quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Ceticismo alegre e modesto*

Sobre a obra de Hume importa ressaltar que começa com o Tratado da Natureza Humana, que não foi acolhida pelo público e faz com que o filósofo mude o estilo e parta para as investigações (acerca do entendimento humano e acerca dos princípios da moral), recolhendo fatos e usando o inquérito como principal recurso. A filosofia é um jogo que tem suas regras e onde é preciso inquirir; a filosofia é uma caçada. Remetendo à tradição britânica de Lorde Bacon e Sir Isaac Newton, a investigação aplica o método experimental da ciência para entender a natureza humana, entender o homem em suas ações e ser entendido por ele: "Sede filósofo, mas sede sempre homem".
Reforçando o conceito, para o empirista Hume, as ideias provêm das impressões, sendo as últimas mais vivas que as primeiras, mas as primeiras se estabelecendo a partir da reflexão, do pensar. Esse é o papel do pensamento: organizar ideias que são metódicas, estabelecer conexões a partir das regras de semelhança, contiguidade, causalidade, etc. Nesse processo, o espírito é guiado pela experiência, se não há experiência, ele vagueia. Por outro lado, pelo empirismo cético, a inferência de um efeito a partir de sua causa é feita pela imaginação, a razão nada pode demonstrar a esse respeito. Aqui se abre espaço para a ação: é ela que combate nossa ignorância, a partir do hábito passado posso acreditar no futuro. É a imaginação que domina a mente. A natureza humana se guia pela crença que nos permite assumir o que não existe como já existente, cremos em ideias quase tão vivas quanto às impressões. Às vezes, existe espaço para a ficção: algo ocorre diferente do previsto - nesse caso, só sabemos a posteriori. Portanto, é a crença que é o princípio diretor de nossas ações, ela toca o nosso espírito de tal forma que nos faz distinguir entre as ideias do julgamento das ficções da imaginação.
Hume atesta o poder da imaginação: somos irracionais, mas imaginativos. A imaginação é extremamente livre, se nos faz acreditar em quimeras, ela harmoniza o curso da natureza com a sucessão de nossas ideias. Somos guiados pela experiência usando a liberdade da imaginação para agir. Mas a liberdade é condicional porque se baseia na conjunção das causas e feitos, nossa moral vem com regras e apreciações a reboque. Na esfera moral nada podemos prescrever e não há orientação sobre o que fazer porque a causa da ação vem da experiência. Pelo método de Hume, é aí que devemos procurar a impressão que está por trás de uma aprovação ou desaprovação, através do inquérito sobre a origem de nossos sentimentos.
A moral de Hume combate o egoísmo e se volta para a ação, exaltando a simpatia entre os homens, mas sem dispensar o caráter de utilidade. Somos benévolos com os outros porque a nossa situação é precária, senão não precisaríamos ser. Da mesma forma que a justiça não é útil em uma sociedade com abundância. De qualquer forma, há um sentimento moral que nos empurra para a ação, seja para a benevolência ou para a justiça. E somos parciais, mas podemos aprender as vantagens de sermos justos. Isso não quer dizer que haja um cálculo frio, somos orientados na ação moral pela paixão - aquela impressão de segundo grau e reflexiva. Menos a razão fria que diferencia o verdadeiro do falso, mais a paixão que age e inventa; menos a indiferença irracional e mais o calor natural.
Por outro lado, as investigações, o inquérito, sempre deixam algo no ar. Há espaço para diálogo e aqui se insere o ceticismo temperado de Hume. A moral se orienta pelos mesmos princípios racionais, embora tire conclusões diferentes; não há uma filosofia doutrinária, mas uma filosofia modesta, de troca. É preciso, menos do que concluir, aprender a pensar. Hume não renuncia ao homem, mas domestica suas surpresas.
E, para lá das investigações, ainda permanecem as difíceis questões do tratado, como, por exemplo, a ideia de um eu, considerando que as nossas experiências se constituem a partir de um tecido de impressões particulares. Se a experiência só apresenta impressões sucessivas como podemos considerá-las unificadas pelo eu? O fluxo de causa e efeito da natureza é o mesmo fluxo de causa e efeito de nossas ideias... Deixemos essas pendências em aberto para exame posterior.

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* Resenha do capítulo sobre Hume no livro Gradus philosophicus: a construção da Filosofia ocidental, organizado por Laurent JAFFRO e Monique LABRUNE. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Mandarim, 1996.

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