Vicentini
analisa os qualia fazendo uma polarização entre intuição e ciência e enfatizando
que, usando tal noção como crítica ao fisicalismo, deixamos de lado sua
conceituação. Seu ponto principal é: a partir do uso dos qualia pela tradição,
seria possível tratá-los por uma abordagem fiscalista?
Intuição
versus ciência.
Para ele, há uma incongruência entre intuição e ciência. Por um lado, a
intuição é a forma como experimentamos o mundo pelos sentidos, ou seja, o mundo como ele é, com seus odores,
sabores e cores. Por outro lado, uma visão científica do mundo nos é
apresentada como um conjunto de elementos básicos e enunciados de leis. Diante
disso, há uma imagem do mundo que não tem lugar na descrição científica[i]. É
aí que aparece o conceito de qualia que caracteriza a maneira como as coisas
nos aparecem. Vicentini remete essa distinção ao século XVII, em um experimento
de pensamento discutido pelos empiristas Locke e Berkeley.
Os
limites do conhecimento teórico. A fim de mostrar que
as ideias se originam dos sentidos, os empiristas ingleses propuseram um
experimento do pensamento no qual se desejava saber se um cego, que de repente
começasse a enxergar, poderia discriminar um cubo de uma esfera, apenas pela
visão. A resposta dada é que não, já que a ideia das coisas visíveis se
originava pela experiência visual[ii]. Do mesmo modo, não seria possível o conhecimento de um fato apenas pela descrição objetiva do
vocabulário neutro da ciência. Entre a crença em nossas percepções
qualitativas conscientes e a pretensão fisicalista que tudo pode ser conhecido
objetivamente, a ciência não propicia uma visão completa do mundo.
A
colocação do problema. Segundo Vicentini, qualia é um termo
filosófico usado para denotar as características intrínsecas de nossas
sensações obtidas pela introspecção e, como tal, se opõe à possibilidade de que
a consciência caiba no cérebro, se opõe a uma consciência corporificada.[iii] Não
obstante essa definição, Vicentini ressalta que a questão é mal formulada. Tais características intrínsecas
teriam surgido nas décadas de 50 e 60 contra as teorias de identidade que reduziam a mente à matéria. Porém, para
ele, há uma confusão no conceito de qualia que é usado para fazer a crítica ao
fisicalismo. Do que questiona se a ideia de qualia seria intratável. Ou seja,
ainda não se achou maneira de definir os qualia, como, por exemplo, explicar a
outra pessoa o sabor do creme de cupuaçu se ela nem sabe que é uma fruta. Isso seria
possível?
Dois
problemas. Quais características que a tradição atribui ao
conceito de quale? Vemos céu e mar igualmente azuis, como podemos afirmar que
percebemos uma só cor? Fazemos isso comparando as duas sensações em nossa consciência
e emitimos um juízo. Mas, como afirmar que outro observador tem a mesma
sensação que a nossa ou até se tem alguma? Embora possa haver concordância
verbal, a comparação das qualidades que experenciamos parece impossível. Tal
impossibilidade sugere que os qualia são 1) de acesso somente privado, 2) inefáveis,
dadas suas propriedades intrínsecas e 3) poderiam ser acessados diretamente por
cada um de nós. Enfatiza Vicentini, qual o problema, então? Para ele, é o caso de saber se os qualia podem ser tratados por uma abordagem fisicalista, que seria crença dominante nas ciências da mente contemporâneas. A
possibilidade de tratamento é a análise de argumentos para saber, primeiro, quais
as propriedades dos qualia, através da literatura filosófica recente e, depois,
se eles realmente existem. Vejamos o tratamento dado por Nagel e Jackson aos qualia para criticar o fisicalismo e a abordagem crítica de Dennett:
intuições equivocadas e viciadas na visão cartesiana do mundo. Vicentini investigará
se devemos aceitar os qualia como descreve a tradição ou colocar a questão em
outros termos.
