A voz como algo concreto não existe. Porque a voz preenche um
espaço, porque ela nos aproxima das outras pessoas, porque ela nos toca, parece que ela existe. Mas não, a voz é
uma designação, um símbolo que remete a um nada, remete a uma forma vazia.
Pensemos na voz, o que é a voz? Alguém já viu uma voz por aí? A voz é um
barulho como outro qualquer, mas tendemos a achar que a voz tem poder. Tudo não
passa de mecânica, ondulatória, enfim. Há uma vibração que se desloca no ar, no
tempo e no espaço, há um som acontecendo agora que me toca. A voz é uma
codificação dos órgãos vocais - esses sim existentes, uma proliferação acústica
no ar, uma decodificação dos órgãos auditivos, tudo isso junto e num intervalo
de tempo quase instantâneo. Não há uma voz única e solta no ar. Não há um ser
voz, há toda uma transferência de ondas que se deslocam em um meio.
Não há nenhuma garantia de comunicação limpa e ideal pela voz. Nas
codificações e decodificações há uma presunção de transferência de conteúdos
mentais, há uma semântica e uma sintática embutidas na mensagem que se desloca
pelo meio de propagação. Há um discurso lógico intrínseco que se vale de uma
regra estabelecida e que é admitido por todos. Mas há um sentido que se quer expressar
que não é garantido. A interpretação é pessoal, independente de tudo o que há
de objetivo e que garante a comunicação intersubjetiva. Mas o escutar e o
consentir não significam em hipótese alguma um assentimento relativo ao sentido.
Você fala, eu escuto e pareço concordar, mas não posso me comprometer com você. Não por
uma questão ética, mas porque: 1.) como sua mensagem me toca e 2.) quais os
efeitos intelectuais que ela me causa, ambos os eventos são secretos e somente meus porque
competem à minha psique. Não há pacto de sangue que garanta isso. Não me venha
cobrar depois por certo assentimento baseado nessa transmissão cheia de ruídos.
Apenas um pode concordar com o que foi dito: o emissor. E mal ele, porque ele
quer algo quando fala, mas ele quer algo naquele momento. Depois, em um segundo
momento, ao defender o dito, o dito virou objeto, o que se defende agora é a
supremacia, uma coerção, porque nunca pode haver um acordo. O interesse é
sempre de quem propõe e baseado em inúmeras condições empíricas determinadas de
cada momento.
Discutamos eu e você todo dia o mesmo assunto, alguma ideia em que
discordamos. Certamente a cada dia a discussão será diferente porque a cada dia
somos tocados por novas informações e influenciados por opiniões que nos afetam
e sentimentos e pensamentos que criamos. Mais do que isto, a discussão de hoje
tem por pressuposto a discussão de ontem, já está dentro de um plano de
imanência e de diálogo estabelecido. Assim, é absolutamente certo que a fala é
algo contingente e que seus desdobramentos podem ser imprevisíveis.
É desse contexto de imprevisibilidade que a autoridade se
aproveita. A autoridade quer recuperar o dito e transformá-lo em verdade. A
autoridade quer realizar o dito, mas ele já foi dito, agora ele não é mais nada.
E, quando foi dito ele se valeu do desejo do emissor, lá ele queria e teve o
assentimento pretendido e agora cobra, conforme já aventamos, não o dito, mas o assentido. Mas sabemos
que a realização do dito, a fala em si mesma, não é nada de especial e
separada, a fala é a conjunção dos seus órgãos orais, do meio e dos meus órgãos
auditivos, além de infinitos outros ruídos de toda ordem. Uma simples resposta,
um assentimento não é um consentimento. Se cobre pela sua pretensão de querer
verborragicamente me submeter.
Você talvez saiba o que pretendeu e o que queria. Parece-me muito mais que você
quer sempre adesão e não comunicação.
Houve momentos em que a fala moveu multidões: Hitler moveu
milhares para debaixo da terra ou os transformou em cinzas espalhadas pelo ar.
E tantos outros exemplos... Nesses casos, a contingência virou necessidade, mas
a necessidade não é da fala porque a fala é o meio, ela é instrumentalizada
para mover. A necessidade vem de fora, há uma força externa operando. Aqui não
há ruído na transmissão porque todos sabem o que querem escutar. Não culpemos
Hitler e sua propaganda, não culpemos a mecânica do seu som. Havia uma causa
muito maior em jogo e que já estava dada, aquilo foi necessário. Todos aqueles
eventos encadeados só nos fizeram parecermos mais homens do que jamais teríamos
sido outrora. Ali nossa humanidade aflorou, desabrochou regada por chuva ácida.
Foi lá que as contingências se cruzaram e dali brotou a necessidade de
provarmos que sim, podíamos fazer aquilo porque éramos imbatíveis. Mais do que
nunca, ali a fala mostrou sua contingência, mais do que nunca a autoridade se
aproveitou da fala concreta e, fingindo ser necessária, nos fez acreditar que
não havia e não há acordo entre nós. Mas ali também nos provou que concordar com a fala
autoritária não é consentir psiquicamente, mas covardemente delegar nossa
própria responsabilidade.
Por isso, não me venha com sua fala mansa, com uma conversinha
mole. Não queira me convencer para me vencer. A sua fala é a minha fala porque
a sua voz só é algo porque estou aqui com meu corpo e meus órgãos. Não queira
que eu concorde, fala que eu te escuto. Só isso.
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