Trata da promiscuidade e ambivalência no ecossistema tripartite do Big Data,
que envolve instituições, empresas e academia[i]
Introdução. Na introdução do artigo, van Dijck
recapitula o vazamento de Snowden, em 2013, que relata práticas de espionagem da
Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos no Facebook, Google, Apple,
etc., ocasião em que se mostrava ao mundo que seus agentes tinham acesso aos
dados dos cidadãos de forma integral. Isso já se revelava pela máxima:
“Confiamos em Deus, todos os outros, nós monitoramos” e, então, ficava claro
que nossas informações pessoais têm seus metadados compartilhados pelas
corporações de redes sociais com agências de inteligência ou comercializados
com terceiros, o que significa exposição da privacidade em troca de serviços
gratuitos.
Para van Dijck, a tolerância das pessoas com tal
prática se daria devido à difusão da datificação como novo paradigma científico
e social[ii].
Entretanto, van Dijck visa desconstruir as bases ideológicas dessa prática que
vem se difundindo na academia e entre os adeptos da tecnologia como
oportunidade de investigar o comportamento humano. Incomoda van Dijck a crença
na quantificação objetiva que, apesar de exemplos convincentes do Big Data,
também envolve a confiança nos agentes institucionais que manipulam tais
(meta)dados.
Essas noções de crença e confiança são
particularmente problemáticas para van Dijck pois os documentos de Snowden já mostravam
que as pessoas têm fé nas regras que os agentes se guiam para executar a
vigilância dos dados, quando na verdade a NSA costuma desobedecer a decisões judiciais
e testar limites legais sobre a invasão de privacidade. Tudo isso mostra uma
confusão nas premissas ideológicas do dataísmo[iii]
colocando a credibilidade do ecossistema em xeque e a pergunta que van Dijck
faz sobre qual atitude crítica tomar perante esse cenário.
Datificação e “mineração da vida” como um novo
paradigma científico. Foi o advento da Web 2.0 e redes sociais como Facebook,
Twitter, LinkedIn e Youtube, que fizeram da datificação um paradigma, na medida
que permite codificação de comportamentos sociais que, quantificados em
metadados, se tornam recursos valiosos. Ressalta van Dijck que o Big Data surge
como “santo graal do conhecimento comportamental”, como se pode notar quando o
Twitter, se passando por plataforma neutra, traz a espontaneidade dos “trends”
como termômetros de emoções e reações sociais, ainda que baseados em hashtags e
algoritmos. Para os cientistas da informação, a mídia social ecoa
pegadas naturais que veem o Twitter como detector de sentimentos que promete
ser mais confiável que entrevistas ou levantamentos tradicionais, embora se
tenha em conta os vieses da representatividade dos dados lá coletados ou mesmo
o favorecimento de usuários influentes.
Além disso, os entusiastas da datificação também
ressaltam os padrões que são gerados nas plataformas que, através de likes do
Facebook, permitem predizer comportamentos como orientação sexual e valores
religiosos que ajudariam em analises psicológicas e recomendação de produtos,
além de aperfeiçoar seus próprios serviços. Porém, importa registrar tudo para
prever planos futuros, a chamada “mineração da vida” (life mining) que gera
conhecimentos úteis para serviços de inteligência policial, isto é, vigilância,
e também marketing. Contudo, parece-se ignorar comportamentos como manipulação
por robôs e / ou as chamadas estratégias de monetização pelos algoritmos de
recomendação que vão de encontro à dita neutralidade. É aí que van Dijck mostra
que a datificação se apoia em pressupostos de normas sociais dominantes, por
uma permuta de informações pessoais por serviços e abrindo mão da privacidade.
Tudo isso serve de ativo que é processado fora de contexto para serem vendidos
pelas plataformas e, chancelado pela ANS, deixa claro o papel ideológico em um
inextricável nó entre sociabilidade, pesquisa e comércio.
Dataísmo: desvendando as bases ideológicas da
datificação. Conforme van Dijck, a racionalidade da mineração
de dados se assenta em duas pressuposições ontológicas e epistemológicas: a
crença na objetividade da quantificação do comportamento humano e na sua
predição em cima de (meta)dados. Sobre o primeiro ponto, as pilhas de
(meta)dados são tudo, menos objetivas, já que por trás de “likes” e trending
topics há algoritmos subjacentes que calculam valores sociais. Ora, os
dados brutos então é que são minerados para se extrair algo e, como podem ser
ruins, incompletos ou insuficientes, acabam sendo guiados por questões delimitadas.
Ou seja, há questões de fundo que formam um quadro interpretativo que prefigura
a análise dos dados e, daí, geram um padrão preditivo[iv].
Há de se perguntar sobre por que buscar
determinados padrões nas bases de (meta)dados, com quais objetivos e
interesses? Milhares de postagens de mães jovens no Facebook podem ser
investigados sobre um prisma comportamental (hábitos alimentares), médico
(depressão pós-parto) ou de consumo (produtos para bebê), por exemplo. Conforme
van Dijck:
“Os métodos quantitativos
requerem firme questionamento qualitativo para contestar a alegação de que os
padrões de dados são fenômenos naturais. A pesquisa de Big Data sempre envolve
um (sem trocadilho) prisma explícito.”
Ou seja, dados brutos minerados pelo Big Data
poderiam tomar outras visões se por um enfoque das ciências humanas ou sociais:
há perspectivas diferentes entre médicos e criminologistas. Mas é nessa
retórica dos dados que a lógica dataísta pretende convencer, de que os dados
estariam fora de estrutura predefinidas, sem objetivos prévios ou por mero
interesse no comportamento humano. Isso posto, há que se explicitar tais
prerrogativas se se deseja a confiança no paradigma da datificação.
