domingo, 28 de novembro de 2021

If you see something say something

Prescreve um discurso híbrido (descritivo-prescritivo) para a ciência contemporânea[i]

Bruno Latour retoma o tema da primeira conferência, ou seja, da disputa entre climatologistas e climatocéticos, tratando a questão do clima como uma guerra sobre a qual os cientistas não podem se calar. A conferência traz verdades inconvenientes, a partir de uma matéria do Le Monde, que mostra que o nível de dióxido de carbono no ar é o mais alto em 2,5 milhões de anos[ii]. Ora, mais do que descrever um fato, tal reportagem também o prescreve, independentemente de se em tom de constatação ou performativo e, também, a reboque do que deve ser enfatizado sobre o Antropoceno[iii]: sim, o ser humano mudou a geo-história e já a teria impactado em um ponto de não retorno.

Porém, rompendo a neutralidade axiomática, tais enunciados sobre o clima alertam para um agir, uma potência de agir no sentido espinosano, como adverte Latour, mas eles não dizem detalhadamente o que fazer. Ora, além disso, a potência de agir se rompe a atores inertes que seriam do discurso científico ou animados, da subjetividade humana ou de um rio, exemplo que Latour apresenta, e tais fronteiras se confundem quando eventos naturais são mais potentes que ações humanas, etc.[iv] A isso soma-se também o antropomorfismo que jornalistas acrescentam em suas descrições de fatos científicos e que se transformam em dramas narrativos, conforme continua a argumentação de Latour. Ali, vê-se como hormônios e neurotransmissores “inertes” atuam no organismo e impõem a sua vontade, etc., e se mostra como atores humanos podem ter sua vontade relegada e atores não humanos terem a vontade exacerbada, assim como não se distingue Natureza e Cultura, todos tendo objetivos e intenções ao invés de se partir de atores arbitrários.

Se Galileu disse: “A terra se move!”, hoje podemos dizer: “A terra se co-move” (treme, terra animada...). Se lá ele mostrou que não só a terra era corruptível[v], hoje mais do que corruptível, além de movimento, ela tem um comportamento. Latour trata de uma contrarrevolução copernicana, o Novo Regime Climático, no qual emerge uma terra inquieta e desperta pela nossa ação e que tem ela mesma potência de agir. Terra que passa de mundo objetivo a ser controlado pela ciência para sujeito, esvaziando a polarização moderna sujeito-objeto[vi].

Então, passa-se do contrato social proposto por Rousseau ao contrato natural desenvolvido por Michel Serres[vii]. Esse último com inspiração newtoniana, pois foi Newton quem tratou da interação entre “objetos”, por exemplo, como é o caso da força de gravidade, conceito que explicava a atração entre corpos e que poderia, sub-repticiamente, se dar por uma “força angelical”, senão que força seria essa que não a dos anjos? Todavia, o contrato natural se dilui em um compêndio de entes com suas potências de agir em exercício, seja um ser humano, um rio ou um hormônio.

Mas é precisamente uma distinção entre Cultura e Natureza que tenta fazer com que se (des)anime os atores materiais e se superanime os humanos. Se as narrativas dos acontecimentos têm causas e consequências que se pretendem fora do mundo da liberdade humana, Latour argumenta que a própria semiótica pode se aplicar a todos os agentes que ele trata em seus exemplos, pois é pela ação que eles significam a sua existência em um mundo aninado no qual estamos implicados.

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Fechando questão, nessa 2ª. Conferência Latour procurou mostrar que a Terra não tem somente movimento, mas comportamento e, nesse sentido, “não está morta”, não é inerte como tendendo a permanecer na inércia, oriunda, segundo ele, de uma potência de agir entre causas e consequências, mas presa nas primeiras e produzindo o efeito da desanimação mas também aí remetendo a uma causa primeira como que criacionista.

Segundo Latour, uma visão científica da natureza dentro da série causal deixa de fora o acontecimento e retira do mundo sua historicidade. Ele aponta, então, que se saia da “religião da natureza” e se possa vê-la animada ainda que hoje como Gaia em estado permanente de guerra. A natureza deixa de ser pano de fundo e se junta à luta e passa a ser um sujeito ativo enquanto os humanos estão passivos, senão inertes.



[i] Resenha da Segunda Conferência de Bruno Latour: Como não des(animar) a natureza. Em LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu Editora / Ateliê de Humanidades Editorial, 2020.

[ii] Ultrapassou-se o limiar de 400 partes por milhão (ppm). Outro dado que Latour cita é a conversão de nitrogênio atmosférico em fertilizantes, o que nos leva a eventos da ordem de bilhões de anos atrás. Conforme Agricultura industrial e ciclo do nitrogênio, artigo de Antonio Silvio Hendges, disponível em https://www.ecodebate.com.br/2010/07/01/agricultura-industrial-e-ciclo-do-nitrogenio-artigo-de-antonio-silvio-hendges/, esse processo era antes natural e passa a ser feito industrialmente depois da 2ª. Grande Guerra, pelas sobras de nitrato de amônio usado para fabricar explosivos. Então, “ainda estamos comendo as sobras da Segunda Guerra (Vandana Shiva)”. Porém, tem por base os combustíveis fósseis, na proporção de uma caloria de combustível fóssil por uma caloria de comida. Apesar de haver 78% de nitrogênio atmosférico, sua distribuição é irregular, com grandes populações subnutridas sem acesso a ele, como na África. Por outro lado, em monoculturas há grande contaminação ambiental por conta do nitrogênio sintético que se perde no processo produtivo, principalmente no Brasil, China e Rússia. Conforme Antônio: “Os efeitos da utilização indiscriminada de fertilizantes nitrogenados e do atual modelo de desenvolvimento da agricultura e da agropecuária podem ser tão impactantes e prejudiciais para o ambiente e a humanidade como as mudanças climáticas, sendo um dos principais fatores que afetam negativamente a biodiversidade.”

[iii] Conforme https://museudoamanha.org.br/pt-br/antropoceno: Antropoceno é um termo formulado por Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Química de 1995. O prefixo grego “antropo” significa humano; e o sufixo “ceno” denota as eras geológicas. Este é, portanto, o momento em que nos encontramos hoje: a Época dos Humanos. Aquela em que o Homo sapiens constata que a civilização se tornou uma força de alcance planetário e de duração e abrangência geológicas. Somos bilhões de pessoas no mundo e continuamos nos multiplicando.

[iv] Os exemplos e passagens que Latour descreve tornam cristalina tal divisão (p. 87 e seguintes).

[vi] E aqui vemos brotar um pensamento originalmente pós-moderno, contemporâneo.

[vii] Ainda não o conhecemos... conforme Wikipédia: “Michel Serres foi um filósofo francês. Escreveu entre outras obras "O terceiro instruído" e "O contrato natural". Atuou como professor visitante na Universidade de São Paulo. Desde 1990 ele ocupou a poltrona 18 da Academia francesa”.


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