Tenta elucidar um conceito tão amplo e tão simples: a ideia[i]
Hacking cita a Lógica[ii]
como um livro de grande influência, tendo sido escrito em Port-Royal, no século
XVII, por jansenistas, dentro do contexto de associação da linguagem com as
ideias[iii]. Acontece que, no âmbito
de Locke e Berkeley, parece que o conceito de ideia é tão abrangente que quase
constitui uma impossibilidade, já que ideia pode ser desde o objeto do
entendimento quando o homem pensa, como pode ser uma imagem mental, uma noção,
espécie, pode ser um objeto da percepção de modo geral ou mesmo uma dor e até
cócegas. Classificação heterogênea que pode levar a erros.
Já pela Lógica, conforme Hacking, nada
é mais claro que a ideia, tipo mais elementar de entidade imaginável. E
ele adverte que há uma distinção entre conceber e imaginar uma ideia, isso
porque concebemos a ideia de uma figura de mil lados ou ideias como Deus ou
vontade, mas não podemos formar imagens dessas coisas. Entretanto há de
se questionar por que imagens e objetos do raciocínio poderiam ser considerados
ideias, se díspares[iv].
Se tal classificação abrangente incomodou
até Kant, segundo ele, a resposta da Lógica de Port-Royal passa pelo ego
cartesiano, já que “não temos conhecimento de nada que está fora de nós exceto
pela mediação das ideias dentro de nós” (p. 35) e acessíveis por ele. E ele
complementa trazendo o princípio de classificação que o ego usa para as ideias:
“uma ideia é qualquer objeto que pode ser contemplado por um ser pensante e sem
que haja compromisso existencial com qualquer coisa exceto esse próprio
ser pensante” (p. 36, grifo nosso).
Isto é, conforme entendemos, há garantias
“até” o ego, não “além” dele. Os objetos são ideias do ego, dentro do
compromisso existencial dele; existência do eu. Daí a ampla gama de objetos,
i.e., ideias (cócegas, imagens e conceitos). Nesse caso, objetos não são moedas
ou ventiladores, eles são objetos do desejo ou do pensamento (objetos de),
embora para a metafísica daquele empirismo, Locke considere que moedas são
objetos e Berkeley não[v]. Ainda nesse interim, uma
coisa que Hacking pontua é que ideias são contempladas.
Acontece que a influência cartesiana em
Port-Royal leva a ideia, se possuindo objetividade, para o campo do raciocínio e “raciocinar
sobre ideias é como ver”, Descartes compara o raciocínio à visão. Segundo ele
olhamos para nossas ideias e as escrutinamos separadamente para saber o que
confunde o pensamento ou não. Mas Hacking questiona essa associação do mental
com a visão e insiste que não formamos imagens de muitos conceitos. Só que, para
Descartes, as ideias são iluminadas pelo pensamento, quiçá pela intuição.
Haveria um olhar mental para além do véu
que cobre nossa visão e quando percebemos um argumento exclamamos: “agora estou
vendo!” – vício de linguagem. Inclusive há uma supremacia da visão sobre os
sentidos por parte dos empiristas. Mais do que argumentar com as palavras,
foge-se delas para as ideias, embora haja objetos táteis, embora nós possamos
prescindir da visão em muitos casos.
E Hacking resume assim a teoria das
ideias: há uma classe de objetos chamados ideias que medeiam entre o ego e o
resto do mundo e, embora as ideias não sejam imagens, temos acesso a elas pela
faculdade da visão. Então, as palavras significam ideias por meio de uma relação
causal. Se, aparentemente, no século XVII, havia esse trabalho profilático de
escapar da linguagem pelas ideias, a linguagem que interessava à filosofia da
época era a o discurso mental encadeado de ideias, despido do discurso público.
Será que o discurso mental da época se assemelha ao discurso público de hoje?
[i] Fichamento do terceiro capítulo de
Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp,
1999. Ian Hacking. Falamos de sua estratégia aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/12/a-estrategia-de-ian-hacking-para.html.
[ii] Lógica de Port-Royal: https://gulbenkian.pt/publications/a-logica-ou-a-arte-de-pensar/: A Lógica de Port-Royal foi um dos
livros mais influentes de lógica filosófica -para o bem e para o mal – da época
moderna, não só no seu tempo como nos séculos seguintes, apesar – e talvez por
causa – das suas idiossincrasias, visto que não trata apenas de questões
tradicionais de lógica, mas também de outros assuntos, que vão da epistemologia
à moral, passando pela metafísica e pela retórica. Afirmando-se como um manual
de rutura contra a tradição aristotélico-escolástica (no que esta tinha de
formalista, de abstrato e de especulativo) mas também contra a conceção ramista
da dialética, ela foi, em vez disso, iluminada pelos princípios da nova
filosofia cartesiana e, sobretudo, pelo augustinismo dos seus autores
jansenistas. A Lógica de Port-Royal não deixou de tratar os temas tradicionais
da lógica, dos termos, da lógica proposicional e da silogística – nas primeiras
três partes dedicadas a três operações do espírito: a de conceber [concevoir] a
de julgar [juger] e a de raciocinar [raisonner] – , mas, num movimento que
havia já começado com as lógicas renascentistas, acrescentou, para além
daquelas, uma quarta parte sobre o método, ou seja, uma parte dedicada à
operação mental de ordenar [ordonner], e, por isso, mais vocacionada para
questões epistemológicas, como a possibilidade do conhecimento, a luta contra o
ceticismo pirronista (não o metódico), a crença nos factos, sem deixar de dar o
devido tratamento aos aspetos propriamente metodológicos, relativos ao momento
heurístico da descoberta e à clara – geométrica e demonstrativa – exposição do
conhecimento adquirido. O sucesso pedagógico e a tonalidade moderna desta
Lógica – já que nela se apresentam inovações importantes como, por exemplo, a
distinção entre extensão e compreensão dos termos – fizeram-na, por isso,
merecer um lugar incontornável em muitas das histórias tradicionais da lógica.
Para além, no entanto, deste lugar cativo na história geral da lógica,
verificou-se a partir da segunda metade do século xx uma atenção especial a
esta obra de Antoine Arnauld e Pierre Nicole. Tanto no domínio da filosofia da
linguagem e da linguística, com os estudos de Noam Chomsky – que acreditou ter
descoberto no par que esta obra compõe com a Grammaire Générale et Raisonnée,
de Antoine Arnauld e de Claude Lancelot, o anúncio da sua Gramática Generativa,
como no trabalho epistemológico da arqueologia das ciências humanas de Michel
Foucault – que viu na Lógica de Port-Royal o paradigma da nova episteme
clássica – mas também, ainda no âmbito das teorias da argumentação e daquilo a
que se tem vindo a chamar “lógica informal” – onde a consideraram como uma
lógica inovadora, voltada para a prática argumentativa, antecipando esse âmbito
interdisciplinar que tem em conta os contextos e as dinâmicas efetivas da
argumentação e que, nessa perspetiva, refletiu sobre alguns esquemas e falácias
que haveriam de ser elaborados e sistematizados mais tarde.
[iii] Lembremos que Hacking divide seu
livro em três partes: o apogeu das ideias, o apogeu dos significados e o apogeu
das sentenças.
[iv] Hacking traz uma passagem na qual
Foucault cita Borges com a exemplificação de uma variedade imensa de animais e
que seria um conceito extremamente heterogêneo.
[v] Aqui https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/01/breves-ideias-sobre-locke-berkeley.html podemos encontrar um pouco mais dessa distinção.
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