segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Um debate sobre privacidade e segurança a partir dos vazamentos de Snowden

Trata da promiscuidade e ambivalência no ecossistema tripartite do Big Data, que envolve instituições, empresas e academia[i]

Introdução. Na introdução do artigo, van Dijck recapitula o vazamento de Snowden, em 2013, que relata práticas de espionagem da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos no Facebook, Google, Apple, etc., ocasião em que se mostrava ao mundo que seus agentes tinham acesso aos dados dos cidadãos de forma integral. Isso já se revelava pela máxima: “Confiamos em Deus, todos os outros, nós monitoramos” e, então, ficava claro que nossas informações pessoais têm seus metadados compartilhados pelas corporações de redes sociais com agências de inteligência ou comercializados com terceiros, o que significa exposição da privacidade em troca de serviços gratuitos.

Para van Dijck, a tolerância das pessoas com tal prática se daria devido à difusão da datificação como novo paradigma científico e social[ii]. Entretanto, van Dijck visa desconstruir as bases ideológicas dessa prática que vem se difundindo na academia e entre os adeptos da tecnologia como oportunidade de investigar o comportamento humano. Incomoda van Dijck a crença na quantificação objetiva que, apesar de exemplos convincentes do Big Data, também envolve a confiança nos agentes institucionais que manipulam tais (meta)dados.

Essas noções de crença e confiança são particularmente problemáticas para van Dijck pois os documentos de Snowden já mostravam que as pessoas têm fé nas regras que os agentes se guiam para executar a vigilância dos dados, quando na verdade a NSA costuma desobedecer a decisões judiciais e testar limites legais sobre a invasão de privacidade. Tudo isso mostra uma confusão nas premissas ideológicas do dataísmo[iii] colocando a credibilidade do ecossistema em xeque e a pergunta que van Dijck faz sobre qual atitude crítica tomar perante esse cenário.

Datificação e “mineração da vida” como um novo paradigma científico. Foi o advento da Web 2.0 e redes sociais como Facebook, Twitter, LinkedIn e Youtube, que fizeram da datificação um paradigma, na medida que permite codificação de comportamentos sociais que, quantificados em metadados, se tornam recursos valiosos. Ressalta van Dijck que o Big Data surge como “santo graal do conhecimento comportamental”, como se pode notar quando o Twitter, se passando por plataforma neutra, traz a espontaneidade dos “trends” como termômetros de emoções e reações sociais, ainda que baseados em hashtags e algoritmos. Para os cientistas da informação, a mídia social ecoa pegadas naturais que veem o Twitter como detector de sentimentos que promete ser mais confiável que entrevistas ou levantamentos tradicionais, embora se tenha em conta os vieses da representatividade dos dados lá coletados ou mesmo o favorecimento de usuários influentes.

Além disso, os entusiastas da datificação também ressaltam os padrões que são gerados nas plataformas que, através de likes do Facebook, permitem predizer comportamentos como orientação sexual e valores religiosos que ajudariam em analises psicológicas e recomendação de produtos, além de aperfeiçoar seus próprios serviços. Porém, importa registrar tudo para prever planos futuros, a chamada “mineração da vida” (life mining) que gera conhecimentos úteis para serviços de inteligência policial, isto é, vigilância, e também marketing. Contudo, parece-se ignorar comportamentos como manipulação por robôs e / ou as chamadas estratégias de monetização pelos algoritmos de recomendação que vão de encontro à dita neutralidade. É aí que van Dijck mostra que a datificação se apoia em pressupostos de normas sociais dominantes, por uma permuta de informações pessoais por serviços e abrindo mão da privacidade. Tudo isso serve de ativo que é processado fora de contexto para serem vendidos pelas plataformas e, chancelado pela ANS, deixa claro o papel ideológico em um inextricável nó entre sociabilidade, pesquisa e comércio.

Dataísmo: desvendando as bases ideológicas da datificação. Conforme van Dijck, a racionalidade da mineração de dados se assenta em duas pressuposições ontológicas e epistemológicas: a crença na objetividade da quantificação do comportamento humano e na sua predição em cima de (meta)dados. Sobre o primeiro ponto, as pilhas de (meta)dados são tudo, menos objetivas, já que por trás de “likes” e trending topics há algoritmos subjacentes que calculam valores sociais. Ora, os dados brutos então é que são minerados para se extrair algo e, como podem ser ruins, incompletos ou insuficientes, acabam sendo guiados por questões delimitadas. Ou seja, há questões de fundo que formam um quadro interpretativo que prefigura a análise dos dados e, daí, geram um padrão preditivo[iv].

Há de se perguntar sobre por que buscar determinados padrões nas bases de (meta)dados, com quais objetivos e interesses? Milhares de postagens de mães jovens no Facebook podem ser investigados sobre um prisma comportamental (hábitos alimentares), médico (depressão pós-parto) ou de consumo (produtos para bebê), por exemplo. Conforme van Dijck:

“Os métodos quantitativos requerem firme questionamento qualitativo para contestar a alegação de que os padrões de dados são fenômenos naturais. A pesquisa de Big Data sempre envolve um (sem trocadilho) prisma explícito.”

Ou seja, dados brutos minerados pelo Big Data poderiam tomar outras visões se por um enfoque das ciências humanas ou sociais: há perspectivas diferentes entre médicos e criminologistas. Mas é nessa retórica dos dados que a lógica dataísta pretende convencer, de que os dados estariam fora de estrutura predefinidas, sem objetivos prévios ou por mero interesse no comportamento humano. Isso posto, há que se explicitar tais prerrogativas se se deseja a confiança no paradigma da datificação.

