No começo era a terra, a água,
o verde da natureza e os bichos. Depois veio o homem com seus instintos: comer,
dormir, se reproduzir. Ele era o bom selvagem* e precisava sobreviver, mas
tinha compaixão de si e do sofrimento alheio. Em algum momento o homem começou
a se expressar individualmente e a comunicar-se [entre si], formou comunidades
e se socializou. Acreditamos que por aí se mostra a primeira camada de
artificialidade: a produção da linguagem e a criação de regras de convívio
social. Tudo o que é produção humana é artificial, excetuando-se a procriação
que é natural. O organismo humano é natural e ele estava bastante ligado à
natureza, naquele tempo longínquo. Na natureza, os fenômenos e as interações
entre os seres seguem sua lógica, na qual o homem se insere. Mas, quando ele se
insere, ele muda a correlação de forças, porque produz coisas artificiais. O
homem não soube (ou não quis) se manter na lei natural, ele criou a sua própria
lei e submeteu a ela a própria natureza. Se a primeira camada de artificialidade
era composta pela linguagem e valores éticos, a ela se sucederam outras: a
vestimenta, a propriedade, a moeda de troca, os utensílios, as armas. De fato,
nos parece que a primeira camada de artificialidade foi não material [ou
virtual], oriunda de esforço mental e psicológico, e dela surgiram necessidades
materiais: os objetos criados a partir de transformações naturais. A partir
dessas duas camadas, de suas sobreposições, de seus relacionamentos e
cruzamentos, advieram outras camadas artificiais materiais e virtuais, até
chegarmos aos nossos dias.
Portanto, houve um processo
histórico que irrompeu na atualidade e seguindo um determinado caminho,
transpondo e criando camadas artificiais. Seria um trabalho importante
identificar séries que trilharam determinadas camadas materiais e virtuais para
poder identificar sua origem natural e qual o alvo artificial atingido.
Contudo, o que a construção das camadas artificiais nos permite concluir é que
elas são fator determinante em todos os nossos atos e relações. A tal ponto que
fica realmente difícil poder estabelecer qualquer valor de verdade, de certo ou
errado e de julgamento. A densidade de artificialidade polui nossos interesses
e não temos nenhuma garantia de como ou porque defendê-los. Nossos interesses,
se perdendo nas camadas de artificialidade, se alinham ou se chocam com os
interesses dos outros e, sem o estabelecimento ou a publicação da cadeia
perpassada em cada camada artificial, realmente não podemos chegar a nenhuma
conclusão, não podemos defender nossos pontos de vista e nem lutar por eles.
Esse histórico artificial
extrapolou na atualidade e caímos em um relativismo absoluto. Nenhum argumento
que se dê muita acima de camadas de artificialidade pode ser factível ou
provável. De qualquer forma, algumas esferas institucionais, sociais, etc.,
procuram se precaver. Isso pode ser verificado no caso das ciências que
delimitam seu contexto e suas variáveis, mas querendo se fazer neutras pecam em
uma petição de princípio: atestar neutralidade já não é ser neutro. Além do
mais, as ciências acabam por se fechar em si mesmas e, por mais que procurem se
aproximar de uma camada natural, primitiva e essencial, produzem resultados que
ecoam em camadas de artificialidade desprovidas de critérios de escolha e
seleção, ao Deus dará da poluição e confusão que elas causam.
Por tudo isso, as infinitas camadas
de artificialidade combinadas, regadas aos mais diversos elementos materiais e
virtuais nos devem fazer desconfiar de qualquer necessidade vital nossa.
Individualmente, não temos critérios de garantia. Então, se isso vale para mim,
vale para os outros e vale para toda e qualquer relação de transferência ou
zona de diálogo entre eu e os outros. Do que podemos concluir que não devemos
estar tão entrincheirados e que qualquer guerra não parece ter fundamento, se
não forem retrocedidas a um algo natural ou se não forem elucidadas todas as
camadas artificias materiais e virtuais por ela atravessadas e que forneçam
subsídios para o ataque.
________
* Aqui nos inspiramos na teoria
naturalista de J.J. Rousseau.
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