sábado, 20 de janeiro de 2024

As ideias de Port Royal

Tenta elucidar um conceito tão amplo e tão simples: a ideia[i]

Hacking cita a Lógica[ii] como um livro de grande influência, tendo sido escrito em Port-Royal, no século XVII, por jansenistas, dentro do contexto de associação da linguagem com as ideias[iii]. Acontece que, no âmbito de Locke e Berkeley, parece que o conceito de ideia é tão abrangente que quase constitui uma impossibilidade, já que ideia pode ser desde o objeto do entendimento quando o homem pensa, como pode ser uma imagem mental, uma noção, espécie, pode ser um objeto da percepção de modo geral ou mesmo uma dor e até cócegas. Classificação heterogênea que pode levar a erros.

Já pela Lógica, conforme Hacking, nada é mais claro que a ideia, tipo mais elementar de entidade imaginável. E ele adverte que há uma distinção entre conceber e imaginar uma ideia, isso porque concebemos a ideia de uma figura de mil lados ou ideias como Deus ou vontade, mas não podemos formar imagens dessas coisas. Entretanto há de se questionar por que imagens e objetos do raciocínio poderiam ser considerados ideias, se díspares[iv].

Se tal classificação abrangente incomodou até Kant, segundo ele, a resposta da Lógica de Port-Royal passa pelo ego cartesiano, já que “não temos conhecimento de nada que está fora de nós exceto pela mediação das ideias dentro de nós” (p. 35) e acessíveis por ele. E ele complementa trazendo o princípio de classificação que o ego usa para as ideias: “uma ideia é qualquer objeto que pode ser contemplado por um ser pensante e sem que haja compromisso existencial com qualquer coisa exceto esse próprio ser pensante” (p. 36, grifo nosso).

Isto é, conforme entendemos, há garantias “até” o ego, não “além” dele. Os objetos são ideias do ego, dentro do compromisso existencial dele; existência do eu. Daí a ampla gama de objetos, i.e., ideias (cócegas, imagens e conceitos). Nesse caso, objetos não são moedas ou ventiladores, eles são objetos do desejo ou do pensamento (objetos de), embora para a metafísica daquele empirismo, Locke considere que moedas são objetos e Berkeley não[v]. Ainda nesse interim, uma coisa que Hacking pontua é que ideias são contempladas.

Acontece que a influência cartesiana em Port-Royal leva a ideia, se possuindo objetividade, para o campo do raciocínio e “raciocinar sobre ideias é como ver”, Descartes compara o raciocínio à visão. Segundo ele olhamos para nossas ideias e as escrutinamos separadamente para saber o que confunde o pensamento ou não. Mas Hacking questiona essa associação do mental com a visão e insiste que não formamos imagens de muitos conceitos. Só que, para Descartes, as ideias são iluminadas pelo pensamento, quiçá pela intuição.

Haveria um olhar mental para além do véu que cobre nossa visão e quando percebemos um argumento exclamamos: “agora estou vendo!” – vício de linguagem. Inclusive há uma supremacia da visão sobre os sentidos por parte dos empiristas. Mais do que argumentar com as palavras, foge-se delas para as ideias, embora haja objetos táteis, embora nós possamos prescindir da visão em muitos casos.

E Hacking resume assim a teoria das ideias: há uma classe de objetos chamados ideias que medeiam entre o ego e o resto do mundo e, embora as ideias não sejam imagens, temos acesso a elas pela faculdade da visão. Então, as palavras significam ideias por meio de uma relação causal. Se, aparentemente, no século XVII, havia esse trabalho profilático de escapar da linguagem pelas ideias, a linguagem que interessava à filosofia da época era a o discurso mental encadeado de ideias, despido do discurso público. Será que o discurso mental da época se assemelha ao discurso público de hoje?



[i] Fichamento do terceiro capítulo de Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp, 1999. Ian Hacking. Falamos de sua estratégia aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/12/a-estrategia-de-ian-hacking-para.html.

[ii] Lógica de Port-Royal: https://gulbenkian.pt/publications/a-logica-ou-a-arte-de-pensar/: A Lógica de Port-Royal foi um dos livros mais influentes de lógica filosófica -para o bem e para o mal – da época moderna, não só no seu tempo como nos séculos seguintes, apesar – e talvez por causa – das suas idiossincrasias, visto que não trata apenas de questões tradicionais de lógica, mas também de outros assuntos, que vão da epistemologia à moral, passando pela metafísica e pela retórica. Afirmando-se como um manual de rutura contra a tradição aristotélico-escolástica (no que esta tinha de formalista, de abstrato e de especulativo) mas também contra a conceção ramista da dialética, ela foi, em vez disso, iluminada pelos princípios da nova filosofia cartesiana e, sobretudo, pelo augustinismo dos seus autores jansenistas. A Lógica de Port-Royal não deixou de tratar os temas tradicionais da lógica, dos termos, da lógica proposicional e da silogística – nas primeiras três partes dedicadas a três operações do espírito: a de conceber [concevoir] a de julgar [juger] e a de raciocinar [raisonner] – , mas, num movimento que havia já começado com as lógicas renascentistas, acrescentou, para além daquelas, uma quarta parte sobre o método, ou seja, uma parte dedicada à operação mental de ordenar [ordonner], e, por isso, mais vocacionada para questões epistemológicas, como a possibilidade do conhecimento, a luta contra o ceticismo pirronista (não o metódico), a crença nos factos, sem deixar de dar o devido tratamento aos aspetos propriamente metodológicos, relativos ao momento heurístico da descoberta e à clara – geométrica e demonstrativa – exposição do conhecimento adquirido. O sucesso pedagógico e a tonalidade moderna desta Lógica – já que nela se apresentam inovações importantes como, por exemplo, a distinção entre extensão e compreensão dos termos – fizeram-na, por isso, merecer um lugar incontornável em muitas das histórias tradicionais da lógica. Para além, no entanto, deste lugar cativo na história geral da lógica, verificou-se a partir da segunda metade do século xx uma atenção especial a esta obra de Antoine Arnauld e Pierre Nicole. Tanto no domínio da filosofia da linguagem e da linguística, com os estudos de Noam Chomsky – que acreditou ter descoberto no par que esta obra compõe com a Grammaire Générale et Raisonnée, de Antoine Arnauld e de Claude Lancelot, o anúncio da sua Gramática Generativa, como no trabalho epistemológico da arqueologia das ciências humanas de Michel Foucault – que viu na Lógica de Port-Royal o paradigma da nova episteme clássica – mas também, ainda no âmbito das teorias da argumentação e daquilo a que se tem vindo a chamar “lógica informal” – onde a consideraram como uma lógica inovadora, voltada para a prática argumentativa, antecipando esse âmbito interdisciplinar que tem em conta os contextos e as dinâmicas efetivas da argumentação e que, nessa perspetiva, refletiu sobre alguns esquemas e falácias que haveriam de ser elaborados e sistematizados mais tarde.

[iii] Lembremos que Hacking divide seu livro em três partes: o apogeu das ideias, o apogeu dos significados e o apogeu das sentenças.

[iv] Hacking traz uma passagem na qual Foucault cita Borges com a exemplificação de uma variedade imensa de animais e que seria um conceito extremamente heterogêneo.

[v] Aqui https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/01/breves-ideias-sobre-locke-berkeley.html podemos encontrar um pouco mais dessa distinção. 

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