Dataísmo e confiança nas instituições. Com o aumento de atividades online todo o ecossistema necessita da confiança dos usuários, mas sua integridade, segundo as plataformas, deveria estar a cargo das agências de governo que deveriam zelar pela privacidade. Se os autores de Big Data clamam por auditores de governança, chamados “algoritmistas”, a academia também pede transparência das agências.  Fica claro, então, a distinção de papel de cada ator na busca por confiança e credibilidade embora, conforme os arquivos de Snowden mostraram, muitas vezes instituição de coleta se misturem com agências reguladoras. Na verdade, tanto o meio corporativo, quanto o acadêmico e estatal desejam acesso aos dados e manutenção do paradigma da datificação, posto as promessas de predição do comportamento. Mas, mostra-se que academia e setor público usufruem dos dados coletados das plataformas, que se dizem mais eficientes e capazes de antecipar as tendências. Além disso, a forte intercâmbio de técnicos entre NSA e Vale do Silício, por exemplo, com desenvolvimento conjunto de tecnologia, embora um buscando inteligência e outro dinheiro, mas muitas vezes convergindo, os três setores, no uso de ferramentas.

Pois bem, a doção do dataísmo traz uma crença na proteção dos dados dos usuários, mas também confiança na independência entre plataformas, agências e pesquisadores. Porém, aí reside o conflito, já que o ecossistema está todo conectado, seja na infraestrutura como na lógica operacional. A credibilidade se coloca em risco devido ao monumental fluxo de dados (e-mails, vídeos, texto, som e metadados) que extrapola territórios e se digladia em zonas de acesso e restrições, levando ao questionamento dos usuários-cidadãos sobre as interrelações entre empresas e governo, levando a debates políticos e confrontos judiciais. É essa agregação problemática entre a confiança institucional e as premissas da datificação que van Dijck enfatiza, somando-se ainda o interesse relevante na data vigilância.

Data vigilância e a luta por credibilidade. Data vigilância significa monitoramento contínuo de dados com sérias consequências no contrato social entre empresas e governo, bem como envolvendo os cidadãos consumidores. Ora, a questão data vigilância como fator de risco na confiança do ecossistema se colocou depois do vazamento de Snowden, quando surpreendentemente as plataformas (Google, Facebook, Yahoo e Microsoft) processaram a NSA por colocar em risco a privacidade das pessoas em troca de sua proteção.

Mas é ambivalência que está na base da relação das plataformas com as agências. Depois do 11 de setembro e a Lei Patriótica, as empresas se submente ao governo diminuindo a confiança do público nas estratégias de data vigilância. Por outro lado, as empresas, ao mesmo tempo que pedem mais leis, acusam o governo de regulamentação excessiva. Ambivalência que se mostra em uma suposta relação de transparência entre empresas e usuários: se elas apelam pelo compartilhamento de dados, não devolvem transparência, além de constantemente atualizarem seus Termos de Uso sobre políticas de privacidade, que levam a acionamentos de grupo de defesa de consumidores. E a ambivalência também ocorre dentro do governo, já que as agências de inteligência têm interesses contraditórios com os órgãos reguladores, o que dificulta ainda mais a confiança no ecossistema e na relação privacidade-segurança.

Contudo, van Dijck aponta que a responsabilidade por manter a credibilidade do sistema vem da academia, mostrando que o paradigma de datificação não é neutro e evitando aceitação acrítica de suas premissas ideológicas e comerciais. Se já foi mostrado aqui os vieses e indagações, van Dijck sugere uma investigação do método cientifico que traga abordagens computacionais, etnográficas e estatísticas para verificabilidade das análises preditivas. São os acadêmicos que precisam passar em revista as questões epistemológicas e ontológicas, já que podem arbitrar, sobre fatos e opiniões, conforme a referência que van Dijck faz a Bruno Latour.

Por fim, van Dijck salienta que foram as ações inescrupulosas de Snowden que desencadearam o debate sobre data vigilância, mostrando a força de uma “agente bomba” que abalou o complexo de forças estatal-industrial-acadêmico, que mostraram as falhas estruturais do ecossistema, a incapacidade dos usuários frente a complexidade do sistema e ao novo paradigma de sociabilidade. Entretanto, a despeito da maioria dos estadunidenses ainda acreditam que os dados são usados para fins outros que a luta contra o terrorismo, a dataficação com paradigma neutro e data vigilância normalizada como prática de monitoramento social faz com que esses temas ainda devam ser esclarecidos perante à sociedade.


[i] Conforme Dijck, J. van. (2017). Confiamos nos dados? As implicações da datificação para o monitoramento social. MATRIZes, 11(1), 39-59. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v11i1p39-59. Abstrai-se na resenha todas as referências, para tal deve-se buscar o original.

[ii] O termo “datafication” foi cunhado por Mayer-Schoenberger e Cukier, em 2013, para se referirem à transformação da ação social em dados que podem ser quantificados e usados em tempo real ou para fazer predições sobre o comportamento humano. Já tratamos do tema em uma reflexão anterior a partir do Lab404, aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/10/dataficacao-da-vida.html, porém como dataficação e não datificação.

[iii] No artigo o autor usa indistintamente datificação e dataísmo. O último, entendemos, estaria mais ligado a Yuval Harari.

[iv] Por exemplo, acompanhar o comportamento de determinados grupos em situações específicas para prever situações de compra que são repassadas aos anunciantes.

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