domingo, 4 de setembro de 2016

Qual a classe morfológica da filosofia? Verbo ou substantivo?*


Bolzani argumenta que o emprego do termo filosofia se dá de diversas formas e muitas vezes pensa-se uma coisa quando de fato é outra. Distinguem-se, então, filosofia como algo que suscita equívocos e "filosofar" como a autêntica expressão necessária para a filosofia. Para ele, a filosofia é tratada, atualmente pelo senso comum, como algo que versa sobre quase tudo, mas não serve para nada. Isso porque se revela um sentido distorcido quando é vista como entidade: a Filosofia. A filosofia não é algo pronto para uso e que vai trazer respostas para os nossos problemas atendendo ao ideal de consumo imediato que hoje vigora. Isso posto, qual o significado autêntico da filosofia? Para Bolzani, seria o de filosofar como atitude (o verbo) em oposição ao sentido passivo de filosofia (o substantivo).
Bolzani nos propõe que a filosofia pode ser uma forma de vida, assim como fez Sócrates, que morreu pela sua filosofia e fundou a racionalidade ocidental unindo teoria e prática. Ele instaura o conflito entre o livre pensar e o poder instituído e, em nome da sua verdade e respeitando as leis, manteve-se convicto e não aceitou a fuga e nem a redução de sua pena capital. Diante disso, percebemos que a atitude socrática era a atividade de interrogação, porque Sócrates sabia que nada sabia. Se o filósofo pregou a vida frugal do corpo para fortalecer a alma, na morte manteve o questionamento de não saber o que se sucederia dali para frente. Bolzani afirma que, desde então, ele é o paradigma, modelo de filósofo.
A primeira atitude do filosofar socrático é a aporia, a dúvida (espanto de admiração ou perturbação) que se segue pela investigação, o exame, o desconfiar de verdades estabelecidas, mas que, a partir de razões, pode fundamentar um caminho que seja universal e valha para todos. A pergunta “O que é?” pretende verificar se a resposta atende a todos os casos possíveis, se pode ser generalizada e proporcionar um saber totalizante e que traga o bem e a felicidade. E o filósofo não quer somente descobrir a verdade para si, mas para os outros. Então, o filosofar é uma abertura para a investigação de assuntos que sobre eles nada sabemos e que coloca em choque nosso conhecimento com um novo. Seguindo essa prescrição, séculos depois, Descartes estabelece como método suspender todos os conhecimentos adquiridos e colocá-los em dúvida para verificar o que deles podemos conhecer. E a dúvida se torna o meio de filosofar: devemos verificar as opiniões dos outros e as nossas para saber se são verdades ou meros preconceitos, exercendo o filosofar com paciência e nem sempre procedendo para frente, senão que recuando e repensando a direção a seguir. Bolzani ressalta que o filosofar é atividade com dupla exigência: solitária para consigo, mas solidária para com os outros, na vida pública, o que leva à cidadania. O ensino de filosofia não deve ser conjunto de conteúdos prontos, mas atitude investigante e reflexão crítica. Segundo ele: “Não se trata, portanto, de culto à filosofia: bem ao contrário, trata-se de cultivo do filosofar”. Filosofar é um trabalho do pensamento incessante e que não se deve basear na nossa interioridade e verdades, mas que deve trazer consigo a incerteza que a dúvida impõe.
Outro aspecto fundamental do filosofar que Bolzani nos indica é o olhar para a história e seus 25 séculos de filosofia para pensar como as inquietações são tratadas em cada tempo e para se confirmar que não começamos os questionamentos agora, pois já há um caminho iniciado. Isso porque, tal como “parece” ocorrer na ciência, não há um processo acumulativo na filosofia e a última seria a mais atualizada e aceita sem contestação. Para Bolzani, seria possível defender uma “tese” do progresso em filosofia e enumerar “descobertas” dos filósofos anteriores, mas sempre há retomadas de conceitos e interpretações apropriadas em outras filosofias. Nesse sentido, não haveria um filosofar livre, autônomo e original que se desse ex abrupta, geração espontânea sem se considerar as bases fundadas pelas filosofias anteriores e com elas dialogar. Porque, conforme bem coloca Bolzani, liberdade não é transgredir o que está estabelecido, mas agir sabendo por que fazemos determinadas coisas através de razões bem avaliadas. Ele prossegue acrescentando que a criação de conceitos pelo filósofo só se dá a partir das propostas conceituais da tradição, compreendo filosofias e diferentes maneiras de se operar com a linguagem e com o mundo. Somente “ruminando” os textos filosóficos e nos permitindo experienciá-los como verdadeiros conseguriemos procurar novas formulações e respostas. Ainda, o filosofar também não é a escolha de uma filosofia para defendê-la, mas a avaliação de diferentes filosofias que proporcionem um processo formador.
Bolzani conclui enfatizando que fez o elogio do filosofar (e não da Filosofia) como procedimento difícil e longo, que se preocupa com a utilização das palavras e seu uso justo e ético em benefício dos homens, referindo-se aqui a Paul Ricoeur. É pelo filosofar que contrastamos o imediatismo da tecnologia e velocidade da informação de nosso tempo com aquele espanto de admiração e perturbação que só a dúvida filosófica nos proporciona.



* Sobre filosofia e filosofar. Roberto Bolzani Filho. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/62569.

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