A
abordagem de Thomas Nagel. Para Nagel, a ciência jamais
alcançará o conhecimento do que é ser como algo (um morcego, por exemplo). Ele
visa rebater a redução do mental ao físico e a dificuldade de abordar a consciência. Pois, se há ser consciente, existe algo que é ser como aquele organismo, mas isso é característica do caráter subjetivo pertencente intrinsicamente a quem experiencia o mundo. Então, há ignorância a respeito da ontologia desses
estados mentais conscientes subjetivos pois, para cada estado consciente, há seu
próprio ponto de vista, porém a ciência busca o ponto de vista objetivo e comum[iv]. Não
podemos conhecer a experiência de um órgão dos sentidos que se comporte como
sonar, pois não temos tal estrutura perceptiva e não podemos nem ao menos
imaginar, já que a imaginação também é dependente de nossas experiências. Isso é um limite
da capacidade humana de conhecer, porque “não podemos sentir como um morcego sem
sermos também um morcego”. As nossas percepções são percepções para nós e não sabemos
como a orientação espacial é sentida por um morcego. Há um tipo de experiência
que escapa aos métodos científicos, onde o caráter subjetivo se contrapõe ao
caráter objetivo da ciência moderna.
A
abordagem de Frank Jackson. Seguindo a mesma linha, Jackson argumenta
que o Fisicalismo ignora aspectos informacionais do mundo, como a nossa
atividade consciente. Por mais informações físicas que tenhamos, elas não dão
conta dos qualia, denotados por ele como sensações corpóreas e experiências
perceptivas. Vicentini pergunta, por exemplo, se conseguimos descrever o aroma
de uma flor[v]. Através
do experimento do quarto de Mary, Jackson propõe a situação onde uma pessoa é
confinada, desde o nascimento, em um quarto fechado sem contato com cores, com
uma TV em preto e branco. Ela se torna uma neurofisióloga muito respeitada e
sabe tudo sobre as cores e mesmo seus efeitos em nosso cérebro. A questão é, ao
sair do quarto, Mary sabe que o sol é amarelo, mas ela tem acrescida uma nova
informação do mundo ao ver o sol
amarelo? Respondendo afirmativamente, Jackson se contrapõe ao fisicalismo, posicionando-se
a favor dos qualia. Para Vicentini, tal argumentação está mais preocupada com
uma crítica ao fisicalismo do que a conceituação dos qualia.
A
abordagem de Daniel Dennett. Finalizaremos, por agora, com as pesquisas Dennett que apontam para uma aporia no tratamento dos qualia, pelo menos da forma como conceituados pela tradição. Lançando mão do experimento de
pensamento dos qualia invertidos, originalmente proposto por Locke, seria impossível comparar a experiência subjetiva de duas pessoas ao ver uma cor. Não entraremos no detalhe dos experimentos, mas uma cirurgia poderia ser feita em uma pessoa e ela acordaria vendo o sol azul e a grama vermelha, porém não saberíamos se o que mudou foi algo no seu nervo ótico ou na memória das cores.
Então, concorde-se ou não com os qualia, esse é um importante conceito usado na filosofia da mente que nos ajuda pensar cada teoria a partir de seu tratamento.
(*) Análise de Vicentini, Max Rogério. O problema dos qualia na filosofia da mente. Dissertação de Mestrado: Campinas, SP, 1998.
[i] Em algum aspecto essa polarização pode remeter à fenomenologia de Husserl.
[i] Em algum aspecto essa polarização pode remeter à fenomenologia de Husserl.
[ii] Embora predominante, o esquema empirista considerava que a mente era uma folha em branco que se servia da experiência para escrever conceitos no cérebro. Mariano nos mostra que o cérebro não é uma tábula rasa, e mesmo bebês já tem uma importante maquinaria conceitual. Porém, embora o cérebro consiga ligar as experiências de todo o aparelho sensorial, o experimento de Locke tem validade, pois a visão sem uso se degenera em um cego. Cf A vida secreta da mente, de Mariano Sigman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017. P. 15.
[iii] E a consciência encarnada de
Merleau-Ponty?
[iv] Para Vicentini, não fica claro como Nagel afirma que morcegos têm
consciência. Ainda mais que, considerando-se a subjetividade própria de cada um e que não se
pode comprovar, Nagel se aproxima de uma visão solipsista, mas atribui consciência ao morcego. Muito embora, para Vicentini pareça anti-intuitivo negar que não a tenham, mesmo com argumentos
comportamentalistas inconclusivos.
[v] E, adicionamos, um sentimento de tristeza ou
de angústia? No sentido epifenomenalista, um sentimento que causa um
choro é uma causação descendente do mental ao corporal?
A respeito da nota [i], ver https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/06/ia-do-representacao-cognitiva-ao.html.
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