quarta-feira, 6 de junho de 2018

Compatibilizando os qualias com o fisicalismo*

Seguimos com a abordagem que Vincetini faz dos qualia e que temos usado para nos trazer mais argumentos para a investigação epifenomenalista[i]. Trataremos primeiramente de Levin e sua tentativa de conciliar qualias com visão fisicalista. Relembremos primeiro, como sugere Vicentini, dos problemas colocados por Nagel, de que há um aspecto subjetivo na experiência que não pode ser reduzido à mera descrição objetiva (ser como morcego)[ii] e Jackson, do experimento do quarto de Mary que afirma que a experiência de ver cores é um acréscimo ao conhecimento. Na base desses dois argumentos está a crítica a redução materialista, ou seja, os qualias seriam uma barreira para o fisicalismo.
A partir deles, Levin argumenta que tais conhecimentos não são teóricos como queriam Nagel e Jackson, mas práticos, ou seja, são habilidades práticas e, por isso, não seriam tratados pelo fisicalismo. Para Levin, Mary, ao sair do quarto, não seria capaz de discriminar entre uma cor azul e outra amarela, já que nunca teve esse tipo de experiência, mas ela saberia que está tendo duas experiências distintas. O que importa, nesse caso, é como descrever cada cor objetivamente, independentemente dos qualias; eles não teriam papel em um conhecimento convencional [de cores]. O equívoco na abordagem dos qualias, segundo Levin, seria em relação ao reconhecimento direto (estado mental => experiência) e ele pode ocorrer devido a uma falta de conhecimento teórico ou dificuldade na aplicação prática de um conceito.
Entretanto, Vicentini tenta compreender como a experiência pode contribuir para o conhecimento teórico a partir de uma via indireta, transmitindo qualidades pela descrição. Por exemplo, ele cita o caso de um especialista em vinho que poderia descrever um novo paladar para outro especialista de maneira satisfatória e que chegaria próximo à fenomenologia objetiva almejada por Nagel, ainda que nessas situações bem peculiares, onde se tem uma experiência vasta no assunto.
Vicentini também aborda a proposta de Shoemaker de tratar os qualias cientificamente, via funcionalismo. Retomaremos aqui a refutação de Shoemaker à objeção mais importante ao funcionalismo, a dos qualias ausentes: haveria em algumas ocasiões a possibilidade de que dois estados mentais funcionalmente iguais pudessem um estar associado a um estado qualitativo e outro não. “An organism might be in pain even though it is feeling not at all, and his consequence seems totally unacceptable.” (p.70). Vicentini levanta se seria possível definir os qualias funcionalmente, ainda sob tal objeção. Shoemaker argumenta que se, mesmo via introspecção, que em último caso seria a nossa última ligação subjetiva com os qualias, não se poderia chegar à comprovação dos qualias, por outro lado, temos acesso a estados qualitativos quando, por exemplo, sentimos dor. Portanto, se a objeção dos qualias ausentes indica que não teríamos conhecimento dos qualias para “saber” se estamos tendo um estado qualitativo ou não, então não haveria como provar se eles existem ou não. Além disso, não há como se sentir a dor desassociada de um estado que qualifique essa dor.
O uso funcionalista dos qualias por Shoemaker se dá na proposta da equivalência qualitativa, ou seja, dados dois estados que possuem as mesmas entradas, saídas e estados sucessivos, funcionalmente falando, tais estados podem ser considerados qualitativamente os mesmos. “Se há, por exemplo, dois copos com líquidos na minha frente e ao prová-los constato que produzem em mim os mesmos qualia, eu tendo a acreditar que ambos têm o mesmo gosto e que são bons exemplos de vinho”. Embora Vicentini ressalte que a similaridade qualitativa só é viável se de fato não haja hipótese dos qualias ausentes, porque não conseguiria trata-los, ela é uma possibilidade interessante de exploração dos qualias cientificamente.



* Análise de Vicentini, Max Rogério. O problema dos qualia na filosofia da mente. Dissertação de Mestrado: Campinas, SP, 1998.
[ii] Não podemos deixar de citar o exemplo usado por Leonardo Stoppa de que os juízes, os ricos, sabem o que passam os pobres, o que os pobres podem sofrer, mas não sabem o que é ser um pobre (https://youtu.be/NaUIWJ3b7kc?t=1759: 9min30).

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