sábado, 18 de novembro de 2023

A semântica da pós-verdade no discurso ordinário

Esse texto busca refletir sobre linguagem, ciência, tecnologia e mundo na atualidade, pelo menos em um ou outro aspecto

Não dá para saber até que ponto uma suposta linguagem pura ou ideal foi ou é a base para a linguagem do dia a dia, embora a filosofia em alguns momentos tenha tido essa pretensão, sob forte influência da ciência. Há maneiras e maneiras de proceder na análise do discurso por um viés filosófico, fato reforçado com a virada linguística do início do século passado e que coloca em dúvida a posição da consciência como detentora primordial do conhecimento, em prol da linguagem. Essa suposta linguagem pura ou ideal é fortemente baseada na análise lógica e na objetividade, buscando uma comunicação límpida e cristalina. Porém, basta dez minutos do Programa do Ratinho para perceber o quanto isto é inalcançável.

Claro que, sem dúvida, uma outra abordagem é aquela que busca explicitar a própria linguagem em seus usos. Ela usa da linguagem para explicar a linguagem, ela analisa as sentenças da linguagem e seus termos e variações buscando desvelar em qual sentido um determinado termo é usado em um contexto ou outro[i]. Se esse projeto de escrutínio linguístico mediante a filosofia é menos pretensioso ainda assim ele talvez possa estar preso a contextos específicos, embora pudesse até ser aplicado na própria ciência. Ora, mas por que a ciência novamente?

Bem, desde o renascimento que nós, human@s, noss@s maiores expoentes se apropriaram da natureza por meio da atitude científica que descreve e prescreve a realidade e que tornou possível todo esse suposto progresso que culmina agora com as mais avançadas formas de IA (inteligência artificial, seja lá o que isso queira dizer). Com o predomínio científico que nos domina há mais de 500 anos, a ciência se estabelece como campo inabalável de conhecimento e como fundamento de nossas conquistas mais expressivas, tanto boas quanto ruins[ii]. E não nos esqueçamos que a ciência é um navio em alto mar sempre em reconstrução, mas com bases sólidas e que atrai todos os demais tipos de conhecimento para que sigam o seu método, seja a medicina, psicologia, biologia e filosofia.

A ciência abocanha, então, natureza e humanidade em seu proceder, entretanto há efeitos colaterais. Uma tendência científica que atualmente estampa qualquer linha editorial ou publicação periódica, das mais liberais até as mais revolucionárias é a discussão sobre o ChatGPT, uma variação de inteligência artificial capaz de gerar novas informações a partir do “aprendizado”[iii] de toda a sua base histórica que dificilmente pode ser computada por um reles mortal. Isso ao mesmo tempo em que já tínhamos acompanhado manipulações do discurso e da verdade por grupos de pessoas e de empresas ao redor do globo, influenciando em eleições, prisões e demais sandices. Quanto temos nos deparado ultimamente com discursos mentirosos, mas convincentes, com negacionismos e falsa moral? Suas origens são as mais variadas, sejam elas políticas, religiosas e, quiçá, cientificas[iv].

Além do mais, junta-se a esse panorama o grande potencial de divulgação por meio das jamais reguladas big techs e a ilimitada internet e temos tipos de discursos nada passíveis de análise linguística com base científica ou em seu método. E as capacidades de criação que o ChatGPT agrega para os propagadores de inverdades torna o círculo vicioso: mais se produz de desinformação e mentira, mais a IA reproduz desinformação e mentira.

Isso tudo posto, chegamos à semântica da pós-verdade: uma que não permite uma análise lógica do discurso, pois o discurso se tornou contrafactual. Análise de proposições, verificacionismo, verdade e justificação racional são conceitos que não tomam lugar no discurso majoritário. A realidade foi colocada em dúvida e enunciados científicos não tem mais poder de persuasão[v]. Diante desse cenário só nos resta tomar o pragmatismo como método de menor dano. O tema já não é novo[vi], mas o que nos chama bastante a atenção é o quanto devemos fazer esforços em dois sentidos, pelo menos: primeiro tentando trazer o discurso teórico para mais perto da prática regular, para que ele não se torne um discurso estéril e, depois, tentando exercer o convencimento, tarefa tão difícil nesse momento de enorme polarização[vii].

Já o escrutínio do discurso pode levar em consideração aspectos semânticos dos textos que delatem sua origem com foco, quando se atendo à formação de opinião, tanto na produção artificial pelo ChatGPT ou pelas fake news. O primeiro passo é identificar a origem do discurso para que as ações possam ser direcionadas: discursos mentirosos produzidos por pessoas são motivo de crime e o discurso gerado por IA pode ser aceito, mas deve ser informado. Por 50 mil anos, a linguagem tem sido a essência de nosso pensamento e base da comunicação humana e não podemos deixar que um tempo miserável coloque em xeque toda essa evolução biológica.



[i] Não cabe aqui filiar uma teoria de análise da linguagem a um projeto filosófico qualquer.

[ii] Esse espaço blogueiro abriga, nesse contexto, algumas abordagens em filosofia da tecnologia.

[iii] Isto é, cálculo estatístico e probabilístico, no mais das vezes enviesado.

[iv] Pelo menos filosóficas podemos ver aos montes por aí.

[vi] Alyne Costa já falava disso no Conversações há 3 anos atrás: https://youtu.be/HlM5d699fYw.

[vii] A direita e a esquerda, os conflitos na Ucrânia e Gaza mostram o quanto os argumentos estão a mercê da empatia, isso já falava Quine. Ilustração: https://youtu.be/cmizWUX_gt0.

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