quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Eu, aqui, agora

Uma introdução aos termos indexicais[i]

Eu, aqui, agora, ele, ontem: termos indexicais geralmente são termos singulares que nos ajudam a identificar particulares e, assim, fazem com que a linguagem toque a realidade. Eles possuem duas espécies de significado: por um lado há um significado linguístico dado por sua função lexical (“eu” é um pronome pessoal, todos sabemos) e por outro há o sentido, quando se fala do conteúdo semântico (eu quem, cara pálida?).

Função Lexical. É o sentido literal do termo e não varia com o contexto do proferimento, que pode envolver o falante, um auditório, um objeto referido, um local e tempo. O contexto do proferimento se divide no contexto de ocorrência (quando sentenciado) e no contexto de avaliação, quando se dá o fato ou evento e se pode determinar seu valor de verdade (“Amanhã vai chover” – dito hoje e verificado amanhã).

Há regras das funções lexicais chamadas de originárias (ou standard – conforme a classificação de Cláudio Costa) que são genéticas, isto é, são regras que nos são apresentadas desde logo quando começamos o processo de aprendizado da linguagem. E podemos investigar a semântica dos termos indexicais por meio de como eles são usados em situações dialógicas na linguagem natural. Costa propõe regras A:

A1. Demonstrativo este: objeto próximo do falante apontado por um gesto de ostensão.

A2. Demonstrativo aquele: objeto distante do falante apontado por um gesto de ostensão.

A3. Pronome pessoal eu: quem profere. “Aplicamos o pronome pessoal ‘eu’ para indicar quem o está proferindo no momento em que o profere”.

A4. Pronome pessoal nós: falantes e ouvintes.

A5. Pronomes pessoais tu, você, ela: auditório.

A6. Advérbios aqui e agora: lugar, momento de lugar.

A7. Advérbios de tempo hoje, ontem: dia do proferimento, dia anterior. Etc.

Conteúdo semântico. A função lexical standard é invariante e se aplica a contextos ilimitados, já que “eu” sempre se refere a pessoa que o proferir no momento que profere[ii]. Entretanto ela é insuficiente quando há significação, por exemplo, “Eu estou com dor de cabeça” é um proferimento que pode ser verdadeiro ou falso quando dito por pessoas diferentes. O conteúdo semântico se liga a uma situação real de fala e muda conforme o objeto ou contexto de proferimento.

O proferimento “Eu estou aqui” permite a identificação física, a pessoa em carne e osso que se auto refere, mas o “Eu estou aqui” pode ter mais riqueza, uma intencionalidade que vai além da representação espaciotemporal. O “Eu estou aqui”, ouvido por um doente que recebe a visita de um ente querido, pode identificar elementos submersos na referência e que são compartilhados entre falante e ouvinte e a história compartilhada por eles.

Sentido fregeano. Não obstante o uso standard do “eu”, de autorreferência, já que poderiam haver usos impessoais, Costa sublinha que há mais do que o conteúdo semântico ser o próprio objeto “eu”, como sugerido pela teoria da referência direta - é preciso dar um sentido a esse objeto. De acordo com Costa, é um erro pensar que o caráter proposto por Kaplan ou o papel proposto por Perry, que seriam o sentido lexical, pudessem se igualar ao sentido fregeano (Sinn), já que o sentido lexical permanece o mesmo, sabendo que o Sinn é múltiplo, são os modos de apresentação da referência (“pegue aquele comprimido” – o maior, “pegue aquele comprimido” – o azul). Para os indexicais então, Costa sugere um retorno ao Sinn para dar conta do conteúdo semântico, como o valor cognitivo de cada modo de apresentação e não da própria referência e, aí, por uma regra de identificação semântica-cognitiva.

A pessoa do eu[iii]. Costa argumenta que, antes de abordarmos pronomes pessoais, precisamos entender o que é uma pessoa qualquer e depois situá-la em um contexto, adicionar o sexo, etc. Parte-se do eu associado a uma regra de identificação e depois se aplica em um contexto espaciotemporal. O objeto real de referência do pronome pessoal “eu” é uma certa pessoa composta de uma mente humana e um corpo biofísico conforme proposto por Strawson. Mais do que o eu humiano, fluxo de sensações, trata-se de um eu empírico, espaciotemporal e psicológico.

O “eu” é nossa auto imagem possui ideias, memórias e convicções, constituição egóica psicológica acessível por partes, mas transcendental se considerado no todo. Se não é uma totalidade já que não pode ser observado e observador ao mesmo tempo, ele pode formar uma ideia de si mesmo no decorrer do tempo. Citando Costa:

“Quando penso em meu próprio eu, porém, é naquilo que sou e no que poderíamos chamar uma constituição egóica subjetiva pertencente à minha pessoa e que sou capaz de experienciar diretamente como um todo, mas do qual formo uma ideia com base em estados mentais que se reiteram, que são mais ou menos interrelacionados, que por vezes vêm à mente e aos quais posso me referir”. (COSTA, 2022, p. 32)

Como não temos acesso direto cognitivo, construímos uma teoria indiretamente a partir do fluxo humiano, construção ideativa que supomos corresponder ao real.

A instanciação da regra lexical.[iv] Costa ressalta que A3 corresponde a uma constituição egóica subjetiva, mas não pessoa particular e encerra o significado linguístico da palavra “eu”. Já o conteúdo semântico é dado por A3s, que é a instanciação de A3, assim enunciado:

“O pronome pessoal ‘eu’ tem a função de indicar uma pessoa formada pela constituição egóica X do indivíduo físico-biológico Y que o está proferindo em um momento T em um lugar L e em circunstâncias C de nosso mundo real, tal como ele é capaz de ser pensado pelo falante e pelo auditório na interação comunicativa”.

Assim, preenchendo as variáveis temos a pessoa particular, mas que não é a referência direta ao eu pessoal. Trata-se do eu pensável, constituição espaciotemporalmente localizável conhecida por falante e auditório, conteúdo semântico cognitivo pensado em A3s que espelha a referência enquanto tal, eu empírico no contexto concreto.

Distinção tríade. Se A3s é o ato de referência indexical, existe A3r que é da pessoa real correspondente, quando as variáveis são preenchidas por elementos do mundo objetivo; A3s: pensado, A3r: fato no mundo. Há aqui um representacionismo defendido por Costa com base em evidências de Bold fMRI, pois é o conteúdo semântico cognitivo que permite o compartilhamento dos “sense data”, já que se pode comunicar sensação de fome não tem fome em si. A Distinção triádica fica assim:

SIGNIFICADO LEXICAL DO INDEXICAL

V

CONTEÚDO SEMÂNTICO COGNITIVO DO INDEXICAL

V

REFERÊNCIA DO INDEXICAL

A3s é a maneira fregeana, o modo de apresentação do objeto (interno, por pensamentos) e A3r o objeto no mundo, sua constituição egóica. Costa faz o mesmo procedimento com relação ao demonstrativo “este” (A1), tomando por base a ontologia de tropos que não cabe retomar aqui.[v] De qualquer forma, entre a função léxica de A1 e o mundo (A1r) há o conteúdo semântico cognitivo A1s do objeto pensado que corresponde a A1r. Na verdade, há intermediários A1s que seriam capazes de explicar imagens alucinadas que não teriam correspondentes no mundo.

Conforme Costa, “A satisfação de A1r costuma conduzir causalmente à satisfação de A1s, que por sua vez nos permite a cognição oferecer-nos um conteúdo cognitivo que é, no final das contas, o modo como a referência nos é apresentada” (p. 38). Mantém-se o espelhamento dos fatos empíricos (o sol nascer) em estados fenomenais (círculo luminoso no olho), contudo baseado em critérios de realidade externa (CRE), que são: 1.) independência da vontade, 2.) máxima intensidade sensorial, 3.) possível intersubjetividade, 4.) seguimento de leis naturais e 5.) adequações ao contexto esperado.

Investigação dos indexicais. Concluiremos essa introdução apontando para o que se seguirá no capítulo 2. Definiram-se tanto regras para A1s (semântico-cognitivas – tropos internos) quanto para A1r (aplicação nas referências – tropos externos). O mesmo pode ser feito de A1 a A7, embora a passagem à referência requeira CRE e consenso interpessoal. Mas Costa investigará na continuidade as concepções sobre a natureza do conteúdo semântico do indexical, tanto pela referência direta (miliana): abordagem de Kaplan que iguala conteúdo e referência e cognitivista (neofregeana): conteúdo é cognitivo, modo de apresentação fregeano (Michael Dummett, Tugendhat) que aplica regra criterial identificadora do objeto particular. Notadamente, são ideias passíveis de uma leitura ontológica em termos de tropos.



[i] Fichamento do capítulo 2. Termos Indexicais. COSTA, C. Cognitivismo Semântico: Filosofia Da Linguagem Sob Nova Chave. Curitiba: Editora Appris, 2022.

[ii] Referência.

[iii] Aqui Costa traz uma análise ontológica e também evoca a metafísica descritiva de Strawson.

[iv] Uma vez mostrada a regra léxica e definido o “eu”, já se pode instanciá-lo pela linguagem.

[v] Ontologia de tropos é proposta de Donald Williams e permite localizar propriedades espaciotemporalmente, superando as ideias platônicas. Então, temos propriedades-t mentais e físicas aliadas à localização para podermos falar de A1 em termos mentais-representacionais, em termos de A1s.

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