominar a
natureza, agora trata-se de procurar nosso traço em suas ruínas. Importante ressaltar
o fato de marcamos um tempo geológico a partir de uma contribuição de 100 a 200
anos, o que mostra o ritmo da transformação.
Mente et malleo.
Porém, ressalta Latour, é justamente o Antropoceno, “cavilha de ouro” (golden spike),
que pode se tornar o conceito filosófico que nos afastará da modernidade. Se a
questão humana era parte dos estudos em ciências humanas, esse novo oximoro
trata de colocar “Anthropo” no centro da “ciência natural” e da geologia, deixando
para traz a área das humanidades que, as voltas com nossos valores, não viu o
trabalho do martelo[vii].
E o termo, conforme continua ele, sendo
mal compreendido, faz com que apressadamente se fundam as noções de Natureza e
Cultura, em metamorfose capaz de petrificar o rosto humano ou antropomorfizar a
natureza. A esse propósito Latour alude à revista Nature[viii] que, trazendo a “Era do
humano”, não percebeu que se tratava exatamente do seu fim.
A ocasião ideal para desagregar as figuras
do homem e da natureza. Retomando o tema anterior, Latour
enfatiza que o Antropoceno não é capaz de reconciliar natureza e sociedade, mas
que vem para desintegrar tais noções tão presentes até então. Pois quando a ação
humana se funde com a geologia, tudo se mistura, pois nos misturamos aos ciclos
do carbono e do nitrogênio, e às impressões de lavas em rochas se misturam
plásticos.
O Antropoceno habilita a transposição da
geografia física e da geografia humana tornando obsoleto um conceito como o de Natureza.
Assim como não permite responsabilizar ninguém por ele, já que a humanidade
como um todo não poderia atuar como um agente único, dotado de consistência
moral ou política. E mesmo que se pudesse responsabilizar é possível já
imaginar a grita em contrário. Entretanto, não se pode enumerar a pegada de
carbono de cada um porque há povos distintos, há interesses diversos, enfim,
uma miríade de hábitos e ações as mais contraditórias que nos impede de ser um
todo unificado.
Sloterdijk ou a origem da imagem da esfera[ix].
Conforme argumenta Latour, para retirar o fardo que é para o humano carregar o Globo
todo nas costas, convém recorrer ao conceito de esferas de Sloterdijk, como que
capaz de imunizar e perpetuar a vida. É esse conceito de esfera, germinado na
história da filosofia, que Sloterdijk usa para tematizar um envoltório que nos
permite viver e respirar, que nos climatiza. Inclusive para criticar o Dasein
de Heidegger, ele pergunta: para onde o Dasein é jogado no mundo, qual a
composição do ar e temperatura de lá?
Segundo Sloterdijk, criou-se uma imagem de
Globo que não se sustenta, se o Globo é belo, não se põe de pé. Ter uma visão
global é sair da esfera e se expor ao mundo, quebrar o envoltório é destruir a
camada de proteção que nos sustenta vivos. Envoltório frágil, mas que contém as
condições climáticas que permitem nossa existência.
Conforme Latour, “oferecendo-nos a
primeira filosofia que atende diretamente às exigências do Antropoceno”, Sloterdijk
conceitua um Deus Esfera (Deus sive Sphaera)[x] que pode romper a
cosmologia ocidental ao colocar a Terra no centro jogando Deus para a periferia.
Ele mostra que há um bifocalismo a ser superado: local teocêntrico ou
geocêntrico. No mais, pensar globalmente trazendo a reboque Deus nos impede ter
de pensar historicamente e ficamos sem o tempo e o espaço...
A confusão entre a ciência e o globo.
Da mesma maneira há, para Latour, duas visões de mundo científicas que não se
reconciliam: a da Natureza (na natureza, centrada no cosmos) e a da Natureza no
laboratório, como se uma descoberta científica pudesse traduzir a Natureza. Do
mesmo modo que a imagem do Globo ou Deus cristão é o Globo platônico separado e
perfeito, sem os efeitos da gravidade. Esse sim, se pode abarcar com a mão[xi], mas que aí não passaria
de um globo de papel machê.
Então,
Segundo Latour, é pelo uso da esferologia de Solterdijk ou da história da
ciência que conseguiremos escapar da maldição de Atlas, pelo entendimento que a
noção de globo não inclui tudo o que está contido no mundo, o global é um
modelo reduzido pois nunca se pode pensar globalmente sobre a Natureza ou Gaia.
Tyrrell versus Lovelock.
