sábado, 23 de setembro de 2023

Gavagai

Observações iniciais informais sobre a indeterminação da tradução e congêneres[i]

O experimento da indeterminação da tradução da Quine é muito importante porque já quebra barreiras dogmáticas de abordagens nascituras da Filosofia da Linguagem, especialmente visões oriundas do Círculo de Viena. Imaginemos um linguista que vai a campo criar um manual de tradução da linguagem usada por uma tribo indígena isolada e ele faz uma primeira observação de um falante que aponta para um coelho e diz para seu acompanhante: “Gavagai!”. O linguista anota essa cena e se pergunta, sobre gavagai: “Seria o coelho ou uma parte do coelho? Seria comida, almoço? Seria animal?”.

Esse breve excerto serve para mostrar que o trabalho de rotulagem das coisas pela linguagem depende do contexto e é arbitrário, ou seja, ele é relativo ao que ocorre. Assim, o manual criado pelo linguista deverá ser construído mediante as observações empíricas e serve como uma forma de refutar possíveis enunciados puramente analíticos, isto é, que são verdadeiros em si, independentemente da experiência. Na realidade, talvez se criem enunciados analíticos, mas eles poderiam ser formados por abstração e a posteriori.

Então, o experimento condiciona a linguagem ao contexto de uso referido, mas ele também mostra que, se um outro linguista que se aventurasse nessa mesma tarefa de confecção do manual, criaria um manual diferente do anterior, em virtude daquelas perguntas iniciais que seriam respondidas de inúmeras formas por inúmeros linguistas. Nesse sentido, a tradução se indetermina pelas inúmeras abordagens que podem a ser construídas pelas diferentes observações empíricas de uso e revela, também, a inescrutabilidade[ii] da referência, já que gavagai poderia ser o coelho ou a perna do coelho. 

Teremos que fazer o escrutínio desse didático livro de Conserva por meio de fichamentos, mas de antemão teremos material para aprofundar em sua denúncia dos dois dogmas do empirismo[iii] e de sua proposta por uma epistemologia que recusa um fundacionalismo e normativismo por meio do behaviorismo e empirismo[iv]. Um ponto interessante é que vai desmistificar o significado como uma entidade abstrata, vai mostrar a não alcançabilidade da referência e recusar a primazia verificacionista de enunciados verdadeiros por meio de uma teoria holística. Ou seja, é demolidor.



[i] Estamos na primeira leitura diagonal de Quine: Linguagem e Epistemologia naturalizada. CONSERVA, José Nilton. Curitiba: Appris, 2019.

[ii] Do que é impossível de ser escrutado, investigado, compreendido; impenetrável, incompreensível, insondável (Oxford Languages and Google).

[iv] Preliminares: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/04/a-nossa-teoria-sobre-como-o-mundo-e.html. 

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