Sobre uma nova agência
que explica a vida na Terra, a partir de Lovelock[i]
1. Galileu, Lovelock: duas descobertas
simétricas. A respeito da simetria, para Latour, se Galileu
enfileirou a Terra no rol de planetas parecidos, Lovelock a trata como único,
ou seja, fomos para o infinito, mas voltamos para nossos limites. Já em 65, em
Pasadena, Lovelock dizia que ao invés de enviar grandes foguetes para buscar
vida em Marte, bastaria um simples instrumento para verificar se sua atmosfera seria inerte ou não[ii].
Galileu, ao verificar sombras na Lua, traz
uma nova concepção de cosmos em que não há mundo sublunar, mas também uma chaga
filosófica que faz dos astros “bolas de bilhar” com as qualidades primárias de
extensão e movimento. Isto é, todo o universo, infinito porquê seguidor das
leis da natureza, é uma res extensa cartesiana. Porém, dentro dessa res
extensa infinita, Lovelock postula que Vênus, Lua, etecetera, são mortos
pois estão em equilíbrio químico ao passo que a Terra é viva pois seu
desequilíbrio químico nos permitiu superar todas as adversidades as quais
passamos, sejam vulcões ou meteoros, por bilhões de anos. Mas, prossegue
Latour, essa força terrena é uma agência cuja potência de agir precisa
ser investigada e, assim, estamos de volta ao mundo sublunar.
É a pergunta que traz Latour das ideias de
Lovelock: por que temos o privilégio de sermos um planeta vivo[iii]? A despeito de seu
envoltório para manter as diferenças internas e externas, Lovelock traz as
qualidades secundárias para o primeiro plano, isto é, a terra e seu comportamento[iv],
muito além do movimento descoberto por Galileu e que, lá, instalou uma dúvida
que agora se renova. Se não somos o centro do universo como pensavam os
antigos, estamos presos em nossa atmosfera local, sozinhos. Sublinha Latour que
não há como escaparmos para o espaço, teremos que nos ver aqui embaixo.
2. Gaia, um nome mítico perigoso para uma
teoria científica. Se é Gaia o nome que Lovelock escolhe
para batizar sua teoria, Latour a investiga na mitologia grega, onde Gaia
aparece não como uma deusa ou figura harmoniosa, mas controversa que traz bons
conselhos ao mesmo tempo que aterroriza e é impiedosa. Bem, se há uma maldição
a respeito de Gaia e, não obstante os avisos recebidos para não levar Lovelock
a sério, Latour explica que persistiu, pois também teria sido difícil levar
Galileu a sério lá pelos idos de 1610. Mas o problema ocorre, segundo ele, ao
fazer da distinção galileana de qualidades primárias e secundárias, necessária
para sua abordagem, a distinção moderna Cultura / Natureza[v] que passa a ser usada como
filosofia geral que retira da terra qualquer comportamento.
É daí que surge a bifurcação da natureza
tratada por Whitehead[vi] e que faz com que Gaia
não se encaixe nesse esquema, assim como no cosmos medieval não cabia o
movimento. Porém, uma nomenclatura alternativa como “ciência do Sistema Terra”
não traduz o que Lovelock propõe sobre uma Terra com sua potência de agir. A
Gaia de Lovelock não é um todo já composto e nem um sistema passivo de seres
inertes que mantem viva a sua fina película. Gaia que, se não tem alma, a sua
natureza também não é de cunho moral quase religioso oriunda de Galileu. Gaia
é, enfatiza Latour, inteiramente secular, isto é, mundana e fora da lei.
3. Um paralelo com os micróbios de Pasteur.
Latour, então, faz referência a Pasteur quando tentou convencer os cirurgiões
de que seus instrumentos infectados com micróbios poderiam matar os pacientes,
assim como Lovelock adverte que somos a doença de Gaia, mantendo-se o desafio
de guerra e paz. A batalha de Pasteur vem com a inclusão de um agente desconhecido
que “superanima” o mundo, superando o que era feito na época por uma análise
estritamente química. Nos exemplos que Latour apresenta, seja da levedura que é
agente da fermentação ou a potência de agir dos micróbios que eliminavam a
suposta geração espontânea, há sempre novos objetos que surgem povoando o
mundo, seja o da metafisica ou o cosmológico (da antropologia).
4. Lovelock também está espalhando os
micros atores. Se a microbiologia lutou contra químicos
eminentes, Lovelock luta contra os geólogos para passar da geoquímica para a
“geofisiologia”. Conforme mostra Latour, a proporção de oxigênio e dióxido de
carbono na atmosfera, responsável por adiar o desaparecimento do planeta, não é
somente uma questão química, mas está ligada à erosão das rochas. Trata-se não
só de forças geofísicas e geoquímicas, mas de uma série de micro-organismos
vivos invisíveis que regulam nossa vida, por exemplo, evitando a concentração
de nitrogênio nos oceanos.