Conforme Latour, ao tratar do Antropoceno, de Gaia ou do Globo, confundem-se as
figuras de conexão com as de totalidade, mesmo entre os cientistas. Um exemplo
que ele traz é o de Tyrrell que converte Gaia em algo superior que envolveria a
Terra[xii]. Diante disso, Tyrrell
postula que Lovelock não consegue provar que existe essa camada de proteção da
Terra, tal como uma Providência. E aí seu erro, conforme indica Latour, de
tomar o todo pelas partes.
A despeito do alerta de Lovelock e de sua
hesitação em definir Gaia, ainda assim Tyrrell a toma por um ente todo-poderoso
como que por uma visão teológica, talvez pela influência daquele conceito de
Globo. Mesmo que Lovelock tenha conceituado uma versão profana de Gaia, não teleológica
e que foge de um nível de conexão e outro de totalidade reguladora, Tyrrell é
taxativo ao adotar o segundo ponto em prol da teoria da evolução, tirando
qualquer possibilidade de os organismos também poderem interferir no meio.
Por mais que Lovelock enfatize não haver
intenção oculta na autorregulação planetária, um neodarwinista como Tyrrell vê
ali uma Teodiceia. Isso porque alguns cientistas se agarram à visão global de
um superorganismo, ao invés de se mirarem nas conexões entre os seres. E o
Antropoceno ensina que não há uma unificação em uma esfera terráquea e que a
cosmologia do planeta azul como Globo deve ser superada. Se livrar da maldição
de Atlas é ultrapassar a imagem da Esfera platônica sem história nem
descontinuidade, a ideia ideal.
Os ciclos de realimentação não desenham um
globo. Mas é tomando as potências de agir com um movimento
em ciclos que se traça um caminho que rompe o desenho da esfera. E aqui Latour
toca num ponto particularmente problemático que é o de como trazer essa noção
de Antropoceno, tão distante, para o centro das atenções. Ainda que já tenham
havido vários ciclos para superar a visão de Globo, como as observações de Keeling
e as medições do ciclo do dióxido de carbono, o buraco na camada de ozônio ou
os estudos de Carl Sagan sobre um possível inverno nuclear, é preciso que os sintamos,
de fato, em nós mesmos. Isso quer dizer receber os efeitos do que praticamos,
de nossa frágil condição climática, ou seja, desses ciclos que voltam a nós e
nos sensibilizam (assim como os ciclos para parar de fumar, por exemplo,
conforme cita Latour: a necessidade de sentir na pele, ou, nos pulmões...).
É por ciclos entrelaçados que a camada de
Gaia se compõe, envoltório delicado das zonas críticas e que, não somente sente
a nossa ação, como reage e é nesse momento que temos que ter nossos sensores ativados
para não sermos negacionistas e identificarmos de que maneira as potências de
agir estão conectadas.
Enfim, outro princípio de composição.
Por mais que Gaia gere sinais de insatisfação, a partir do Antropoceno que
destruiu qualquer sonho de união no cuidado com a Natureza, ela em si também
não nos une como que nos chamando à ordem. Dada a complexidade do que se passa
sob Gaia, nem mesmo a Ciência une, haja vista as pseudocontrovérsias lideradas
pelos climatocéticos. Há, então, que se tecer uma universalidade, segundo
Latour, pela construção de coletivos em uma multiplicidade de ações em torno de
uma luta política.
Redesenhar o formato Natureza/Cultura em
uma nova cosmologia, que é de um tempo pós-natural e pós-humano. Não se trata
mais de questões ambientais, mas da redistribuição das potências de agir, maior
que as paixões políticas que conhecemos.
Melancolia ou o fim do globo.
Por fim, Latour relembra Melancolia, o filme, com a imagem de Melancolia, e não
o planeta Terra, sendo Gaia, pois é aquela que devastará o que é demasiado
humano. Enfim destruídos, haveremos de encontrar uma nova teologia geopolítica.
[i] Resenha da Quarta Conferência de
Bruno Latour: O Antropoceno e a destruição (da imagem) do globo. Em
LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno.
São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu Editora / Ateliê de Humanidades Editorial,
2020. Como de costume, de maneira alguma visa exaurir a argumentação do autor,
é um recorte das principais ideias abordadas.
