Sobre a obra de Hume importa
ressaltar que começa com o Tratado da
Natureza Humana, que não foi acolhida pelo público e faz com que
o filósofo mude o estilo e parta para as investigações (acerca do entendimento
humano e acerca dos princípios da moral), recolhendo fatos e usando o inquérito
como principal recurso. A filosofia é um jogo que tem suas regras e onde é
preciso inquirir; a filosofia é uma caçada. Remetendo à tradição britânica de Lorde
Bacon e Sir Isaac Newton, a investigação aplica o método experimental da ciência
para entender a natureza humana, entender o homem em suas ações e ser entendido
por ele: "Sede filósofo, mas sede sempre homem".
Reforçando o conceito, para
o empirista Hume, as ideias provêm das impressões, sendo as últimas mais
vivas que as primeiras, mas as primeiras se estabelecendo a partir da reflexão,
do pensar. Esse é o papel do pensamento: organizar ideias que são metódicas, estabelecer
conexões a partir das regras de semelhança, contiguidade, causalidade, etc.
Nesse processo, o espírito é guiado pela experiência, se não há experiência,
ele vagueia. Por outro lado, pelo empirismo cético, a inferência de um efeito a
partir de sua causa é feita pela imaginação, a razão nada pode demonstrar a
esse respeito. Aqui se abre espaço para a ação: é ela que combate nossa
ignorância, a partir do hábito passado posso acreditar no futuro. É a
imaginação que domina a mente. A natureza humana se guia pela crença que nos
permite assumir o que não existe como já existente, cremos em ideias quase tão
vivas quanto às impressões. Às vezes, existe espaço para a ficção: algo ocorre
diferente do previsto - nesse caso, só sabemos a posteriori. Portanto, é a
crença que é o princípio diretor de nossas ações, ela toca o nosso espírito de
tal forma que nos faz distinguir entre as ideias do julgamento das ficções da
imaginação.
Hume atesta o poder da imaginação:
somos irracionais, mas imaginativos. A imaginação é extremamente livre, se nos
faz acreditar em quimeras, ela harmoniza o curso da natureza com a sucessão de
nossas ideias. Somos guiados pela experiência usando a liberdade da imaginação
para agir. Mas a liberdade é condicional porque se baseia na conjunção das
causas e feitos, nossa moral vem com regras e apreciações a reboque. Na esfera
moral nada podemos prescrever e não há orientação sobre o que fazer porque a
causa da ação vem da experiência. Pelo método de Hume, é aí que devemos
procurar a impressão que está por trás de uma aprovação ou desaprovação,
através do inquérito sobre a origem de nossos sentimentos.
A moral de Hume combate o egoísmo e
se volta para a ação, exaltando a simpatia entre os homens, mas sem dispensar o
caráter de utilidade. Somos benévolos com os outros porque a nossa situação é
precária, senão não precisaríamos ser. Da mesma forma que a justiça não é útil
em uma sociedade com abundância. De qualquer forma, há um sentimento moral que
nos empurra para a ação, seja para a benevolência ou para a justiça. E somos
parciais, mas podemos aprender as vantagens de sermos justos. Isso não quer
dizer que haja um cálculo frio, somos orientados na ação moral pela paixão -
aquela impressão de segundo grau e reflexiva. Menos a razão fria que diferencia
o verdadeiro do falso, mais a paixão que age e inventa; menos a indiferença
irracional e mais o calor natural.
Por outro lado, as investigações, o
inquérito, sempre deixam algo no ar. Há espaço para diálogo e aqui se insere o
ceticismo temperado de Hume. A moral se orienta pelos mesmos princípios
racionais, embora tire conclusões diferentes; não há uma filosofia doutrinária,
mas uma filosofia modesta, de troca. É preciso, menos do que concluir, aprender
a pensar. Hume não renuncia ao homem, mas domestica suas surpresas.
E, para lá das investigações, ainda
permanecem as difíceis questões do tratado, como, por exemplo, a ideia de um eu, considerando que as nossas
experiências se constituem a partir de um tecido de impressões particulares. Se
a experiência só apresenta impressões sucessivas como podemos considerá-las
unificadas pelo eu? O fluxo de causa
e efeito da natureza é o mesmo fluxo de causa e efeito de nossas ideias... Deixemos
essas pendências em aberto para exame posterior.
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* Resenha do capítulo sobre Hume no livro Gradus philosophicus: a construção da
Filosofia ocidental, organizado por Laurent JAFFRO e Monique LABRUNE. Tradução
de Cristina Murachco. São Paulo: Mandarim, 1996.
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