Dataísmo e confiança nas instituições. Com o
aumento de atividades online todo o ecossistema necessita da confiança dos
usuários, mas sua integridade, segundo as plataformas, deveria estar a cargo
das agências de governo que deveriam zelar pela privacidade. Se os autores de
Big Data clamam por auditores de governança, chamados “algoritmistas”, a
academia também pede transparência das agências. Fica claro, então, a distinção de papel de
cada ator na busca por confiança e credibilidade embora, conforme os arquivos
de Snowden mostraram, muitas vezes instituição de coleta se misturem com
agências reguladoras. Na verdade, tanto o meio corporativo, quanto o acadêmico
e estatal desejam acesso aos dados e manutenção do paradigma da datificação, posto
as promessas de predição do comportamento. Mas, mostra-se que academia e setor
público usufruem dos dados coletados das plataformas, que se dizem mais
eficientes e capazes de antecipar as tendências. Além disso, a forte
intercâmbio de técnicos entre NSA e Vale do Silício, por exemplo, com
desenvolvimento conjunto de tecnologia, embora um buscando inteligência e outro
dinheiro, mas muitas vezes convergindo, os três setores, no uso de ferramentas.
Pois bem, a doção do dataísmo traz uma crença na
proteção dos dados dos usuários, mas também confiança na independência entre
plataformas, agências e pesquisadores. Porém, aí reside o conflito, já que o
ecossistema está todo conectado, seja na infraestrutura como na lógica
operacional. A credibilidade se coloca em risco devido ao monumental fluxo de
dados (e-mails, vídeos, texto, som e metadados) que extrapola territórios e se
digladia em zonas de acesso e restrições, levando ao questionamento dos
usuários-cidadãos sobre as interrelações entre empresas e governo, levando a
debates políticos e confrontos judiciais. É essa agregação problemática entre a
confiança institucional e as premissas da datificação que van Dijck enfatiza,
somando-se ainda o interesse relevante na data vigilância.
Data vigilância e a luta por credibilidade. Data
vigilância significa monitoramento contínuo de dados com sérias consequências
no contrato social entre empresas e governo, bem como envolvendo os cidadãos
consumidores. Ora, a questão data vigilância como fator de risco na confiança
do ecossistema se colocou depois do vazamento de Snowden, quando
surpreendentemente as plataformas (Google, Facebook, Yahoo e Microsoft)
processaram a NSA por colocar em risco a privacidade das pessoas em troca de
sua proteção.
Mas é ambivalência que está na base da relação das
plataformas com as agências. Depois do 11 de setembro e a Lei Patriótica, as
empresas se submente ao governo diminuindo a confiança do público nas
estratégias de data vigilância. Por outro lado, as empresas, ao mesmo tempo que
pedem mais leis, acusam o governo de regulamentação excessiva. Ambivalência que
se mostra em uma suposta relação de transparência entre empresas e usuários: se
elas apelam pelo compartilhamento de dados, não devolvem transparência, além de
constantemente atualizarem seus Termos de Uso sobre políticas de privacidade,
que levam a acionamentos de grupo de defesa de consumidores. E a ambivalência
também ocorre dentro do governo, já que as agências de inteligência têm
interesses contraditórios com os órgãos reguladores, o que dificulta ainda mais
a confiança no ecossistema e na relação privacidade-segurança.
Contudo, van Dijck aponta que a responsabilidade por
manter a credibilidade do sistema vem da academia, mostrando que o paradigma de
datificação não é neutro e evitando aceitação acrítica de suas premissas ideológicas
e comerciais. Se já foi mostrado aqui os vieses e indagações, van Dijck sugere uma
investigação do método cientifico que traga abordagens computacionais, etnográficas
e estatísticas para verificabilidade das análises preditivas. São os acadêmicos
que precisam passar em revista as questões epistemológicas e ontológicas, já
que podem arbitrar, sobre fatos e opiniões, conforme a referência que van Dijck
faz a Bruno Latour.
Por fim, van Dijck salienta que foram as ações inescrupulosas de Snowden que desencadearam o debate sobre data vigilância, mostrando a força de uma “agente bomba” que abalou o complexo de forças estatal-industrial-acadêmico, que mostraram as falhas estruturais do ecossistema, a incapacidade dos usuários frente a complexidade do sistema e ao novo paradigma de sociabilidade. Entretanto, a despeito da maioria dos estadunidenses ainda acreditam que os dados são usados para fins outros que a luta contra o terrorismo, a dataficação com paradigma neutro e data vigilância normalizada como prática de monitoramento social faz com que esses temas ainda devam ser esclarecidos perante à sociedade.
[i] Conforme Dijck, J. van. (2017). Confiamos
nos dados? As implicações da datificação para o monitoramento social.
MATRIZes, 11(1), 39-59. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v11i1p39-59. Abstrai-se na resenha todas as
referências, para tal deve-se buscar o original.
[ii] O termo “datafication” foi cunhado
por Mayer-Schoenberger e Cukier, em 2013, para se referirem à transformação da
ação social em dados que podem ser quantificados e usados em tempo real ou para
fazer predições sobre o comportamento humano. Já tratamos do tema em uma
reflexão anterior a partir do Lab404, aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/10/dataficacao-da-vida.html, porém como dataficação e não
datificação.
[iii] No artigo o autor usa
indistintamente datificação e dataísmo. O último, entendemos, estaria mais
ligado a Yuval Harari.
[iv] Por exemplo, acompanhar o
comportamento de determinados grupos em situações específicas para prever
situações de compra que são repassadas aos anunciantes.
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