5. Como evitar a ideia de sistema? Ocorre
que, segundo Latour, há a questão de não superanimar a Terra como organismo
vivo: apenas um e único agente coordenador. Se Lovelock diz que a Terra se
comporta como um sistema autorregulado e sugere um ser senciente, isso dá a
medida de seu esforço de definição de Gaia, mas não significa que se trata de
um “Todo Superior”.
6. Os organismos fazem seu ambiente, não
se adaptam a ele. Também, contrariando Darwin, para
Lovelock os organismos não se adaptam ao ambiente, mas ajustam o ambiente para
eles, manipulando-o em vista de seus interesses[vii]. Latour ressalta que
Gaia não é uma composição de partes extra partes, mas de seres que se
auto contagiam intencionalmente[viii]. Não somente humanos, mas
formigas e vírus, enfim, todos agem transformando sua vizinhança em prol do que
lhes favorecem e isso significa que não se trata de antropomorfismo, mas de uma
característica geral da qual também participamos. Então, não há uma
intencionalidade da totalidade, mas uma intencionalidade diluída, ou um caos de
retroalimentações mútuas.
7. Sobre uma ligeira complicação do
darwinismo. Rebatendo a crítica do darwinismo, continua Latour,
há certo egoísmo no cálculo de interesse de cada agente, que de forma alguma é
para algum todo superior, isto é, não há um planeta vivo lutando pela
sobrevivência. Conforme Latour: “se há um resto de Providência, é nos
darwinianos que corremos o risco de encontrá-la” (p. 168), já que o modelo de
Darwin tem a sombra de um Criador agindo na seleção natural. Latour afirma que a
biologia empresta da teoria econômica um modelo de cálculo matemático entre uma
necessidade interna e o ambiente externo que não faz sentido se aplicado para
Gaia e seus acasos e ruídos.
8. Espaço, filho da história. Se os evolucionistas insistiram em Gaia como um todo, mantendo uma separação entre indivíduo e totalidade, também não perceberam que Lovelock não só não toma as partes, como também não usa a totalidade para tratar das escalas. Porém, para isso conta com Margulis[ix na tarefa de mostrar, por exemplo, que o oxigênio surge no final do Arqueano a partir de microrganismos que, se tóxico, permitiu o surgimento da vida e da fotossíntese. Ou seja, o veneno trouxe novas perspectivas. Mas aí não há diferença de escalas, não há uma res extensa pelo qual os indivíduos se espalham, mas campos de interações. Se não há partes extra partes, conforme já dito, somos consequência do tempo e de agentes que se desenvolvem de maneira contingente e oportuna.
9. Antropomorfizar o homo economicus
na era da geo-história. De acordo com Latour e a teoria de
Gaia, então, não há uma natureza em sentido clássico, mas um emaranhado de acontecimentos
imprevistos e ocasionais na geo-história que agora os humanos deixam sua marca.
Entretanto, Latour enfatiza que há um
humanoide que calcula, que é econômico e que se universalizou trazendo a
globalização que impede a homodiversidade. Seu padrão de comportamento é o da
governança e o homo economicus não passa de um cérebro simples de capitalização
e consumo com mínimos desejos e preso em sua natureza econômica. A modernidade
trouxe a divisão entre uma natureza necessária e o reino da liberdade humana, mas
que agora cai por terra a partir do acontecimento geo-histórico que nos deixa a
mercê dos acontecimentos não humanos. Nos torna humanos imóveis, impassíveis em
vias de desaparecer no antes espetáculo da natureza.
Por fim, Latour lembra novamente da bifurcação
na natureza, de Whitehead, que agora se transmuta em qualidades primárias que
são de sensibilidade e incerteza. Acontece que Latour ressalta que não se trata
de uma antropomorfização da natureza a partir de nossos valores, mas de nos enquadrar
nesse novo cenário em que perdemos o papel principal, ainda que na época do
Antropoceno.
[i] Resenha da Terceira Conferência de
Bruno Latour: Gaia: uma figura (enfim profana) da natureza. Em LATOUR,
B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno.
São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu Editora / Ateliê de Humanidades Editorial, 2020.
[ii] Tão simples quanto o telescópio de
Galileu, mas para descoberta oposta, segundo Latour.
[iii] O que quer dizer corruptível, mas
animado.
[iv] Potência de agir e comportamento
são elaborados na segunda conferência, a qual já tratamos.
[v] Precisaríamos voltar à primeira
conferência para revisitar o tratamento desse tema.
[vi] Autor que teremos que investigar,
mas que Latour usa para opor uma natureza inanimada à nossa natureza animada.
[vii] Talvez seja possível fazer uma
aproximação com Simondon, tópico Evolução da Realidade Técnica, referência: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/05/para-uma-educacao-tecnica.html.
[viii] Isto é, segundo ele, geoquímica versus
geofisiologia.
[ix] Conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Lynn_Margulis: Lynn Margulis foi uma bióloga e professora na Universidade de Massachusetts. (...) Margulis também foi a co-desenvolvedora da hipótese de Gaia com o químico britânico James Lovelock, propondo que a Terra funcionasse como um sistema único de autorregulação, e foi a principal defensora e promotora da classificação dos cinco reinos de Robert Whittaker.
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