[ii] Conforme https://www.infoescola.com/geologia/holoceno/:
Na escala de tempo geológico, o Holoceno ou Holocênico é a época do
Período Quaternário da Era Cenozoica do Eon Fanerozóico, que se iniciou há
cerca de 11,5 mil anos e se estende até o presente, onde a humanidade se
desenvolveu. O desenvolvimento da humanidade se deu principalmente graças ao
clima mais ameno e estável. Os grupos nômades de caçadores-coletores passaram
para uma população com casas fixas de mais de 6 bilhões de pessoas, que estão
agrupadas em complexas organizações sociais com nacionalidades, culturas e
modos de vida. Durante o Holoceno, o clima sofreu drásticas mudanças em relação
à temperatura, chuva, nível médio do mar, entre outros aspectos. Indicadores
climáticos mostraram que o El Niño também foi impactado pelas mudanças
climáticas ocorridas no Holoceno, que podem ter sido geradas pela variação nos
parâmetros orbitais. Neste mesmo período, também ocorreu a extinção em massa de
diversos animais e vegetais, principalmente de grandes mamíferos, por volta de
9.000 a 13.000 anos atrás, ou seja, ao final da última glaciação, no limite
Pleistoceno - Holoceno. Este grande evento pode estar relacionado a dois outros
eventos que ocorreram na mesma época, sendo eles a mudança climática e a
fixação dos povos humanos. A quantidade de espécies que estão entrando em
extinção é superior a quantidade de novas espécies ou até mesmo de nascimento
de animais e vegetais. Com todas estas mudanças que ocorreram e continuam a
ocorrer, teve início uma nova corrente de pesquisa, na qual os pesquisadores
propõem uma época nova, o Antropoceno. No entanto, para que esta nova época
seja efetivamente reconhecida na tabela geológica é necessário que se tenha uma
significância ou ocorrência global que marque o estratotipo globalmente, um golden
Spike. Esta significância ou golden Spike é um ponto que marca o limite
entre tempos geológicos diferentes, e o grande desafio está sendo encontrar
este ponto que determina o início do Antropoceno para que esta nova
nomenclatura seja aceita sem ressalvas pela comunidade científica da geologia
mundial. Embora seja aceito que o homem seja o grande causador de algumas
mudanças que estão ocorrendo na Terra, não se sabe precisar se estes impactos
se iniciaram com o advento da agricultura ou da industrialização, se estão
relacionados ao crescimento da população e ao uso de recursos naturais. No
final do século XIX e início do século XX, a sociedade deixou de ser industrial
e passou a ser uma sociedade de informação, com um grande aumento da população
global e consequente consumo de recursos naturais, modificando ainda mais o
planeta Terra.
[iii] Há controvérsias se por volta de
1800, no começo da revolução industrial ou no pós 2ª Guerra, graças à
radioatividade artificial. Um pouco disso na nota anterior.
[iv] Tradução do texto seminal
publicado por Paul Crutzen & Eugene Stoermer em 2000 na Global Change
Newsletter, 41:17-18 https://revistas.uminho.pt/index.php/anthropocenica/article/view/3095/2989.
Sucinto, porém mostra o estrago que temos feito ao planeta.
[v] Conforme publicação: http://quaternary.stratigraphy.org/working-groups/anthropocene/.
[vi] São: "a modificação por barragens da sedimentação dos rios; mudanças na acidez dos oceanos; a introdução de produtos químicos anteriormente desconhecidos; as ruínas compostas de vastas infraestruturas que não se parecem em nada com as anteriores; as mudanças na taxa e na natureza da erosão; as variações no ciclo do nitrogênio; o aumento contínuo do CO2 atmosférico; sem esquecer o desaparecimento abrupto de espécies vivas durante o que os biólogos se resignam chamar de "sexta extinção" p. 187, 188. Muitos dos pontos tratados por Crutzen e Stoermer.
[vii] Nossa resenha segue a fina ironia
latouriana.
[viii] Referência de Latour à ilustração
de Jessica Fortner https://www.nature.com/articles/519144a.
[ix] Sobre o autor e o conceito ver: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/10/a-incudora-tecnica-uma-critica-ao.html.
[x] Paráfrase de Espinosa? - https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2017/02/deus-ou-seja-natureza1.html.
[xi] Aqui ressaltando sua constante referência
a Atlas, nesses tópicos: “Na mitologia da Grécia antiga, Atlas era um gigante
condenado a carregar o universo nas costas”, conforme o artigo acessado em
16/01/2022: https://escola.britannica.com.br/artigo/Atlas/480699.
[xii] Latour uso o livro “On Gaia: A
Critical Investigation of the Relationship Between Life and Earth” de Tyrrell
como base da argumentação do equivocado professor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário