domingo, 27 de dezembro de 2015

Da noção de utilidade humana*


Uma investigação é um método filosófico e científico primordial para abordagem de um determinado assunto. Mas uma investigação sempre é feita por um humano. No capítulo 1 da Ética, Espinosa trata de Deus como causa necessária de todas as coisas. Na verdade, para Espinosa só há Deus, tudo emana dele, tudo está nele, necessariamente. Deus não pensa, Deus é, infinitamente. Não há contingência, só há o que não conhecemos (certas coisas são impossíveis para nós). Mas, como conceituamos as coisas oriundas de Deus?
O homem vê a natureza, o homem sente, vive. Para o homem há uma concepção e uma noção fundamental: a de utilidade. Tudo tem um fim, uma finalidade. E uma finalidade humana. Então, temos uma certa maneira de ver as coisas, proveniente de nossa imaginação. A natureza está aí para nos propiciar algo ou para nos trazer um problema, uma dificuldade. Classificamos as coisas entre boas ou ruins, belas ou feias, fáceis ou difíceis – essa classificação é a nossa noção de utilidade humana. O valor das coisas decorre do que colocamos nas coisas a partir de nossa noção de utilidade, pela nossa imaginação. Colocamos um próprio valor nas coisas e isso tudo é criação nossa.
Essa forma de “ver” o mundo se fundamenta na utilidade. Mas a utilidade é uma função que aparece em cada coisa, em cada fenômeno, seja natural ou artificial. Somos orientados por uma finalidade, vivemos e fazemos isso ou aquilo, adquirimos tal coisa, produzimos, destruímos, tudo baseado na noção de utilidade. Essa noção de utilidade caminha no sentido inverso, da finalidade para a coisa, do efeito para a causa. A água existe para tal coisa, a água não é simplesmente algo, independente de qualquer utilidade. O fato de nos orientarmos por essa noção de finalidade nos impõe tentativas de explicação que nunca serão convincentes. Mas somos assim e, sabendo disso, deveríamos nos precaver dessa caraterística nossa e obstruir qualquer tentativa de explicação. As coisas, então, seriam de Deus e não se modelariam há uma caraterística humana de finalidade. As coisas de Deus estão aí antes de nós, mas como sempre achamos que tudo gira em torno do nosso umbigo. A noção de utilidade inverte a ordem temporal e causal da realidade, do mundo, de nós. Deveríamos, então, ir em busca de outro princípio, outro fundamento, que não esse da utilidade, da finalidade, e tentar fundamentar nossa existência de outro ponto de vista, trazendo outras consequências. 
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* Lemos muito rapidamente o primeiro capítulo da Ética de Espinosa (3a edição, tradução e notas de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013): suas definições, axiomas, proposições, demonstrações, corolários, escólios e o apêndice. Colocaremos bem brevemente nossa primeira impressão, considerando: 1) leituras rápidas e superficiais podem gerar análises superficiais e distorcidas; 2) superficial não é supérfluo; 3) nossa capacidade de concentração atual decaiu bastante - há muito barulho no mundo, há muitos objetos atraentes; 4) uma primeira impressão é sempre um recado puro, sem ruídos, não importando muito o resultado final; 5) sempre poderão ser realizadas novas leituras, uma resenha aqui, um comentador acolá e se chega a uma aproximação com a opinião geral, relativa à primeira impressão.

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