sábado, 1 de agosto de 2015

Fala que eu te escuto

A voz como algo concreto não existe. Porque a voz preenche um espaço, porque ela nos aproxima das outras pessoas, porque ela nos toca, parece que ela existe. Mas não, a voz é uma designação, um símbolo que remete a um nada, remete a uma forma vazia. Pensemos na voz, o que é a voz? Alguém já viu uma voz por aí? A voz é um barulho como outro qualquer, mas tendemos a achar que a voz tem poder. Tudo não passa de mecânica, ondulatória, enfim. Há uma vibração que se desloca no ar, no tempo e no espaço, há um som acontecendo agora que me toca. A voz é uma codificação dos órgãos vocais - esses sim existentes, uma proliferação acústica no ar, uma decodificação dos órgãos auditivos, tudo isso junto e num intervalo de tempo quase instantâneo. Não há uma voz única e solta no ar. Não há um ser voz, há toda uma transferência de ondas que se deslocam em um meio.
Não há nenhuma garantia de comunicação limpa e ideal pela voz. Nas codificações e decodificações há uma presunção de transferência de conteúdos mentais, há uma semântica e uma sintática embutidas na mensagem que se desloca pelo meio de propagação. Há um discurso lógico intrínseco que se vale de uma regra estabelecida e que é admitido por todos. Mas há um sentido que se quer expressar que não é garantido. A interpretação é pessoal, independente de tudo o que há de objetivo e que garante a comunicação intersubjetiva. Mas o escutar e o consentir não significam em hipótese alguma um assentimento relativo ao sentido. Você fala, eu escuto e pareço concordar, mas não posso me comprometer com você. Não por uma questão ética, mas porque: 1.) como sua mensagem me toca e 2.) quais os efeitos intelectuais que ela me causa, ambos os eventos são secretos e somente meus porque competem à minha psique. Não há pacto de sangue que garanta isso. Não me venha cobrar depois por certo assentimento baseado nessa transmissão cheia de ruídos. Apenas um pode concordar com o que foi dito: o emissor. E mal ele, porque ele quer algo quando fala, mas ele quer algo naquele momento. Depois, em um segundo momento, ao defender o dito, o dito virou objeto, o que se defende agora é a supremacia, uma coerção, porque nunca pode haver um acordo. O interesse é sempre de quem propõe e baseado em inúmeras condições empíricas determinadas de cada momento.
Discutamos eu e você todo dia o mesmo assunto, alguma ideia em que discordamos. Certamente a cada dia a discussão será diferente porque a cada dia somos tocados por novas informações e influenciados por opiniões que nos afetam e sentimentos e pensamentos que criamos. Mais do que isto, a discussão de hoje tem por pressuposto a discussão de ontem, já está dentro de um plano de imanência e de diálogo estabelecido. Assim, é absolutamente certo que a fala é algo contingente e que seus desdobramentos podem ser imprevisíveis.
É desse contexto de imprevisibilidade que a autoridade se aproveita. A autoridade quer recuperar o dito e transformá-lo em verdade. A autoridade quer realizar o dito, mas ele já foi dito, agora ele não é mais nada. E, quando foi dito ele se valeu do desejo do emissor, lá ele queria e teve o assentimento pretendido e agora cobra, conforme já aventamos, não o dito, mas o assentido. Mas sabemos que a realização do dito, a fala em si mesma, não é nada de especial e separada, a fala é a conjunção dos seus órgãos orais, do meio e dos meus órgãos auditivos, além de infinitos outros ruídos de toda ordem. Uma simples resposta, um assentimento não é um consentimento. Se cobre pela sua pretensão de querer verborragicamente me submeter. Você talvez saiba o que pretendeu e o que queria. Parece-me muito mais que você quer sempre adesão e não comunicação.
Houve momentos em que a fala moveu multidões: Hitler moveu milhares para debaixo da terra ou os transformou em cinzas espalhadas pelo ar. E tantos outros exemplos... Nesses casos, a contingência virou necessidade, mas a necessidade não é da fala porque a fala é o meio, ela é instrumentalizada para mover. A necessidade vem de fora, há uma força externa operando. Aqui não há ruído na transmissão porque todos sabem o que querem escutar. Não culpemos Hitler e sua propaganda, não culpemos a mecânica do seu som. Havia uma causa muito maior em jogo e que já estava dada, aquilo foi necessário. Todos aqueles eventos encadeados só nos fizeram parecermos mais homens do que jamais teríamos sido outrora. Ali nossa humanidade aflorou, desabrochou regada por chuva ácida. Foi lá que as contingências se cruzaram e dali brotou a necessidade de provarmos que sim, podíamos fazer aquilo porque éramos imbatíveis. Mais do que nunca, ali a fala mostrou sua contingência, mais do que nunca a autoridade se aproveitou da fala concreta e, fingindo ser necessária, nos fez acreditar que não havia e não há acordo entre nós. Mas ali também nos provou que concordar com a fala autoritária não é consentir psiquicamente, mas covardemente delegar nossa própria responsabilidade.
Por isso, não me venha com sua fala mansa, com uma conversinha mole. Não queira me convencer para me vencer. A sua fala é a minha fala porque a sua voz só é algo porque estou aqui com meu corpo e meus órgãos. Não queira que eu concorde, fala que eu te escuto. Só isso.

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